quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Cérebro / computador... e a linguagem? (debate com L. Moniz Pereira)




1. A excelente exposição de Ana Gerschenfeld (Público, 27/12/2012) sobre o debate entre as posições extremadas do neurologista nobelizado Sydney Brenner e o cibernético Moniz Pereira na homenagem a A. Turing abriu o espaço à intervenção de quem ensinou durante mais de 25 anos Filosofia da Linguagem na Faculdade de Letras de Lisboa. Ambos os contendores ignoram a linguagem, não por ignorância pessoal mas por razões da filosofia europeia que teceu os paradigmas científicos respectivos. Com efeito, de Descartes a Husserl passando por Kant, tudo se passa como se a variabilidade das línguas europeias as tivesse tornado incapazes de abordarem as grandes questões da razão, do pensamento e do conhecimento, sendo o sintoma dessa exclusão massiva o lugar ocupado pelas ideias (universais), hoje acrescentado de representações e outras informações.
2. Foi a grande escola francesa de filosofia aliada às ciências sociais e humanas dos anos 60 e 70 do século passado que deu à linguística estrutural o lugar de piloto, que ilustra muito bem a dupla articulação da linguagem que André Martinet formulou, sublinhando a sua relação com a biologia humana. As palavras articulam-se em fonemas (letras no alfabeto), ‘muito’ e ‘mito’, com uma única letra de diferença, não têm nada a ver uma com a outra em termos de sentido, este relevando da maneira como as palavras se articulam em frases e suas sintaxes (‘você sua muito em sua casa’: iguais na pronúncia, as duas ‘sua’ são palavras diferentes por razões sintácticas, uma forma verbal e um pronome). Ora, a primeira articulação, com as suas poucas dezenas de fonemas, está adequada às possibilidades articulatórias da nossa fisiologia fonadora, enquanto que os milhares de palavras que usamos habitualmente são os que o nosso cérebro guarda sem dificuldades de maior. Esta dupla articulação não existe nem na matemática, nem na música, nem nas imagens, mapas, etc., mas é um universal dos milhares de línguas humanas diferentes, que relevam de evoluções históricas que se sobrepuseram à evolução biológica da nossa espécie e nos tornaram estrangeiros uns aos outros.
3. Foi por isso que a razão universal as postergou, e bem assim a biologia. O grave inconveniente é o dos neurologistas (Eccles e o seu Popper, Changeux, Vincent, Jouvet, Edelman, Berthoz, Damásio, Kandel, com todos eles aprendi o que sei) acharem espontaneamente que o cérebro é feito para pensar, como se o nosso cérebro não fosse muito próximo do dos gorilas e outros primatas. O primeiro cérebro dos vertebrados regula a homeostasia do sangue que, quando faltam nutrientes, pulsiona o animal para procurar comida e para se proteger de ser presa doutros; o neo-cortex dos mamíferos, aves e alguns répteis, desenvolveu-se a partir daquele para se especializar em estratégias de caça e de segurança, e foi este cérebro que recebemos na evolução como seres no mundo (Heidegger). Se aprendemos a pensar, foi com a invenção das línguas e de usos de caça, culinários, protecção em cabanas e por aí fora, segundo as histórias, depois usos de escritas, o alfabeto e a definição filosófica, etc., e para calcular inventaram-se ábacos, geometrias, algarismos, etc. Nenhum neurologista que eu tenha lido pôs nunca a questão do cérebro desta maneira, sempre o consideram um órgão estritamente biológico, quando o nosso é simultaneamente um órgão social que aprende desde bebé até morrer. Assim como se recebe o ADN dos progenitores como directiva celular, incluindo as hormonas de regulação homeostática, também o que se aprende com a sua tribo é regulador das condutas sociais. Pode-se dizer que somos um mecanismo de autonomia com heteronomia apagada: os que nos ensinaram as regras de falar, usar, conviver, apagam-se, não ficam a segredar-nos ao ouvido o que fazer caso por caso, mas as regras da nossa autonomia são, no essencial as mesmas, nossas (auto) porque deles (hetero).
