1. Um Monde des livres recente faz uma breve recensão Breves réponses
aux grandes questions de notre temps, dum livro póstumo de Stephen Hawking, dizendo entre outras coisas que
fala da possibilidade de “viagens no tempo” [1].
Claro que não o li, não sei se é a favor ou contra essa possibilidade, como também não li a sua história do tempo, publicada há uns vinte
anos. A dizer verdade, o que me
incitou a este pequeno texto foi a simples possibilidade de a questão ser
posta, ainda que se responda negativamente: ela ilustra a concepção vigente na
Física contemporânea de considerar o tempo (e o espaço, e o que Einstein chamou
“espaço-tempo”) como algo de existente em si, quase
como paralelo ao universo material, embora esse tempo não seja ele próprio
‘material’, julgava eu, mas diz-se na dita recensão que Hawking “explica que o
tempo não é o inexorável absoluto dos pêndulos, mas um material maleável[2]
que pode inclusivammente parar num buraco negro”, onde não há movimento,
acrescento eu. De qualquer forma, o tempo, ainda mais se ‘material’, provoca
nos físicos graves questões, como dava conta uma conferência do físico francês
Étienne Klein (“Le temps existe-t-il?”, 12/06/2006), glosada neste blogue
(5/5/2015). Ora, foi o filósofo Aristóteles que introduziu o motivo de ‘substância’
(material informado, com motor e finalidade), que os Europeus desfizeram (no
sentido da desconstrução, encetada por Galileu e Newton), quem paradoxalmente
definiu o tempo de forma não substancial ou material, existente por si, e ainda
por cima antecipando cerca de dois milénios na mesma definição a descoberta do
tempo tal como Galileu o colocou na sua célebre experiência de medir [a água que tombava durante] o tempo do
movimento em análise, tornando
imperativa a invenção de relógios como instrumento essencial dos laboratórios[3].
O paradoxo tem uma explicação: a “substância” que Aristóteles definiu (a ousia) era uma substância que se movia e a definição
aristotélica do tempo na Physica – “o tempo é o número [a medida] do movimento segundo o
anterior e o posterior” (IV, 219 b 1) – subordinava-o ao movimento, como a sua
medida, acrescentando-lhe aliás uma
dimensão que a Física ignorou e só um químico do século XX, Ilya Prigogine, pôs
em relevo: a sua irreversibildade, contida no “segundo o anterior e o posterior” da definição. Pode-se dizer aliás que a alegada expressão de Galileu diante da Inquisição
– “e no entanto ela move-se” – dá conta implicitamente de que é esse movimento de
rotação que nos permite medir o dia, embora sob a aparência do movimento do sol.
2. Eu não sei que chegue para aclarar
a questão de saber aonde e quando é que os físicos foram buscar esta separação entre o tempo e o movimento que permite àquele
dar a possibilidade eventual de viajar no tempo, já que essa separação é o
oposto da sua prática laboratorial, em que o tempo é sempre e exclusivamente a
medida dos movimentos da experimentação; é aliás donde vem a inacreditável
noção de reversibilidade que supõe a viagem no tempo (ao passado, sem dúvida,
já iremos ao futuro), que o próprio Prigogine interpretou como resultante do
uso de fórmulas de tipo matemático, de equações reversíveis, isto é, que podem
sempre desenvolver-se para uma solução como voltar atrás, ao ponto de partida.
