(retorno à questão de “Memória em
fenomenologia neurológica” neste mesmo blogue)
Neurónios e mente: Damásio renova a questão
O que a psicanálise complica ao neurologista
A bifurcação da linguagem
Retorno à questão da memória
Neurónios e mente: Damásio renova a questão
1. O que especifica os neurónios enquanto
células é eles afectarem-se uns
aos outros por múltiplas sinapses, permitindo a auto-afectação do humano (como
de qualquer animal) e a sua hetero-afectação. Não li isto em nenhum livro de
divulgação neurológica, deduzi duma definição de ser vivo por Derrida – “a
auto-afectação é uma estrutura universal da experiência [...] só um ser capaz
[...] de se auto-afectar, pode deixar-se afectar pelo outro em geral; esta
possibilidade, outro nome da vida [...]”[1]
(a dizer verdade, isto só é válido dos animais, não das plantas) – que era essa
a especificidade dos neurónios dos seres no mundo que são os animais. Eis o que pode dar o devido
valor à solução extraordinariamente simples que o último livro de A. Damásio, O
livro da Consciência, trouxe à
velha e dificílima questão da diferença entre o cérebro e a mente e à oposição
alma / corpo donde aquela é a herdeira, que foi a de dizer – sem argumentar,
mas dizendo-o várias vezes como algo que é óbvio – que à rede dos neurónios de
cada um[2]
apenas o próprio tem acesso, ao que se poderia chamar a sua ‘internalidade’ (da
rede de relações sinápticas), e não o neurologista com os seus instrumentos de
laboratório: é a esse acesso exclusivo que, sem dualismos, Damásio chama mente. Esta será o saber de si e do seu mundo ecológico. Genial simplicidade duma questão que embaralha
os neurologistas, desde o incrível livro de J. Eccles e K. Popper (o título é
revelador, The Self and his Brain!) até às buscas de ‘mecanismos’ cerebrais em redor do ‘eu’ e da
‘consciência’ que evoca Kandel no final do seu livro (Edelman e Crick).
2. Mas a simplicidade desta resposta
esplêndida repõe velhas questões, nomeadamente a da memória. O que é esta e porquê é ela necessária e como
escapam os respectivos neurónios à consciência. Ou seja, porque é que não estão
todos os neurónios sempre ‘acesos’ como mente? A primeira observação a fazer é
que um cérebro demora tempo a desenvolver-se – o que é verdade para qualquer
animal, mas no caso humano aprende-se até ao fim da vida –, isto é, a tornar-se
o órgão biológico e social que
ele é. A rede neuronal que se vai instalando em suas sinapses com a
aprendizagem, como mostrou Kandel com a sua lesma do mar, é algo de material,
bioquímico, isto é espaço e tempo, a sua manifestação enquanto ‘saber’ também
implica tempo, como falar ou ouvir, ou ler um texto, o tempo das palavras se
seguirem umas às outras, embora sendo o cérebro–mente bastante mais rápido e
não se trate só de palavras, claro, também de gestos usuais em sentido largo.
Com efeito, não é possível ter um texto instantaneamente na mente, um resumo é
outra coisa, o que chamamos uma ‘ideia’ do texto é uma aproximação. Isto
para dizer que parece ser impossível que tudo o que sabemos na nossa rede
neuronal nos seja simultaneamente presente num momento mental mais ou menos
curto. Temos, bem pelo contrário,
frequentemente a experiência de nos ser difícil lembrarmo-nos de algo que nos
está interessando, de que quanto muito nos vêm apenas fragmentos. Essa
totalidade ‘acesa’ seria aliás esmagadora da própria noção de ‘eu’, que também
é temporal, implica articular sequências, antes e depois. Sendo tão extensa a
rede neuronal, parece que só pode haver consciência se esta se demarcar na rede,
como uma sua zona (oscilante, por certo, deslocável).
