1. Eis
uma maneira de dizer a diferença de paradigmas entre a filosofia tradicional e
a sua desconstrução por Derrida: enquanto que, desde Platão, se argumenta sobre
‘categorias’, ‘essências’, ‘conceitos’, temas resultantes da definição, a
gramatologia tem antes demais em conta o gesto de escrita que isolou esses temas, retirando-os do
respectivo contexto, a saber, a operação de definição filosófica e o
laboratório científico, gestos históricos de escrita dos textos que impõem fronteiras aos temas filosóficos e científicos
que eles tratam, sobre os quais argumentam. No comentário que fiz à recusa da
R. P. Filosofia em publicar o texto “Filosofia com Ciências, recuperar a dimensão filosófica das ciências,
suspensa por Kant” no blogue Filosofia
com Ciências (18/04/2018), dei uma lista ad hoc de exemplos de ‘gestos’ em filosofia, que tratarei
agora de detalhar um pouco, procurando mostrar em cada caso como é que o gesto
altera o curso dos temas que constituem o paradigma da filosofia escolar, que
se vê a si própria como uma “philosophia perennis”, quase anhistórica: embora
estudando a “história da filosofia”, ao pensar como que se esquecia dos
pensadores, das suas épocas e circunstâncias, das mãos que escrevem ou operam
laboratorialmente, do que relativizaria os seus argumentos, manifestaria a sua
busca da verdade. Trata-se não apenas da historicidade da discussão filosófica, mas também de
procurar situar esta na história da civilização.
2. Eis a lista que dei: o ‘sei que nada sei’
socrático e a dúvida metódica cartesiana; com a definição, a instituição da
Academia e do Liceu; a Physica como filosofia com
ciências; o plurilinguismo helenista, donde o motivo do ‘signo’, abrindo uma
brecha no ‘mesmo’ de Parménides, que tinha continuado em Platão e Aristóteles;
a maneira como o platonismo se apoderou do discurso cristão em Orígenes; a
teologia cristã levando no seu bojo a filosofia para a Europa; a recepção dela
pelas universidades medievais; Aristóteles substitui Platão no tomismo;
transformação nominalista deste; papel de Newton na critica de Kant; a redução
husserliana e a doação com retiro heideggeriana; a questão da escrita posta à
filosofia por um herdeiro de ambos, permitindo entender não apenas o que os
pensadores ‘pensam’ (logocentrismo), mas também o que eles ‘fazem’ escrevendo
historicamente (desconstrução).
3.
O propósito é ambicioso demais para o meu saber, por certo. Haverá que começar pela própria escrita como invenção em sociedades
agrícolas e guerreiras, garantindo uma casta de nobres alimentados pelo excesso
de comida que camponeses cultivam, casta que nas guerras fazia escravos que os
dispensavam dos trabalhos de mãos, deixados a servidores e a artesãos. Foi este
ócio (scholê) que proporcionou
a alguns nobres e dedicarem-se a reflectir sobre as coisas do mundo e as
maneiras de governar as sociedades, a ler as literaturas literárias e filosóficas,
a escreverem por sua vez o que discutiam entre eles (assim como as Descobertas
e a escravatura, também os filósofos gregos eram guerreiros que filosofavam
assentes na escravatura). Pode-se situar as duas épocas principais do
pensamento filosófico ocidental: os séculos V-IV a. C. dos sofistas vindos a Atenas,
onde entre outros Sócrates, Platão e Aristóteles fizeram ‘escola’; os séculos
XVII-XVIII europeus de Galileu e Descartes, Hobbes, Newton, Locke e Leibniz
entre outros até Hume, Rousseau e Kant. Tratou-se de duas épocas de explosão de
publicação de escrita. Na época do helenismo, a publicação dum manuscrito fazia-se
depositando-o num templo, biblioteca ou arquivo oficial, onde se podiam fazer
cópias. Para uma difusão rápida, havia oficinas especializadas, onde escreviam
numerosos copistas a quem o texto era ditado[1].
Durante a Idade Média, eram monges que copiavam os manuscritos da Antiguidade e
asseguraram que uma parte dela chegasse às universidades medievais, onde voltou
a haver, agora não nobres guerreiros, mas clérigos, a dedicarem-se ao ócio de
ler, discutir, pensar, escrever. Os Modernos europeus serão muito críticos das
universidades por se limitarem a ler e transmitir textos, mas só foram capazes
de tirar novos conhecimentos das suas experiências, marítimas ou laboratoriais,
por terem tido esse passado de vários séculos de ensino textual. Foi só o
desenvolvimento das comunas, artesanatos e comércios com as respectivas
populações que veio a permitir a invenção da tipografia, a explosão dos livros
produzidos industrialmente e a existência de numerosos leitores, estudantes.
