1. Foi uma quinta-feira de dilúvio e
alegria, a da apresentação do livro Arte
e Técnica em Heidegger, da
especialista e tradutora reconhecida Irene Borges-Duarte (ed. Documenta), na
livraria Assírio e Alvim, no Chiado de Siza. A leitura desse livro forneceu-me
uma visão de conjunto do pensamento heideggeriano na sua elucidação da maneira
do pensador as abordar às duas na sua comum technê (que em grego diz arte e técnica), para tentar
entender algo que nele permanece equívoco. É certo que não posso saber as
possíveis objecções que a leitura que ela faz de Heidegger levantará entre os
seus pares especialistas, mas faço-lhe confiança, aquela de que necessito para
aquilatar do que eu acrescento ao pensamento do pensador alemão, ao que o forço
além dele por via de leituras de outros autores, nomeadamente Derrida e as
ciências que tenho abordado, na esperança aliás de que se abram possibilidades
novas em tempos urgentes. A certa altura, a autora cita de passagem uma minha
afirmação sobre o ateísmo radical de Heidegger (lembro-me de, jovem estudante
ignorante, ouvir dizer que então existiam dois existencialistas ateus, Sartre e
Heidegger, e dois cristãos, Jaspers e Gabriel Marcel); mas por outro lado ela
não deixa de referir com alguma frequência a maneira como Heidegger invoca os
‘deuses’, nomeadamente na entrevista ao Spiegel de 1966 em que disse o célebre “já só um deus nos
pode ainda salvar”, mas também na figura do Geviert – o céu e os divinos, a terra e os mortais – que Loparic
traduz lindamente por quadrindade, que em textos dos anos 50 vêm dizer a sua maneira de pensar o ciclo do
‘mundo’, anel e ronda, mundo esse que, vinte anos antes, se ligava à ‘terra’ (a
phusis) e a combatia. Como se
pode conjugar este recurso ao ‘sagrado’ com a afirmação de ateísmo? Esta
questão tem vários aspectos que convém distinguir.
2. O que significa o seu ateísmo? Ele
resulta inapelável do motivo de ontoteologia que, tanto quanto entendo e porventura forçando
um tanto, estabelecia, tal como o motivo de ser no mundo de 1927, uma ruptura profunda com o pensamento
europeu e o seu par sujeito / objecto. A ontoteologia foi inaugurada por Platão
e liga-se fortemente ao motivo da definição que, tenho-o lembrado várias vezes aqui, deu o
motivo das Ideias formais (eidê) celestes e eternas, que as coisas terrestres que relevam dessa definição
reproduzem melhor ou pior: esta relação entre o Ser do definido e os entes
gerados e mortais é a primeira forma de ontoteologia, a eternidade celeste
sendo parte da relação ontológica entre Ser e entes. Quando o platónico
Origenes, no iníco do século III, inventou a teologia cristã que vingou até aos
seminários eclesiásticos do século XX, o Deus bíblico, que é dito velar pelos
lírios do campo e pelas aves do céu, foi introduzido nessa relação ontoteológica
como ‘criação’: relação entre o Criador, o seu pensamento, e cada criatura
criada (coisa impensável para Platão, Aristóteles ou Plotino, que o Deus deles,
imutável, conhecesse o mundo, o que mudava!). Esse mesmo Deus virá caucionar o Cogito cartesiano até ser afastado por Kant, mas a
relação ontoteológica transformou-se, agora entre o ‘sujeito’ que conhece e o
‘objecto’ que provoca objecções a esse conhecimento, e que ainda vigora por aí
constantemente como o núcleo dos filosofares.