3. Como é que o tempo se punha na
filosofia / teologia medieval? A conhecida resposta de Agostinho de Hipona
sobre a sua dificuldade em definir o tempo, sabendo bem o que ele era na ordem
prática, é porventura resultante do seu neoplatonismo, privilegiando a
eternidade desde as Formas ideais de Platão; será do lado do aristotelismo de
Tomás de Aquino que há que vasculhar, a partir de memórias antigas. Ora, o que
importa ao teólogo dominicano, a quem devemos a argumentação filosófica do
conjunto das questões teológicas na sua Summa, é a metaphysica de Aristóteles e menos a sua
physica, o que parece corresponder à maneira como o movimento é secundarizado
como acidente[4], reino dos temporais singulares. Mas essa
metaphysica é teológica, o tempo dos movimentos segundo Aristóteles não se
aplica ao Deus imutável – sem movimento, alteração nenhuma – e eterno, portanto
sem tempo. Também é imenso, sem medida nem espaço. Uma questão que se discutiu
nessa época era a de saber se Deus conhecia os “futuríveis”, as coisas que
poderiam suceder a alguém se ele não tivesse tomado tal opção, por exemplo se
tivesse casado em vez de ser frade. É uma espécie de viagem de Deus no futuro –
sem tempo, passado, presente e futuro são igualmente presentes para o Ser
eterno – que obviamente se complicaria bastante com os futuríveis que seriam os
futuros dos filhos, netos, etc. Ora bem, Tomás de Aquino deu uma resposta muito
interessante: Deus só conhece quer o passado quer o futuro como presente, nas
acções e nos acontecimentos, e os futuríveis não são presentes, portanto Deus
não os conhece. Resposta que não diminui a omnipotência de Deus, note-se, mas
como que a liga à terra, no caso aos movimentos e ao tempo deles.
4. Parece-me que esta bela resposta
significa que ainda no século XIII não havia o tempo e o espaço dos físicos do
século XVII. Meto aqui o espaço que, como se sabe, é um motivo ignorado pelos
Gregos, que tinham apenas o de lugar (topos), mas obviamente que também mediam distâncias entre lugares, como se deduz da própria palavra geometria, medição da terra. E o motivo físico de espaço
põe uma questão semelhante à de tempo, só que é a dimensão própria para viajar,
justamente na ‘terra’ que os Gregos mediam, que é dela mesma reversível, como
todos experimentamos em viagens de ida e volta, mesmo os astronautas vão e
voltam. Ora, aqui há uma inovação nos séculos XV e XVI, que foram as famosas
descobertas, nomeadamente a da esfericidade da Terra e os meridianos e
longitudes, estas a cruzarem-se em dois pólos e a tornar indefinidas as possibilidades
de viagens, como indefinido é o tempo enquanto horizonte das nossas vidas que
poucas chegam aos 100 anos, horizonte do nosso futuro.
5. É extremamente tentador pensar que
o tempo e o espaço do século XVII foram inventados pelos físicos enquanto
laborando em laboratórios que eles próprios, Galileu e Newton nomeadamente,
fizeram com as suas próprias mãos hábeis: foi este labor histórico que gerou o motivo newtoniano de “absoluto” do
espaço e do tempo que Einstein veio a criticar sob o tema da relatividade
(aliás galilaico): “o espaço absoluto permanece, por sua
própria natureza e sem relação a qualquer coisa externa, sempre similar e imóvel” e “o tempo absoluto,
matemático e verdadeiro
flui, por si só e por sua própria natureza, de forma homogênea e sem relação com qualquer coisa externa”
(Newton)[5]. O espaço é imóvel, o tempo sem
relação com qualquer coisa
externa, isto é, com o movimento: foi assim que filosofou
anti-aristotelicamente Newton, mas também anti-experimentalmente, já que é na
experiência de movimentos que ele mede os (seus) tempos. Pode-se supor, e é
como supor que argumento aqui, que o génio que prescindiu das qualidades, e
portanto das substâncias, e que propôs “princípios matemáticos”, foi levado a
interpretar matematicamente o espaço e o tempo cruciais na nova ciência,
opondo-os às coisas que serviam para as suas experiências, que eram quaisquer e
relativas (“qualquer coisa externa”, escreveu). Donde talvez o “absoluto”,
digno da nova ciência como da “filosofia natural”. O que suponho é consonante com o motivo gramatológico
de desconstrução operado
pela Física que mede e reduz
as coisas empíricas cujo movimento é medido, retendo apenas equações e medidas matemáticas, “as diferenças e proporções” de Galileu. Os “absolutos” reflectem o
mal-estar logocêntrico do desconstrutor que se ignora enquanto tal. Acrescente-se que o facto de Einstein ter
relativizado o absolutismo, não impede os físicos de serem mais newtonianos do
que pensam, ao guardarem esta dupla “sem relação” que sublinhei, que lhes
permitiria viajar no tempo. É que se não tivessem relação, não haveria Física
como ciência do mundo material.