4.
Paradoxo de Sócrates : desdenhou
todo o saber que aprendera de seus mestres e da tradição, desdém de critica
radical que é o seu famoso “só sei que nada sei” – “aquele homem acredita saber
alguma coisa, sem sabê-la, enquanto eu, como não sei nada, também estou certo
de não saber”, Apologia de Sócrates, 21d, será a formulação que se encontra
em Platão mais perto do aforismo tradicional –,
mas também não quis contribuir para o
saber futuro dos seus discípulos, desdenhando de escrever aquando da explosão
dos manuscritos e das escolas sofistas do seu tempo. Ora, o paradoxo é esse desdém
ser parte da sua invenção da definição e portanto, por via das escritas de Platão e de Aristóteles, da invenção
daquilo a que chamamos filosofia: mesmo se se a desconstrói, é por grande
respeito pela construção que ela foi, que o maior critico de Sócrates não desdenhou:
“há que
admirar o homem por ser um pujante génio da arquitectura que conseguiu erigir
sobre água corrente um edifício conceptual indefinidamente complicado”,
espanta-se Nietzsche em Sobre a verdade e a mentira em sentido extra-moral, de 1873. O paradoxo da recusa da escrita na fundação da nossa filosofia estende-se a Platão (Fedro) e pelas mesmas razões: é que o alvo da definição
era a maiêutica de Sócrates, que o jovem que ele interrogava chegasse ele
próprio a definir a virtude que se discutia e por aí a pô-la em prática. A
definição deveria ser o fruto do diálogo, da dialéctica, como dois exemplos
modernos poderão ajudar a entender: a psicologia não directiva de Carl Rogers
busca que o cliente da relação psicológica chegue à sua própria verdade, o
psicólogo – anti-socraticamente – abstendo-se de acrescentar algo do seu saber
científico (o que bate certo com o ‘não saber’ socrático! paradoxo, não é?);
também a psicanálise freudiana se recusa a meter a sua teoria no trabalho de
rememoração analítica, já que é esta que, reconhecida pelo paciente como uma
verdade estranha saída de si, o libertará (foi por isso que Freud abandonou
precocemente a hipnótese, apesar do que permitia saber dessa verdade ao psicanalista,
mas não ao paciente). O paradoxo é que a definição, mecanismo violento de escrita filosófica como já
é manifesto nos textos aristotélicos, tenha sido inventada ao serviço do que Derrida
chamou logocentrismo, do
primado da interioridade na filosofia (e depois no cristianismo) que rasurou
essa sua violência escriturária no seio do seu próprio operar, como se pode ver
na leitura ‘mental’ de meditação.
5. Há um paralelo à escola da filosofia ocidental,
a ideografia chinesa que forneceu o braço da administração mandarim dum império
que, tal como a filosofia, durou uns 23 séculos. Creio que é possível
argumentar que também foi a definição filosófica quem sustentou a escola ocidental: foi a ela a
que Platão atribuiu a eternidade das suas Formas ideais, à maneira da
intemporalidade da geometria. Uma maneira de argumentar sobre a definição como
operação de escrita violenta é correlacioná-la com a instituição da Academia
para ensinar jovens sobre coisas além do que toda a gente aprendia como suficiente,
ensinar coisas difíceis relevando do efeito da definição, a chamada abstracção que produz conhecimentos prescindindo dos
tradicionais cinco sentidos; dificilmente adquiridos, esses conhecimentos
também não se prestam ao diálogo nem à aplicação óbvia no social: é que este é
suspenso enquanto tal, enquanto contexto deixado fora das fronteiras (fines) do definido, aquilo que Aristóteles chamará
‘acidentes’, dado ao conhecimento sensível comum, o tal que não sabe dos
definidos aprendidos na Academia. Ora, esta instituição durou cerca de dez
séculos, até ser fechada no sec. VI pelo imperador Justiniano por relevar da
sabedoria pagã. Mas a definição e a abstracção voltaram alguns séculos depois
como a coisa própria das universidades
6. Em relação à obra de Aristóteles, a questão que
me interessa é a do papel central da Physica (o ente enquanto movimentando-se, preponderância
portanto dos vivos, do seu crescer, phuô), onde se fazem as definições centrais da sua obra – ousia, aitia (causa), etc – e que articulam as várias ciências sobre as quais ele
escreveu, sendo o eixo a definição de ousia no respectivo domínio, a começar pelo zoológico,
mas que se manifesta também no cap. 6 da Poética, definindo a ousia da tragédia (texto no blogue Filosofia com
ciências, 15/06/2012). Ora, a
Idade Média introduziu a obra filosófica de Aristóteles na teologia mas
privilegiando a Metaphysica (o ente enquanto ser, o movimento reduzido ao
estatuto de acidente), deixando a Physica e as suas questões a cientistas como
Roger Bacon e mais tarde Galileu. É a Heidegger que se deve a redescoberta da Physica, de que disse: “a Physica de Aristóteles é, em retiro, e por essa razão nunca suficientemente
atravessado pelo pensamento, o livro de fundo da filosofia ocidental”.
