1. A excelente exposição de Ana Gerschenfeld (Público, 27/12/2012) sobre o debate entre as posições
extremadas do neurologista nobelizado Sydney Brenner e o cibernético Moniz
Pereira na homenagem a A. Turing abriu o espaço à intervenção de quem ensinou
durante mais de 25 anos Filosofia da Linguagem na Faculdade de Letras de
Lisboa. Ambos os contendores ignoram a linguagem, não por ignorância pessoal
mas por razões da filosofia europeia que teceu os paradigmas científicos
respectivos. Com efeito, de Descartes a Husserl passando por Kant, tudo se
passa como se a variabilidade das línguas europeias as tivesse tornado
incapazes de abordarem as grandes questões da razão, do pensamento e do
conhecimento, sendo o sintoma dessa exclusão massiva o lugar ocupado pelas
ideias (universais), hoje acrescentado de representações e outras informações.
2. Foi a grande escola francesa de filosofia
aliada às ciências sociais e humanas dos anos 60 e 70 do século passado que deu
à linguística estrutural o lugar de piloto, que ilustra muito bem a dupla
articulação da linguagem que
André Martinet formulou, sublinhando a sua relação com a biologia humana. As
palavras articulam-se em fonemas (letras no alfabeto), ‘muito’ e ‘mito’, com
uma única letra de diferença, não têm nada a ver uma com a outra em termos de
sentido, este relevando da maneira como as palavras se articulam em frases e
suas sintaxes (‘você sua muito em sua casa’: iguais na pronúncia, as duas ‘sua’
são palavras diferentes por razões sintácticas, uma forma verbal e um pronome).
Ora, a primeira articulação, com as suas poucas dezenas de fonemas, está adequada
às possibilidades articulatórias da nossa fisiologia fonadora, enquanto que os
milhares de palavras que usamos habitualmente são os que o nosso cérebro guarda
sem dificuldades de maior. Esta dupla articulação não existe nem na matemática,
nem na música, nem nas imagens, mapas, etc., mas é um universal dos milhares de
línguas humanas diferentes, que relevam de evoluções históricas que se
sobrepuseram à evolução biológica da nossa espécie e nos tornaram estrangeiros
uns aos outros.
3. Foi por isso que a razão universal as
postergou, e bem assim a biologia. O grave inconveniente é o dos neurologistas
(Eccles e o seu Popper, Changeux, Vincent, Jouvet, Edelman, Berthoz, Damásio, Kandel, com todos eles aprendi o que sei) acharem espontaneamente que o cérebro
é feito para pensar, como se o nosso cérebro não fosse muito próximo do dos
gorilas e outros primatas. O primeiro cérebro dos vertebrados regula a
homeostasia do sangue que, quando faltam nutrientes, pulsiona o animal para
procurar comida e para se proteger de ser presa doutros; o neo-cortex dos mamíferos,
aves e alguns répteis, desenvolveu-se a partir daquele para se especializar em
estratégias de caça e de segurança, e foi este cérebro que recebemos na
evolução como seres no mundo
(Heidegger). Se aprendemos a pensar, foi com a invenção das línguas e de usos
de caça, culinários, protecção em cabanas e por aí fora, segundo as histórias,
depois usos de escritas, o alfabeto e a definição filosófica, etc., e para
calcular inventaram-se ábacos, geometrias, algarismos, etc. Nenhum neurologista
que eu tenha lido pôs nunca a questão do cérebro desta maneira, sempre o consideram
um órgão estritamente biológico, quando o nosso é simultaneamente um órgão
social que aprende desde bebé
até morrer. Assim como se recebe o ADN dos progenitores como directiva celular,
incluindo as hormonas de regulação homeostática, também o que se aprende com a
sua tribo é regulador das condutas sociais. Pode-se dizer que somos um mecanismo
de autonomia com heteronomia apagada: os que nos ensinaram as regras de falar, usar, conviver, apagam-se, não
ficam a segredar-nos ao ouvido o que fazer caso por caso, mas as regras da
nossa autonomia são, no essencial as mesmas, nossas (auto) porque deles
(hetero).