3. Já que a sequencialidade do ‘eu’ é
também de grandes oscilações entre estádios da consciência: atenta,
descansada ou relaxada, a dormir,
com graduações entre estes três estádios, é bem de ver, mas que poderemos
considerar como suficientemente significativos para o que pretendemos
compreender, entre consciência e memória. Chamamos memória ao estado normal
duma boa parte da rede neuronal que corresponde à parte que pode estar presente à consciência vigilante mas não
está por inibição devida à
atenção ou mesmo em relaxação. Esteve aquando da aprendizagem que a grafou, mas
de tão repetida deixa de ser útil: se em cada coisa que fazemos tivéssemos a
atenção de quando a aprendemos, se todos os neurónios estivessem mentalmente
dispersos, nunca passávamos da cepa torta. Não só não está presente, como não
depende dessa consciência vigilante a sua manifestação: como diz a palavra
francesa para ‘recordação’, ‘souvenir’, literalmente ‘sub-vir’, é a memória que
vem quando algo a acorda do seu estado habitual, o de latência, de estar
escondida, à espreita ou não. À espreita, porque a consciência vigilante não
pode exercer-se na sua actividade corrente sem o recurso constante ao seu
‘saber’ latente, que lhe ‘sub-vem’ sempre que é preciso para essa tal
actividade, duma forma que parece ser extremamente variável e que não tem
necessariamente que se explicitar antes de desaparecer novamente. Quando falo
dum assunto numa aula, por exemplo, as frases que vou dizendo saem, como
dizer?, do muito mais que sei dele e que joga no que digo sem se manifestar,
manifestando-se em parte logo que uma pergunta a provoca. Há uma espécie de
jogo permanente entre a atenção e a memória, com partes automáticas (as que
dizem respeito às regras da língua, por exemplo) e outras não, que são
suscitadas (citadas a sub-vir) mas têm a sua autonomia na maneira de virem, com
lapsos e esquecimentos, por exemplo, num jogo intenso do que se chama ‘associação
de ideias’, e com a incerteza de se poder contar com a fidelidade dela, que é o
que nos faz levar uns apontamentos para a aula. É certo que a latência maior ou
menor da memória tem a ver com a repetição dos respectivos grafos: as palavras correntes da língua estão sempre
disponíveis automaticamente, assim como os gestos que repetimos quotidianamente,
desde lavar os dentes a guiar. Do mundo neuronal que diz respeito a esta
memória, por assim dizer sempre atenta, sempre a manifestar-se e a esconder-se,
pode-se porventura dizer que faz com a zona consciente em cada momento um só mapa de grafos, à diferença da memória dum livro, dum filme, dum
acontecimento singular que se vai esbatendo com o tempo, com acentos diversos
consoante a força que tiveram, algumas memórias com certa frescura, outras
desaparecidas quase.
4. Or que é a atenção? Digamos que é a maneira como esta consciência
vigilante é chamada por uma
situação do mundo em que se é, ainda que por vezes respondendo a necessidades
próprias, como fome ou sede, mas para responder a essas situações (ir a um
restaurante ou fazer uma refeição em casa) é sempre segundo possibilidades,
minhas do meu mundo, ecoando na memória do que se aprendeu. Como todos sabemos
pela experiência da nossa inexperiência: diante duma situação bastante nova,
normalmente ficamos sem saber o que fazer de imediato (temos que perguntar).
Pelo contrário, em situações conhecidas, embora complicadas, somos capazes de
responder porque aprendemos, quando éramos mais novos e nos ‘chamavam a
atenção’ (‘isso não se faz!’, ‘cuidado, isto faz-se assim!’). Esta expressão
explicita o que me parece aqui importante sublinhar: o estádio da atenção da
consciência, que por um lado é suscitado pela situação no mundo que nos ‘capta
a atenção’, por outro precisa da relação à memória que sub-venha. Pode ser um
perigo, que nos ‘concentra’ na situação em que estamos, palavra que diz o
apagar de outras considerações, a predominância que restringe o campo da
consciência (posso esquecer uma dor ou outra preocupação qualquer numa situação
anómala). Poderemos então dizer que o que distingue este estádio de atenção ou
consciência vigilante do estádio da relaxação – consciência desconcentrada em
que a memória se aviva mais de incertezas e dispersões –, implicando a própria
noção de atenção como ‘tensão’, será a necessidade de regras de conduta em tal
situação, de cuidados a ter como se aprendeu. É esta tensão da atenção captada
que exclui provisoriamente muito saber da memória quotidiana. É o paradigma dos
usos, estas regras como lei social no que diz respeito ao fazer de cada dia, que joga aí o seu jogo, na
tensão suscitada por uma situação de perigo, mas também pode ser, por exemplo,
a leitura concentrada dum livro, que expulsa dela mesma a dispersão da memória
relaxada, posso nem sequer ouvir a campainha da porta de tal maneira o livro me
absorve a atenção; mas se se ouviu, então é a memória latente que desperta e a
do que se estva a ler que passa a latente. Ora bem, o que Kandel mostrou, foi
que o que se aprendeu para obviar a um perigo ou a uma carência e que faz
memória, a inscreve como sinapse de grafo – mapa neuronal de grafos da nossa espontaneidade –, saber e força em cada
um, que tanto é o que age neste uso, nesta conversa, como o que se retira
enquanto memória latente.