7.
Outro gesto histórico decisivo para a futura Europa : a tradução de
Aristóteles para latim, com dois motivos filosóficos de fundo : logos, traduzido por ‘razão’ (Cícero : o ‘animal tendo discurso’ vira
‘animal racional’), deixando de fora o discurso e a língua (verbum, oratio), ousia traduzida por ‘substância’ (a ousia
primária das Categorias) e por ‘essência’ (a
secundária), relevando esta também do pensamento em língua; por outro lado, o bilinguismo helenista introduziu na díade grega clássica nome / coisa um terceiro termo, o lekton, como
‘significado’, aquilo que se
mantém na tradução com a coisa, quando o nome muda de língua (os Gregos
clássicos não traduziam para línguas bárbaras !). Estes gestos baralharam
completamente a herança grega, vindo a ser o ponto cego, se se pode dizer, do
debate realismo / nominalismo. A tríade do signo helenista nome / coisa /
significado veio a ser a base de linguagem / realidade (res) / pensamento, a primeira que com o terceiro fazia a ‘essência’ da
segunda, a ‘substância’ da coisa ; o nominalismo negou que essa essência
pertencesse à substância dela, dissociou-as uma da outra, colocando a essência
na noção occamiana de ‘nome mental’ da coisa, de
que os nomes das línguas virão a ser os instrumentos na Europa clássica :
a oposição pensamento (res cogitans) / coisa (res
extensa) é uma herança nominalista sem lugar
(primacial) para os nomes, para a linguagem. E o ‘eu’ que pensa é uma coisa pensante, coadjuvada pela alma imortal. É esta que tem ideias
inatas, as ideias cartesianas, que foram um enorme
sucesso filosófico, rdtão para as palavras e para os discursos como as almas
para os corpos, também podem ser imortais.
8.
A alma imortal veio com outro gesto importante para a futura Europa ocorrido
nos tempos do helenismo: foi a maneira como o platonismo, com os seus seis
séculos de escola e de obra filosófica,
se apoderou do jovem discurso que lhe apareceu no cristão Orígenes de
Alexandria e o platonizou, como era seu hábito face ao que lhe chegava vindo do
Médio Oriente, como diz o filósofo platónico Celso, anunciando Orígenes com uns
50 anos de antecedência. Foi este platonismo adaptado que venceu os concílios,
contra os teólogos de Antioquia, donde vinham os hereges face aos de
Alexandria. Ora, não se trata apenas de uma questão da teologia cristã, que
terá o seu patrão em Agostinho de Hipona: foi com estas vestes platónicas que a
filosofia foi transmitida às universidades medievais. Se é certo que Alberto
Magno e Tomás de Aquino substituíram Platão por Aristóteles, gesto que valeu a
citação de Heidegger no final do § 6, há que sublinhar que não o fizeram
integralmente. Platão havia introduzido uma oposição entre alma e corpo, mas
essa alma era imortal, isto é, susceptível de viver sem o corpo, com uma
substancialidade inteligível, o que Aristóteles criticou no seu hilemorfismo, a
alma como forma do corpo material: ora o Aquino, dependendo da sua condição de
teólogo cristão, manteve a imortalidade da alma (ignorada pela Bíblia, que
anunciava a ressurreição dos corpos, que era justamente o que desagrava a
Celso, citado acima), dando um peso filosófico (teológico coberto
filosoficamente) enorme à res
que cogita, ao pensamento. É nestes diversos gestos que a filosofia europeia se
constituiu, como muitos filósofos sabem, é claro.