4. Qual é então a diferença para com o computador?
Este é um mecanismo programável por software, terá sido a grande invenção de Turing, disse-se
na Gulbenkian, à diferença das outras máquinas, dedicadas a trabalhos
específicos em seu hardware. O que significa que um mesmo computador se presta
a programas diversos de software, mas diz também a diferença em relação aos
cérebros mamíferos: essa programação, correspondendo sem dúvida a uma dada
autonomia de execução, não se apaga, conduz permanentemente o trabalho de
cálculo matemático, por exemplo. Enquanto que nos humanos, a anatomia cerebral
é, pela aprendizagem dos usos sociais e da fala, investida dum ‘eu’ autónomo
capaz de escolhas no mundo. A isto chamamos de forma geral ‘pensar’, o
computador (putare, em latim,
diz pensar) não o faz: creio que apenas calcula, e isso fá-lo muito melhor do
que nós, já que faz cálculos nas simulações complexas, de que somos incapazes
por limites fisiológicos. (http://www.educ.fc.ul.pt/
hyper/resources/fbelo.htm)
5. Qual é então o
ponto de dificuldade do computador (além das diferenças entre moléculas de
carbono e de silício, que aqui não dá para explicitar)? Tem a ver com a
linguagem, justamente, com a sua dupla articulação: em rigor, o computador só
lê letras, não lê palavras nem frases senão como sequências de letras. Estas
não são imagens de nada, não têm sentido por elas: o computador não atinge o
sentido, o que tem a ver com a lógica binária 1/0 que lhe é imposta pela
electricidade, corrente / interrupção; o hardware ignora até a distinção entre
um número e uma letra. Tanto quanto sei, ele apenas recebe do teclado 256
possibilidades, correspondendo aos octetos (bytes), combinações de oito
impulsos eléctricos simultâneos de 0/1. É com esses octetos (0 1 2 .
, a b c A B C + – … o intervalo
entre as palavras inclusive) que o software tem que fazer jogar as sintaxes operacionais,
a transposição fazendo-se por três operações elementares do sistema lógico
(‘e’, ‘ou’, ‘não’), inscritas no hardware. Os números da aritmética são aí
inscritos, não no sistema decimal que todos conhecemos (1, 2, 3, 4, 10, 100 …),
mas num sistema binário que só conhece 1 e 0 (1, 10, 11, 100, 101…). Por outro
lado, é necessário que todas as operações matemáticas que o hardware tem que
operar estejam, ou inscritas na própria rede electrónica, ou traduzidas
anteriormente nas que estão lá inscritas. Se ele tem que adicionar dois números, o
+ do software deve estar convertido na indicação desta operação no hardware. A
minha presunção é
a de que o computador, no que respeita à matemática, não faz senão
isso, e que é essa a sua positividade, a razão do seu enorme sucesso. Posto
isto, os números são susceptíveis de verdadeiras operações de
cálculo, a uma velocidade inaudita, mas não as letras das equações, que são
apenas transpostas entre os seus dois membros, segundo as regras matemáticas,
até ao momento em que sejam substituídas por números, o cálculo prosseguindo em
seguida somente com estes. Como o matemático também faz na sua matemática de
lápis e papel. Não se trata de um defeito dos computadores, mas da sua positividade
essencial. Quer isto dizer que o hardware é radicalmente inapto para ‘calcular’
com a linguagem alfabética: as sua únicas operações – muito úteis, cada um de
nós o sabe pelo seu Mac ou P. C. – são as de receber ‘representações’ de
letras, acentos, vírgulas, etc. e espaços brancos separando as palavras, o
que lhe permite ter também ‘representações de palavras’ (e de sintagmas mais ou
menos prolongados) como
sequências de representações de letras. Por razões intrínsecas ao hardware, o
computador ignora a dupla articulação da linguagem e os seus diferentes níveis
de regras, as suas polissemias que tanto irritam os lógicos e amam os poetas, o
que se joga ao nível do software, enquanto texto capaz de ser lido e escrito
por um cérebro humano.
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