1. ‘Privacidade’ tem um sentido a ver
com o íntimo, do foro pessoal, como se ‘privado’ fosse sinónimo de ‘próprio’ e
a expressão ‘propriedade privada’ dissesse duas vezes a mesma coisa. Mas
‘privado’ é uma forma do verbo ‘privar’, que implica retirar a alguém algo que lhe pertenceria, por exemplo um
emigrante privado de direitos, entre outras privações. Questão: a propriedade
priva outrem daquilo que lhe é próprio? É uma apropriação? E se for uma
apropriação devida, como a justificar?
2. Sejam dois exemplos estranhos. O
que é o nosso ‘próprio’ corpo? Um complexo imenso de células que, desde a
primeira que os nossos pais fecundaram, se alimenta de moléculas de animais e
plantas mortos; estes foram privados da vida, das suas moléculas nos apropriamos fazendo delas as
moléculas do nosso ‘próprio’ corpo seja. Estranha e cruel natureza, em sua lei
da selva. O que é o nosso ‘próprio’ pensamento? O que aprendemos a formular ao
longo da nossa experiência de vida com as palavras e regras da língua da nossa
sociedade, de cujo saber nos apropriamos (em ‘aprender’ há ‘prender’), agora
sem que outrem sofra privação: sendo-nos próprio, o nosso pensamento só foi
possível apropriando-nos do saber que é comum aos outros, deles privado. Esta é uma regra geral
de tudo o que diz respeito à vida: recebendo de outrem somos feitos, privando
deles nos fazemos a nós ‘próprios’.
3. O que é então uma fábrica? É uma
apropriação legal do que se recebe do ‘bem comum’: o edifício, as máquinas,
matérias primas e energia, os humanos com o seu saber escolar contratados para
nela trabalharem, tudo isso – usos inventados e reproduzidos tradicionalmente –
lhe vem do social comum a todos (como as outras fábricas que já existem e cada
nova mais ou menos repete), apropriação por um dado capital (‘dado’ por outrem,
por usos legais) que por sua vez é fruto de anteriores apropriações. ‘Privado’
aqui tem dois sentidos: o do direito do proprietário circunscrever o espaço de
produção, retirando-o do
domínio comum, de forma a que a produção seja possível, privado para que
estranhos de fora a não perturbem; mas sendo ‘privação’ do bem comum (toda a
propriedade social foi um dia apropriada por particulares), este só não fica
‘privado’ negativamente na medida dos benefícios que receber em troca dessa
privação, antes de mais relativos ao que lá se fabrica e vem ao comum mercado,
com boa qualidade e bom preço; e também pagando impostos por tudo aquilo de que
a fábrica beneficia: estradas, sistema de ensino, ordem nas ruas, e por aí
fora. Mas não só. Os trabalhadores são parte do que é apropriado mas, excluídos
da propriedade, são necessariamente incluídos no seu domínio privado através
dum contrato, como cidadãos que são: a propriedade privada do capital só se
justifica em relação a estes na medida em que eles se sentirem honrados na colaboração quotidiana, na efectivação do contrato.
4. Esta relação bipolar da
propriedade – ela só existe porque recebida da sociedade –, relação entre o bem
comum desta e o próprio, foi negada pela sua abolição politica que resultou mal
para o bem comum (que a teoria prezava), tanto a Rússia como a China o atestam
nos seus destinos históricos contrários; mas é igualmente negada pela tradição
contrária (que de Roma nos veio) da propriedade do capital, como coisa
exclusiva do próprio, como se ser-se ‘rico’ fosse coisa não social que também
valesse numa ilha deserta. Quando patrões e sindicatos se concertam ao nível da
economia terra a terra, a que diz respeito ao pão e ao corpo de cada um, se
concertam porque a economia afundada a todos afunda, donde veio então a crise?
Das decisões de ‘propriedades privadas’ no sistema bancário e nas bolsas
especulativas, que justamente ignoram a economia que diz respeito aos cidadãos.
E quem nos governa é de finanças contra economia que se ocupa. Há aqui um problema de
epistemologia da ciência económica e financeira, a separação entre ambas que
acaba por ser o alheamento das finanças em relação ao que justifica o que é a
‘propriedade privada’. Esta separação parece remeter para a ignorância da
dimensão politica, que não é tida em conta, como o foi no tempo da grande
depressão, de Roosevelt e de Keynes. Trata-se agora duma concepção absolutista
dos capitais que reina impiedosamente (Reagan, Thatcher) há 30 anos, hoje e
aqui é dela que padecemos: privou-nos provocando a crise e nos priva crendo
curá-la. Os que ensinam economia e finanças, os que preconizaram este corte
entre ambas desde Milton Friedman, tornados, este e outros da sua dita ‘escola
neoliberal’, prémios Nobel: os que fizeram o mal foram recompensados ainda por
cima!
Públicoı, 23/12/12
(reformulado)
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