4. Qual é então a diferença para com o computador? Este é um mecanismo programável por software, terá sido a grande invenção de Turing, disse-se na Gulbenkian, à diferença das outras máquinas, dedicadas a trabalhos específicos em seu hardware. O que significa que um mesmo computador se presta a programas diversos de software, mas diz também a diferença em relação aos cérebros mamíferos: essa programação, correspondendo sem dúvida a uma dada autonomia de execução, não se apaga, conduz permanentemente o trabalho de cálculo matemático, por exemplo. Enquanto que nos humanos, a anatomia cerebral é, pela aprendizagem dos usos sociais e da fala, investida dum ‘eu’ autónomo capaz de escolhas no mundo. A isto chamamos de forma geral ‘pensar’, o computador (putare, em latim, diz pensar) não o faz: creio que apenas calcula, e isso fá-lo muito melhor do que nós, já que faz cálculos nas simulações complexas, de que somos incapazes por limites fisiológicos. (http://www.educ.fc.ul.pt/ hyper/resources/fbelo.htm)
5. Qual é então o ponto de dificuldade do computador (além das diferenças entre moléculas de carbono e de silício, que aqui não dá para explicitar)? Tem a ver com a linguagem, justamente, com a sua dupla articulação: em rigor, o computador só lê letras, não lê palavras nem frases senão como sequências de letras. Estas não são imagens de nada, não têm sentido por elas: o computador não atinge o sentido, o que tem a ver com a lógica binária 1/0 que lhe é imposta pela electricidade, corrente / interrupção; o hardware ignora até a distinção entre um número e uma letra. Tanto quanto sei, ele apenas recebe do teclado 256 possibilidades, correspondendo aos octetos (bytes), com­binações de oito impulsos eléctricos simultâneos de 0/1. É com es­ses octetos (0 1 2 . ,  a b c A B C + – … o intervalo entre as palavras inclusive) que o software tem que fazer jogar as sintaxes operacionais, a transposição fazendo-se por três operações elementares do sistema lógico (‘e’, ‘ou’, ‘não’), inscritas no hardware. Os números da aritmé­tica são aí inscritos, não no sistema decimal que todos conhecemos (1, 2, 3, 4, 10, 100 …), mas num sistema binário que só conhece 1 e 0 (1, 10, 11, 100, 101…). Por outro lado, é necessário que todas as operações matemáticas que o hardware tem que operar estejam, ou inscritas na própria rede electrónica, ou traduzidas anteriormente nas que estão lá ins­critas. Se ele tem que adicionar dois números, o + do software deve estar convertido na indicação desta operação no hardware. A mi­nha presunção é a de que o computador, no que respeita à matemá­tica, não faz senão isso, e que é essa a sua positividade, a razão do seu enorme sucesso. Posto isto, os números são susceptíveis de verda­deiras operações de cálculo, a uma velocidade inaudita, mas não as letras das equações, que são apenas transpostas entre os seus dois membros, segundo as regras matemáticas, até ao momento em que sejam substituídas por números, o cálculo prosseguindo em seguida somente com estes. Como o matemático também faz na sua matemática de lápis e papel. Não se trata de um de­feito dos computadores, mas da sua positividade essencial. Quer isto dizer que o hardware é radicalmente inapto para ‘calcular’ com a linguagem alfabética: as sua únicas operações – muito úteis, cada um de nós o sabe pelo seu Mac ou P. C. – são as de receber ‘representações’ de letras, acentos, vírgulas, etc. e espaços brancos se­parando as palavras, o que lhe permite ter também ‘representações de palavras’ (e de sintagmas mais ou menos prolon­gados) como sequências de representações de letras. Por razões intrínsecas ao hardware, o computador ignora a dupla articulação da linguagem e os seus diferentes níveis de regras, as suas polissemias que tanto irritam os lógicos e amam os poetas, o que se joga ao nível do software, enquanto texto capaz de ser lido e escrito por um cérebro humano.




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