5. Sem nunca saber dizer nada de localizações
destes grafos que funcionam sempre em oscilações de espaço como de tempo, de
zonas como de sequências, creio que fica uma extensão de memória menos actuante
e por isso mais susceptível de falhar por vezes, mas que será memória ainda,
mais ao sabor das ‘associações de ideias’ (‘é verdade, nunca mais me tinha
lembrado disso’). E há a sua alternativa, a actuação tão insistente que se torna
memória apagada, os neurónios que sabem da roupa que se tem vestida, de gestos
dos pés ao andar, das coisas que se vêem todos os dias em casa e por isso não
se repara nelas: essa é mais claramente memória apagada para não esmagar a
consciência vigilante, claramente empurrada pelo que se aprendeu e se soube e
se repete como se não se soubesse, apagada por inútil, fazendo parte da memória
implícita de Kandel, mas diferente da memória que age em gestos habituados. Um
outro exemplo: quando muito cansados nos pomos em posição de relax, sem pensar
em nada e prestando atenção ao passar do sangue, numa têmpora por exemplo, consegue-se
com a experiência vir a estar consciente da circulação do sangue por uma boa
parte do corpo. É fácil de perceber que o apagamento dessa memória mental do
sangue circulante é uma economia energética da rede neuronal a favor de maior
concentração energética da atenção no mapa de grafos quotidiano. Difícil é,
pelo menos ao leigo, saber como é que estes jogos energéticos de compensação se
fazem, entre hormonas e neuro-transmissores.
O que a psicanálise complica ao neurologista
6. E aquilo a que a psicanálise chama
‘inconsciente’? que não é apenas o ‘não consciente’ (que em rigor coincide com
o sentido primeiro da palavra ‘memória’, a latência) mas algo que é impedido de
ser consciente, que seria perigoso se o fosse, como sucede no que se chama
habitualmente loucura, pior do que uma bebedeira, que triunfa todavia nos
sonhos. Julgo que se pode fazer um paralelo com a memória do tempo de infância
(in-fante é o que não fala), da aprendizagem da fala, de que normalmente ninguém
se lembra, provavelmente porque justamente anterior à linguagem com que a
memória funciona: não será memória impedida por outrem mas incapaz por si,
podendo porventura ter algum papel nos sonhos. Ora, os sonhos são o terceiro
estádio da consciência; quando se dorme, não se deixa apenas o ‘mundo’ exterior
de usos a fazer mas também a consciência de si e as suas memórias, até as mais
íntimas e secretas, e é aonde então, em vários períodos do sono, surgem cenas
inesperadas e incompreensíveis a maior parte das vezes com outras gentes em jeitos
diversos; aí, segundo Freud, prevalecem imagens e sensações, visuais sobretudo,
da ordem do ‘concreto’, em que mesmo quando há palavras ditas ou escritas estas
valem como imagens (de voz ou de grafia). Tratar-se-á então de um estádio em
que prevalece a situação arcaica da memória, como seríamos se não houvesse nem
linguagem nem as variadas regras dos outros usos quotidianos. Será a memória da
não lei, da não regra, não testável por definição pelo neurologista, como aliás
se rebela fortemente ao psicólogo e ao psicanalista. Será então o que justifica
o lugar dado às regras dos usos na sua relação entre memória e consciência
vigilante: é o que chamei mapa dos grafos que se apaga quando se adormece, a
nossa lógica vigilante, a memória antropológica. Isto representa uma hipótese
de compreensão da lógica da psicanálise, que justamente releva da consciência
vigilante (não se faz psicanálise a dormir!), mas que também desconfia dela. O
que constitui o laboratório da psicanálise percebe-se: é um divã que não sendo
para dormir se aproxima da relaxação do sono, e uma regra contra as regras
sociais, tendente a ‘desarmar’ a consciência vigilante das suas ‘armas’
quotidianas: ‘diga tudo o que lhe vier à cabeça, não me esconda nada, ainda que
lhe pareça estúpido, sem interesse, obsceno, contra a lógica e a moral
sociais’, isto é, contra os usos de cada dia. Com ênfase nos sonhos e na sua
interpretação, a ‘análise’ vasculha as zonas da memória de relaxação entregue
ao ‘delírio’ das associações de ideias. Ora, o que posso saber de um ano e meio
de análise, é que este jogo de memórias estranhando-se é progressivo mas
bastante lento em seu aproximar-se das zonas que resistem a vir à memória, que
interrompem com silêncios ou choros ou denegações e outros actos falhados e assinalam