9. Outro gesto pouco conhecido de que falou
Isabelle Stengers em A Nova Aliança, que muito me intrigou e que Jules Vuillemin tinha esclarecido, foi a
maneira como a critica
kantiana da razão pura se moldou na física de Newton, buscando aí a resposta ao
cepticismo de Hume que o acordou do “dogma” leibniziano: como é possível a
verdade de Newton? Para a ciência, os conceitos do entendimento construídos
sobre os fenómenos vindos da sensibilidade pelas formas a priori do espaço e do
tempo, e as ideias puras, isto é sem sensibilidade (abstractas?), para a
filosofia (e para a teoria?); trata-se da física de Newton, que desprezou as
“qualidades”. A maior parte destes exemplos têm sido abordados neste blogue. Um deles, particularmente
significativo que virá num próximo livro meu, é o de relevar o mesmo gesto
critico de Aristóteles em relação
a Platão e o de Kant em relação a Leibniz, em civilizações fortemente
contrastadas, algo de impensável para uma philosophia perennis.
10.
De que se trata nestes casos variados de implementação do pensamento filosófico ?
Digamos duma forma simples, que são transformações de civilização que abrem novos
horizontes às sociedades onde alguns
pensadores se revelam capazes de filosofar, e cada um deles é sempre uma
singularidade, um enigma, um leitor de pensadores anteriores em que a escrita
se funda, fecunda. Nas duas emergências mais óbvias, a grega e a europeia, é a
multiplicidade de manuscritos e de livros que aparece claramente como ocasião
de pensamento, mas essa explosão de publicações é já índice de mais tempo livre
(o tal ócio, que deu o nome à escola) que alicia gente nova para querer
compreender quem são, para onde vão os humanos que assim desabrocham
colectivamente, mormente com o Renascimento, navegação e artes humanistas, mãos
que desenham, perspectivam, escrevem, se aliam com os olhos que até aí
predominavam no pensamento. A derrota dos Gregos dá origem ao helenismo, a sua
cultura tornando-se coisa dos Romanos mas também de outros cultos orientais,
como o cristianismo, que por sua vez ganhou preponderância com a exaustão do
império romano: a época que se seguiu, os longos séculos bem chamados
‘medievais’, atestam no seu vazio de pensamento, os seus monges intelectuais
tendo-se dedicado à cópia de manuscritos, tarefa obscura e formidável que
tornou possível um fenómeno que creio único na história dos humanos, a formação
das universidades dos seculos XII e XIII que pegaram nesses manuscritos e em
outros recebidos dos árabes e lendo e discutindo textos (sem experiêmcia,
criticaram os renascentistas) que deram bases a uma nova civilização que (re) nasceu com uma bagagem cultural da Antiguidade. Foi esse
sistema – que deu os pejorativos ‘escolástico’ e ‘académico’ – que tornou possível
que a filosofia chegasse como berço de pensamento duma civilização (que logo soube de si como renascimento), fenómeno inédito na história humana, sem o qual
não teria havido a modernidade europeia. Berço de acento cristão, é certo, a
própria filosofia sendo a ‘serva’ (ancilla) da teologia, levada como foi no bojo da Igreja, bagagem que os Europeus
completaram redescobrindo os grandes autores pagãos de Roma e o próprio Platão,
traduzido para latim na segunda metade do século XV. Ora, são as novas comunas
dos últimos séculos medievais que necessitaram dessas universidades, de se
ultrapassar a teologia agostiniana para monges, camponeses e guerreiros para
uma que tivesse a ver com as novas tarefas bem difíceis do urbanismo
renascente. Depois, as mãos renascentistas inventaram o laboratório científico
e com ele a filosofia reformulou-se, Bacon, Descartes e Hobbes. Kant e Hegel
são já a transição para a civilização que se anuncia com o desabrochar
formidável das ciências do século XIX: a revolução das próprias sociedades leva à importância ganha
pelo tempo e as novas ciências
serão da história: da terra e da vida, do trabalho ou economia, das línguas,
dos textos.