3. O que é que desaparece na
filosofia que se estabelece ontoteologicamente? Aquilo que a definição
negligenceia, esquece, o que dá o ente definido mas fica fora dos limites
definidos, o que releva do que hoje chamamos contexto, diferente para cada singular
e que dele é despojado para que caiba na mesma definição que os da mesma essência,
mesmidade essa que a definição assim cria. É assim conhecido nele mesmo como ousia, substância cuja essência pensada pela filosofia
se presta à argumentação com outras essências de maneira a esclarecerem-se
mutuamente, mas sempre esquecido o contexto de doação. Ora, quando Heidegger
rompe com o seu mestre Husserl, foi a tese excelente de João Paisana quem mo
ensinou, ele objecta-lhe justamente o ‘objecto’: a fundamentação do
conhecimento partir da percepção, sendo feita a partir da intuição sensível do
ente já definido como objecto, isto é, fora de contexto, coisa sem mundo
(limite do ‘retorno às coisas’). É essa objecção que lhe permite tomar o ‘ser’
que em Husserl aparece na intuição categorial (o ‘é’ que levará à definição da
intuição eidética) sem provir da sensibilidade, permite a Heidegger
preocupar-se doravante com esse ser anterior que dá o ente e que, acrescente-se, a definição eliminara,
limitando-o ao ‘ser do ente’, a ousia, esquecendo a doação. Por isso virá a privilegiar os ditos
‘pré-socráticos’, designação que ele detestava; digamos, os que pensaram antes
da definição. Nietzsche e Colli estão com ele nessa denúncia do platonismo, mas
o pensamento heideggeriano baseia-se claramente nesta reversão da definição: o que é retido por esta releva do ‘ente’, o que
ela excluiu com o contexto indicia o ‘ser’ que faz doação do ente e se dissimula, retiro do ser que deixa ser o ente em sua autonomia relativa (pela qual ele
se presta a ser definido). Numa bela leitura do primeiro capítulo do segundo
livro da Physica de
Aristóteles, este ser doador será dito ser a própria phusis, acrescentando-se de Heraclito que ela “gosta de
se esconder” (fragmento 123). Na Origem da obra de arte, Heidegger propõe traduzir phusis por ‘terra’ e foi o que me inspirou a ousar dizer
que ele é um pensador da Terra e das suas doações, pensador da ecologia 20 ou
30 anos antes de esta entrar no campo da acção e do pensamento público.
4. O Ser foi pois esquecido pela filosofia desde Platão, insistiu ele,
deixando os ouvintes ou leitores perplexos com esta nova categoria da operação
de pensar. Foi a Terra, o lugar dos gerados e perecíveis de Platão, foi a
grande doadora a grande esquecida em favor da alma (donde o ‘sujeito’ europeu)
e do ente (donde o ‘objecto’ do laboratório científico). E foi à Terra que
Heidegger retornou, nomeadamente com o motivo do ser no mundo que rompe com sujeitos que vêem e conhecem
objectos num isolador (como os laboratórios, não é pejorativo). Ora, o Deus
cristão é o que na teologia e filosofia ocidentais é criador, doador de cada criatura, cada ente, sem atenção ao
contexto, apenas à essência substância. Ele não tem pois lugar nenhum no
pensamento heideggeriano. O que fazem então os ‘deuses’ nesse mesmo pensamento?
5. Que “já só um deus nos pode ainda
salvar”, trata-se claramente dum lamento de impotência, como se ele – que em 54
em A pergunta sobre a técnica,
como traduz Irene Borges-Duarte, citava Hölderlin de “onde há o perigo, cresce
o que salva” – não tivesse encontrado uma interpretação plausível para o seu
tão caro poeta, chegasse a “um beco sem saída”, sugere algures IBD, beco que
seria também o da ecologia. Presumo que o lamento foi ecoar na ontoteologia que
denunciara e em que ele, como todos nós, fora instituído, que já o verbo
‘salvar’ lhe andava perto. Salvar do Gestell, que não será sair dele para diante e muito menos
para trás, sair do sistema técnico financeiro, definamo-lo assim: capitalismo
industrial em sua fase electrónica de globalidade intensa, que domina sobre
tudo o que é produção e trabalho assalariado e invade os desejos ligados ao
dinheiro. Esse ‘salvar’ é pensar como “preparar uma relação livre com a
essência da técnica” (IBD, p. 21 e 164), “descobrir novas possibilidades de
ser” (p. 202). Com deuses? Donde provieram estes, as religiões antes da
definição e com que esta rompeu, para vir depois apoiar o monoteísmo? No texto
sobre a phusis em Aristóteles
onde descobri o motivo decisivo do retiro do ser, a saber a phusis, esta por duas vezes é dita Gestellung, assinala-o o tradutor, F. Fédier, o que ecoa ao
futuro Gestell como se ele
dissesse o que era o ‘sistema’ do mundo das sociedades anteriores à
industrialização: era a própria ‘natureza’ que as sustentava, lhes fornecia a
fonte energética que era de ordem biológica, a das plantas, animais e músculos
humanos, não global mas local, algo perto do que Aristóteles pensou entre kinoun (causa motriz) e dunamis / energeia (capacidade potencial / efectivada), como as
causas do que tanto o fascinou, o ‘movimento’ dos que por si mesmos se movem
como auto-móveis vivos. O Gestell inventou automóveis com energia produzida, a do vapor primeiro, do
petróleo e da electricidade depois. Mas Heidegger não pensou o ‘movimento’ que
é o coração da Physica aristotélica – o qual, ao contrário do ‘tempo’, contém a
energia e a força (da Física de Newton) –, preferiu-lhe o ‘tempo’ que para o
pensador grego é apenas o número do movimento com o antes e o depois, e é
porventura o que, pertencendo à sua descrição do Gestell, não é o seu coração; nem podia, dado donde ele
vinha e a tarefa de resgatar o espaço e o tempo dos físicos para o pensamento fenomenológico do
século XX: sendo ficção do metro e do relógio dos laboratórios, e pensados como
realidades (apesar de Kant, mas que também não foi ao ‘movimento’, que estava
entregue à nova Física de Newton), teve que devolver o tempo ao ente como
doação do Ser (o que supõe o movimento, tal como o espaço, mas ficou como pressuposto) para pensar quer o tempo dos humanos em Ser e Tempo, quer o de qualquer ente em Tempo e Ser, quer a história do Ser. Não podia ser de outra maneira, muito
provavelmente, mas ajuda a compreender um limite importante do pensamento
heideggeriano.