bloqueios da memória, forças mais fortes que resistem. Se se retiver de Kandel
que um pequeno acontecimento traumático leva a abrir uma sinapse (ou mais),
dir-se-á que a força que agrediu o neuronal ao se gravar se transformou em
força de reacção, de defesa ou de ataque: recebida passivamente de fora, virou
actividade para fora, segundo a lógica de toda e qualquer aprendizagem. Então,
no caso das resistências que não conseguem dizer-se explicitamente, haverá que
dizer que o seu efeito terá sido diferido e deslocado, sublimado. E que isto se
passou ao longo dos tempos, com repetições de forças nas mesmas zonas e
repetição do diferir e deslocar, que terão sido os usos que se foram aprendendo
e triunfaram na cena social do paradigma dos usos, reconhecido após ter sido
incitado e corrigido. Com o longo tempo e o aleatório dos percursos, pode o que
ficou bloqueado vir a doer de tanto
pisado, ao contrário de outros que poderão vingar em suas habilidades
espontâneas. O que assim se sugere é que o tempo da passagem da pertença ao
seio da mãe, parto, desmame pelo andar, mexer e falar ao ser no mundo do paradigma
de todos é o das muito difíceis aprendizagens, dos primeiros grafos e sinapses
que vão ser alicerces de muitos outros, e que estes prevalecerão sobre aqueles
primeiros, ainda impotentes face ao que os posteriores conseguem. Seria essa
impotência que ficaria marcada como in-consciência, incapacidade de chegar à
consciência do que terá ganho um estatuto de alicerce dinamizador, se dizer se
pode. Os prazeres passivos de se ser parte da mãe, do seu seio, ficam
interditos pelo que se vai ganhando como possibilidades activas e seus novos e
menores prazeres: são as regras destas possibilidades, deste ‘poder’ ser no
mundo, que impossibilitam o retorno ao que fica marcado como incestuoso.
7. Mas é óbvio que disto tudo os neurologistas não
poderão saber, resulta da paciente ‘análise’ de discursos no divã, do neuronal
‘mental’ a que só o próprio tem acesso. E quando se os vê a fazerem certas
experiências de laboratório e concluírem que Freud estava errado, o mínimo que
se pode achar é que provavelmente nunca leram o seu admirável Interpretação
dos sonhos, que não fazem a
mínima ideia da diferença entre o seu laboratório químico eléctrico de experiências
relativamente curtas e o longo tempo das caminhadas psicanalíticas, um outro
mundo. Basta ler o capítulo sobre os sonhos de M. Jouvet em O sono e o sonho, de como não consegue retirar da sua análise de
dois mil e cinquenta sonhos mais do que duas considerações relativamente
anódinas e comparar com o livro de Freud para se medir a diferença. Que também
é de paradigmas incomensuráveis, como dizia Kuhn, muito mais do que a
incomensurabilidade entre físicos de gerações diferentes.
A bifurcação da linguagem
8. Uma das possibilidades da linguagem dos humanos
é a de permitir ‘suspender’ o contexto situacional do falante e do ouvinte (do
escritor e do leitor) em vista de ‘criar’
um acontecimento de palavras trazendo consigo o seu contexto : dois
bons exemplos são, quer o contar uma narrativa do passado ou uma ficção, quer o que se chama pensar, incluindo sonhar, desejar, imaginar outras
possibilidades do que as do contexto situacional, do ‘aqui e agora’. O
‘discursivo’ (que Benveniste distinguiu do ‘narrativo’) permite dois modos dos
verbos : o indicativo presente que, com outros índices de locução (‘eu’, ‘tu’,
‘aqui’, ‘agora’, e outros), reenvia ao seu contexto, ‘indica’ o que está ‘presente’
a esse discurso falado, e o conjuntivo, que reenvia a esta capacidade de pensar em outra coisa, guardando todavia
o suporte do ‘eu’ da enunciação e a relação ao ‘tu’. Da mesma maneira, a
narrativa evocada pode guardar este suporte (auto-narrativa, a respeito do
locutor), que no entanto estruturalmente ele exclui. Que nome dar a esta possibilidade
das nossas palavras de ‘suspenderem’ o nosso contexto situacional e de nos
arrebatarem para algures, absorvidos por exemplo na leitura dum romance
apaixonante ? Bifurcação ? Jogando com dois dos sentidos da palavra
‘sentido’, poder-se-ia com efeito falar de bifurcação do sentido : o que
nos orienta no espaço, direita, esquerda, à frente, atrás, em cima, em baixo,
norte, sul, este, oeste, por um lado, e por outro o que, sentido do discurso,
nos dá uma outra possibilidade ao nosso ser-o-aí, a de se ser algures, num outro aí. Bifurcação : ao
mesmo tempo aqui-presente e
algures.