11. O século XIX foi dominado pelas ciências que
forneceram os grandes debates, a economia com Marx, a biologia com Darwin, a
psicologia com Freud, deixando espaços, na margem do positivismo, para
tentativas de tipo existencial, de Kierkegaard a Nietzsche, enquanto que no
século XX a palavra de ordem de Husserl, de retorno às próprias coisas, teve
dois surtos, um existencial (Heidegger, Sartre, Levinas...), outro de aliança da
filosofia com as ciências sociais e humanas que estavam a impor-se atrás da
linguística saussuriana no chamado estruturalismo – sem sujeito nem objecto –
segundo o linguista Roman Jakobson. Em paralelo, o lógico contemporâneo de
Husserl, Gottlob Frege, deu origem às filosofias ditas analíticas que mal
conheço, mas em que as ciências puras e duras, como se diz, física, química e
biologia, têm um lugar destacado que o estruturalismo ignorou.
12. Como dizer a relação das correntes
fenomenológicas com este século XX, com uma metade disparatada e outra de
reconstrução sobre as ruínas desses disparates, com uma pujança científica e
tecnológica imensa, esta inclusive nas guerras? Do ponto de vista da
fenomenologia geral em que me situo, esta pujança como que apagou o lugar tradicional
da filosofia europeia, substituída pelas ciências sociais como fonte de conhecimento
novo e de saber-fazer, mormente a economia[2].
Modestamente, como é timbre do pensamento que inova não ser entendido
maioritariamente, colocou-se a essa pujança científica a questão heideggeriana
do ser no mundo, a sua doação
retirada como aberto às inscrições bio-sociais (desconstrução derridiana), à
estruturação ‘interior’ dos ex-sujeitos e das ex-consciências pela
‘exterioridade tribal’ que a gera. E disso as várias ciências, se e quando o
souberem, estremecerão na teorização dos seus paradigmas, além dos efeitos
práticos de poluição (que estão inviabilizando a vida na Terra) resultarem dos
eufemísticamente chamados “efeitos secundários” da experimentação laboratorial,
que são de facto os efeitos imprevistos – o laboratório busca efeitos
‘primários’ na sua experimentação – que surgem fora do laboratório pelas
aplicações tecnológicas (mas Hiroshima e Nagasaki foram efeitos primários como
tal buscados, imensa nódoa da física quântica). É que a engenharia, desde Watt
e Volta (a corrente eléctrica), é os gestos históricos do pensamento e do
conhecimento terem-se tornado um imenso gesto que revolucionou a história, revolucionou as cenas que os laboratórios científicos deixavam fora dos
seus muros, as técnicas apoderando-se de usos e quebrando as casas de antanho,
criando usos novos e novas especializações e portanto unidades sociais como
instituições de trabalho predominando sobre as famílias, alterando inacreditavelmente
a paisagem da civilização. Mas há que acrescentar que a ganância capitalista é
cúmplice desta poluição, sem que se perceba que a ciência económica cumpra a
sua cientificidade nesta questão: pelo contrário, as correntes monetaristas que
dominaram as últimas décadas e fomentaram as recentes crises parece continuarem
a predominar, porque também produzem efeitos secundários no bolso dos
economistas financeiros tornados gestores, numa ‘nova aliança’ da engenharia
electrónica com a ciência económica nobelizada, de que são índice os grandes
patrões multibilionários da Microsoft, Google e quejandos.
13. Para quem trabalha em filosofia, perceber que
essa ‘nova aliança’ se apresenta como o resultado a jusante da fabulosa
corrente de pensamento feita de descobertas e invenções filosóficas e
científicas, o desaguar destas grandes paixões de vidas totalmente entregues ao
pensamento, ao conhecimento e à compreensão das coisas e dos humanos, como se
se tratasse do telos de dois
milénios e meio da sua história, do seu alvo final. E as chamadas redes
sociais, com as suas vantagens, é bem de ver, substituem os livros que
impacientam os jovens apressados. Panorama desolador, uma catástrofe na
expectativa do pensamento, da razão que Kant anunciou como estádio adulto da
modernidade europeia. Mas a história conheceu épocas de desolação afins e é
delas que ressurge o florescimento duma nova geração que não conheceu bons
tempos e por isso teve que os buscar, que os fazer vir: entre os que nasceram
já com a electrónica e se fartaram dos dislates que a habitam, que os seus
predecessores não reconhecem como pares, como uma nova música estará já
brotando a esperança que acolherá os vindouros.
[2] Assim como
novas artes cinemáticas: o movimento da luz permite um conhecimento que parte
da ordem do sensível e que é fortemente atractivo; ora, o movimento foi a base
quer da physica quer da física.
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