6. Não significa isto que não façamos
viagens no tempo, mas doutra maneira, atenuando tanto quanto possível o nosso
tempo e espaço, o agora e aqui dos nossos movimentos quotidianos, fechando-nos no
silêncio da leitura dum livro de
Platão ou de Marcos, de Dante ou de Galileu, encontrando a estranheza de outros
códigos de viver que os textos reproduzem e se aprendem com vagar, sem nunca
sermos capazes de nos esquecer do que sabemos depois desse passado visitado. Ou
com iguais cuidados de atenuação, fecharmo-nos na sala escura dum cinema que nos dê um filme histórico de
qualidade, nomeadamente na atenção aos códigos, como o inesquecível Pasolini
sobre o evangelho de Mateus, que devo ter visto algumas cinco vezes. São
experiências em que somos raptados ao nosso aqui e agora, levados pelo que
lemos ou vemos, num tempo ficcionado que nunca foi presente. E o que assim se
aprende dá-nos cultura histórica que se acrescenta como experiência cultural à
memória de experiências de vida, sem a qual o nosso ‘aqui e agora’, sem
passado, seria também incapaz de futuro. Estes dois tempos de antes e depois
que Aristóteles colocou na sua fabulosa definição de tempo, ‘passado’ e
‘futuro’, só têm sentido no ‘presente’, como revisto o primeiro e antecipado
(mais ou menos vagamente, consoante a distância) o segundo. Esta noção de
‘distância’ entre períodos de tempo e a de ‘linha temporal’ mostram bem como o
tempo e o espaço são indissociáveis e como este é o único que se dá à medida
directamente, sem relógios[6];
é que os relógios são justamente a impossibilidade de viajar no tempo para o
medir: quando se chega ao termo do período a medir, já se está neste tempo
final, sem se poder voltar ao inicial, o tempo vai connosco, não podemos sair
dele! Trata-se justamente da irreversibilidade que Prigogine apontou como
lacuna do tempo dos físicos, que podem repetir os percursos e inclusivamente
por vezes fazê-los em sentido inverso. A relatividade restrita de Einstein
implica que, para velocidades perto da da luz, tem que se ter em conta também o
percurso da luz do olhar que mede que se junta ao tempo do percurso a medir: é
engraçado, ele trabalhava no registo de patentes de Zurich e na época procurava-se
encontrar maneira de sintonizar os vários relógios nas grandes cidades,
relativamente distantes, tendo ele que apreciar várias propostas que foram
submetidas. Físico teórico, sem dúvida, mas com problemas práticos que pediam
soluções teóricas, à maneira dos puzzles de Kuhn.
[1] São dados três exemplos
dessas questões : “Deus existe ?Como é que
o universo começou ? Pode-se prever o futuro ou viajar no tempo ?”
[2] ‘Materiau’ é um termo que em francês se usa no plural para
materiais de construção, com usos técnicos excepcionais no singular, o
adjectivo ‘maleável’ atenuando esse caracter constructivo.
[3] Há um texto de Alexandre
Koyré que mostra como os laboratórios da nova ciência obrigaram à invenção de
relógios permitindo ‘medir’ o tempo, os pêndulos que refere Hawking.
[6] No relógio
medimos ‘espaços’ do movimento dos ponteiros; nos digitais, o tempo é dado directamente
pelo tempo que há entre os números.
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