9. Esta bifurcação far-se-ia entre o
nosso contexto situacional, o nosso ‘aqui e agora’, e o contexto contado pela
palavra ou pelo escrito. Este tem a potência de nos raptar daquele, de nos
absorver, de nos bifurcar[3]. Pode-se presumir que seja necessário normalmente
um ponto de partida no contexto situacional para que haja esse ‘ir-se’ da bifurcação,
algo, acontecimento mínimo, que faça interrupção, que faça ‘associação’ entre
um elemento do contexto e o que está em jogo na palavra, dita ou
silenciosa : um encontro com alguém, tal coisa que acene à memória, ou
muito simplesmente uma associação de ideias. Esta é tão frequente que temos que admitir que o nosso
estado normal seja o de estar sempre já em bifurcação de sentido, digamos assim, entre a situação do contexto e a
do discurso[4], a chamada consciência. Prevenção dum ‘acidente’,
a expressão ‘dá atenção !’ lembra com insistência que há que estar
atento ao contexto quando se está algures, nas nuvens.
Retorno à questão da memória
10. O que esta questão da bifurcação implica é que
ela vem-se estabelecer lentamente com a aprendizagem da fala e, com os outros
usos, andar, mexer nas coisas, brincar, a atenção sendo constantemente ‘chamada’
por quem educa para o contexto presente, este é também coberto pelas palavras
que o nomeiam, o que o povoa e nele se faz. Se dissermos que estamos, quando
acordados, sempre numa ‘paisagem do nosso mundo’, em interior ou em exteriores,
e que os nossos ‘sentidos’ acordados são esse mundo que lhes é dado e que muda sempre que nos movemos, e que é
nessa paisagem que somos
possibilidades de usos, o que a linguagem aprendida traz à bifurcação é que
esse ser em paisagem e em
possibilidades é coberto pelas palavras e pela sintaxe das frases que dizemos,
de maneira tal que praticamente nada do que era in-fância antes dela lhes
escapa (a não ser eventualmente certos gostos visuais e auditivos que venham a
manifestar-se em talentos de desenho ou música, que em certas pessoas parecem
inatos). Mas o que se chama língua materna será a língua da saída da mãe para o
das falas e dos usos: ela orienta o que se vê, ouve, diz e faz: o que
corresponde ao que Derrida escreveu: “na língua não há fora de texto”. E será o
que ‘après coup’ torna impotentes os neurónios cujas principais sinapses se
instalaram na in-fância, incapazes de virem jogar directamente qualquer jogo na
consciência atenta mas porventura indirectamente (por deslocamentos e metaforizações,
em termos freudianos) na consciência relaxada.
11. Conjecturo que é difícil nestas coisas saber
se as sinapses dum dado neurónio são todas da mesma idade ou se podem ter anos
de diferença, o que poderá invalidar algumas destas hipóteses. Mas esta
in-fância seria por um lado o que a psicanálise busca atingir, os seus efeitos,
e por outro, paradoxalmente, corresponderia à concepção dominante de todos os
neurologistas que li (Eccles, Changeux, Vincent, Edelman,
Berthoz, Jouvet, Damásio, Kandel…), o
de não terem em conta a linguagem como aprendida e que lhes baralhará as contas
todas.
[1] De la grammatologie, p. 236, citado in Belo, 2007,
3. 12. Digo isto para ajudar a perceber que a fenomenologia pode ser interessante
para os neurólogos.
[3] É aonde
residiria, parece-me, a ‘verdade’ do que se chama idealismo, cujo erro consise
em dividir ou separar a bifurcação entre ‘corpo’ e ‘alma’, extensio et cogito,
finalmente objecto et sujeito. Em Husserl : região natureza e região
consciência.
[4] Limito-me aqui ao discurso, mas
este ‘lá’ pode ser também música, jogo de imagens, cálculo matemático.
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