6. O que eram então os deuses nas sociedades
sustentadas pela phusis? Os
que davam os humanos e aquilo de que eles viviam, davam de forma localizada as
colheitas e os rebanhos, a fecundidade das plantas, dos animais e dos humanos, a energia social que os humanos
não dominavam. Tal como Heidegger inclui no Gestell o não ser dominado pelos humanos, como as suas
crises manifestam. Que Heidegger não tenha encontrado o que pode salvar-nos do
perigo, segundo a palavra de Hölderlin, significa que ficou com um pé nas
sociedades de phusis, as da
casas agrícolas que produziam quase tudo de que necessitavam, cuja tendência
autárcita, isto é, a sua autonomia social diante dos outros, Aristóteles tanto
apreciava e foi até Kant, mas sempre de forma ontoteológica. O privilégio do heimat como exemplo de morada humana mostra como o seu
pensamento se situa no contexto das sociedades de phusis, como aliás quase todos os grandes filósofos europeus
(Marx é a grande excepção): isso assinala a sua dificuldade em enfrentar o Gestell, mas também a acuidade com que o pensou muito
antes de este se ter tornado evidente para nós como factor não controlável das
nossas crises. Com efeito, o Gestell é o reverso da autarcia de antanho, é heterarcia
radical em sua tendência global,
o que põe cada um à mercê dos outros, do sistema, falências geram desemprego e
outras falências, e joga-se entre capitais em guerra de números uns do maiores
do que os dos outros, a comprar barato e embaratecer mais para vender mais
caro, e assim sucessivamente, aquém e além fronteiras, sem nunca se poder
prever donde vem o perigo, que crise, de que alcance. E portanto não há quem
domine, que o poder que deveria ser democrático, se tornou plutocrático, mas os seus ‘detentores’ (se os houvesse!)
estando tanto ou mais sujeitos às falências das crises do que os outros, em sua
impotência democrática.
7. Eis a questão que Heidegger
poderia ter posto: e onde pára a phusis? Desapareceu? Só há Gestell e as suas ameaças globais sobre o localizado? Voltemos à sua definição
sumária proposta acima (§ 5): capitalismo industrial em sua fase electrónica de
globalidade intensa, que domina sobre tudo o que é produção e trabalho
assalariado e invade os desejos ligados ao dinheiro. O que é que aqui releva da
phusis? As fontes de energia
em suas explosões, bela exibição da falta de dominação dos humanos: sobre o que
explode, as matérias primas... e os vivos humanos em seus músculos de trabalho,
os quais justamente estão hoje a ser progressivamente espoliados pela invasão
das máquinas e da cibernética. Ou seja, a phusis dos vivos tem sido progressivamente expulsa do Gestell, assim como tendencialmente das cidades que hoje
procuram recuperar espaços verdes, como se diz, cães e gatos de estimação, à
míngua de filhos. Ou seja, o essencial do Gestell corresponde à esfera do trabalho, aos seus tempos
e templos, o que sobra de phusis viva foi remetida para os ‘tempos livres’ e seus outros templos de consumo
e divertimento. Sem se saber adiantar um único número, que a fenomenologia
ignora-os, percebe-se claramente onde ‘cresce o que salva’: nas máquinas
cibernéticas que se guiam quase sozinhas e fazem diminuir os tempos de
trabalho, de Gestell, reenviam
os humanos para tempos livres, mais ou menos comunitários nas solidariedades
locais que tornem esses tempos fecundos para uns e outros, consoante as
capacidades respectivas, “descobrindo novas possibilidades de ser” que retomem
a perspectiva da polis do
nosso amigo Aristóteles, que Heidegger tanto prezou, nos ensinou a ler.