1. Acabo
de ler o livrinho de Stephen Hawking sobre a sua vida e obra. É do caraças, o
homem, que nunca se deixou limitar pela doença e pela perca da fala nos meados
dos anos 80. Está contente com o que fez, mesmo das limitações tirou vantagens.
2. Mas
confesso que o li com uma premeditação, a de lhe apanhar os limites epistemológicos
da física, como fiz em tempos com as lições de física do Feynman. Mas como não
discorre sobre energia nem sobre a força de gravidade, não o apanhei por aí. O
que se me deu como questão foi a da concepção do tempo (e do espaço), aonde ele
acabou por encontrar os limites dessa concepção, sem se dar conta, ao chegar à
noção de o universo ser fechado e sem fronteiras. O que me parece só poder
querer dizer que além dele não haverá tempo (nem espaço), ou seja que não há
‘espaço-tempo’ distinto do universo, dos seus astros e coisas. Os gregos, que
mediam (geo-metria), não tinham a noção de espaço, mas a do lugar das coisas, o espaço é o que cada coisa
ocupa como seu lugar. Aristóteles, por sua vez, definiu o tempo como “o número
dum movimento segundo o anterior e o posterior”, o que, por um lado, permite
perceber que as grandes unidades de tempo que temos, o dia e o ano, são as
medidas dos dois movimentos da
terra, de rotação e de translação e, por outro, que não se pode ter tempo senão
como relativo a movimentos, como sua avaliação ou medida. O tempo, como o
espaço, é das coisas, do seu desenrolar, entre nascer e morrer para os vivos,
entre o fabricar-se e estragar-se e perecer para os objectos feitos, os tempos
da história cosmológica, da evolução da vida, das histórias das sociedades humanas.
3. Há um
problema real quanto à medição do tempo: é que ela é impossível de se fazer
directamente. Enquanto que para medir uma distância, é possível um afastamento espacial que permite essa medição,
não há maneira de nos afastarmos do tempo que medimos, porque o tempo muda
entre dois momentos dum movimento e o medidor igualmente se movimenta, sem
poder distanciar-se. E se ‘afastar’ e ‘distanciar’ são termos espaciais, é porque
justamente só conseguimos ter uma representação de tempo de tipo espacial,
‘linear’. O mais corrente é o ‘espaço’ percorrido pelos ponteiros dum relógio,
mas seja qual for o método de medição só com o ‘afastamento’ do movimento dum aparato espacial ele é possível.
4. O que
se trata de sugerir é que a noção de espaço e tempo dos físicos é derivada das
suas experiências laboratoriais e extrapolada como uma espécie de ‘coordenadas
cartesianas’ que seriam existentes por si, realmente distintas das coisas e dos
movimentos que se medem. Kant foi tão longe no seu newtonianismo que fez deles
formas a priori da sensibilidade (dos animais também? não sei se pôs a
questão). Quero crer que Hawking acabou por chegar, com esta noção dum universo
fechado sem fronteiras, à noção de que espaço e tempo só tem sentido enquanto
dimensões do universo, dum movimento de que não sabemos nem do ‘anterior’ nem
do ‘posterior’, em termos aristotélicos. Ou seja, a questão também se põe para
o ‘antes’ do big Bang, fosse este o que fosse: não há ‘antes’ se não há matéria
em movimento. Então, imagino que Hubert Reeves, não me lembro se dele ou
citando outro autor, teria proposto uma maneira de tratar a questão matematicamente:
em vez da escala linear do tempo que vai até à ‘origem’, há 13 biliões de anos
mais ou menos e fica a pôr questões metafísicas sobre o ‘antes’, como nos
mitos, usarmos para medir o tempo dos começos do universo uma escala
logarítmica que se aproxima da abcissa zero sem nunca a atingir (pode-se pensar
assim também a escala das temperaturas que também não chegam ao zero absoluto).
Em vez de 10 (= 101), põe-se 1, de 100 (=102) 2, de 1
milhão (=109) 9. Partindo de hoje como tempo 0: “à medida que se recua
no passado, dirigimo-nos para o ‘menos infinito’, que nunca se atinge. As
galáxias aparecem no tempo -10 [...] a luz fóssil é emitida no tempo -1000, o
hélio aparece em -109, os quasars fundem-se em -1012. E a
desintegração das partículas que dão origem aos quarks ocorre a -1027”
(Reeves, Um pouco mais de azul, p. 43). Se um dia for possível um telescópio que chegasse muito perto
dos tempos iniciais, era sempre segundo esta perspectiva que se ‘veria’, não na
duma linearidade. É a nossa condição de humanos, isto é de quem pertence ao
universo. Um exemplo simples. Os nossos pais viram-nos nascer e contam o tempo
antes disso, tempo da história deles, linearmente, digamos, segundo anos e
meses. Mas nós se recuamos na memória do nosso tempo chegamos a limites além
dos quais não é possível ir, ainda que alguém chegasse a lembrar-se enquanto
feto (seria um tipo de loucura extraordinário), é óbvio que o nosso tempo não
vai ao 0 do parto, muito menos da concepção. Em relação ao universo, a coisa
passa-se analogamente.
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