o corpo sem órgãos de
Deleuze
1. A relação da psicanálise à
antropologia pode ser estabelecida pela passagem do ser no seio da mãe que é o feto e depois o bebé que mama para o ser
no mundo da tribo, isto é, para a
aprendizagem progressiva dos usos segundo o paradigma das unidades sociais onde
a criança vai crescendo (família e escola na actualidade ocidental). Tal
aprendizagem é correlativa da alimentação e da protecção que a criança mamífera
precisa enquanto não for capaz de ter a sua parte autónoma no paradigma que
garante essas precisões biológicas. Ora, o contacto recente com o
motivo do corpo sem órgãos
que Deleuze e Guattari propuseram no Anti-Édipo (1972) – motivo que não entendera senão como
recusa da relação da psicanálise com a biologia, como o próprio Freud o fez em
parte na Interpretação dos sonhos
abandonando os ‘neurónios’ cerebrais do Esboço de psicologia clínica e mais acentuadamente Lacan com o motivo do
“inconsciente estruturado como uma linguagem” – fez-me voltar a considerá-lo,
mas agora usando um truque de leitura que me é frequente diante de motivos
filosóficos que procuro trazer a uma perspectiva fenomenológica, que sempre me
foi mais familiar: procurar traduzir esses motivos em exemplos (tenho um textozinho
sobre isso neste blogue).
2. Como traduzir biológica e antropologicamente o corpo
sem órgãos? Verificando que no
ventre materno o feto é alimentado directamente no seu sangue pelo da mãe através do cordão umbilical que os une, ainda que, como sucede
frequentemente, os sangues sejam de tipo diferente, mas nutrientes e oxigénio
passam dum ao outro e no feto vão a todas as células sem respiração nem
digestão, isto é, sem órgãos:
nem boca, nem estômago, intestino e fígado, nem pulmões. Estes órgãos
correspondem às necessidades anatómicas da biologia de qualquer humano que
durarão toda a vida e são introduzidos com o parto, como se sabe, num processo
em que o digestivo é progressivo, começando pelo líquido leite materno antes de
vir a mastigar com dentes mais tarde. Mas a dependência desse corpo agora com órgãos em relação a quem lhe garanta alimentação e protecção, as duas
necessidades imediatas de qualquer animal, desde os invertebrados, vai
continuar no que se poderá chamar um corpo ou um sujeito sem usos, durante todo o tempo, variável segundo as
sociedades, de aprendizagem dos usos adultos que lhe permitirão trabalhar, isto é, participar em paradigmas de usos que
tenham alimentação e protecção como contrapartidas (salário em sociedades de
direito, no nosso caso mais frequentemente). Porquê ‘sujeito’? porque é
justamente esse o efeito das aprendizagens dos usos sociais, desde a própria
língua, tornar sujeito relativamente autónomo como ser no mundo quem começa por não o ser e se altera como sujeito a cada novo uso que se torna sua habilidade esponânea.
3. O parto traz os órgãos e a aprendizagem traz o
mundo. Entre ambos, após o período do ventre de corpo sem órgãos pleno, um período de latência até ao estádio de adulto,
embora com trabalho infantil nas casas rurais de antanho e escolar actualmente,
permite que o motivo de corpo sem órgãos como que se prolongue parcialmente no corpo ou sujeito sem usos como tempo de brincadeira, isto é, de jogos sem finalidade fora deles, que
valham pelo prazer que dêem, rivalidades incluídas e respectivas malandrices.
Jogo além das necessidades de alimentação e de protecção que a respectiva
unidade social (família, escola) garante, mas sendo de sublinhar que é lição
fundamental do Anti-Édipo que
esta tribo, aqueles que as crianças conhecem regularmente, é envolvida por
gente de outras tribos, gentes estranhas que se não conhece, de que se
desconfia, em círculos que se prolongam até bairrismos, outras cidades,
estrangeiros enfim, e a organização capitalista que penetra todas estas
unidades sociais: nomeadamente o dinheiro como fetiche dominante, o
endurecimento do poder nas relações hierárquicas, a mediocridade mediática.
4. O corpo sem órgãos e sem usos pode-se talvez dizer que perdura como corpo
brincalhão que sobrevive sempre
aos usos diários e profissionais como um ‘além’ que pede amor e amizade,
leituras, artes, actividades cívicas, férias, viagens, que sei eu da lista
possível de coisas que relevam do gratuito (ainda que haja dinheiro a gastar),
além de entretimentos diversos em que o futebol predomina: divertimento é a palavra que diz de forma geral o que nos
desvia dos constrangimentos quotidianos para o diverso que vale por si. Outra palavra que parece ligar-se melhor ao que
venha da brincadeira da infância, é a paixão que pode agarrar uma vida profissional inventiva
de usos a melhorar, paixão que dispensa divertimentos, como um grande amor.
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