Ciências físicas, químicas e zoológicas
Ciências da linguagem (exemplo do evangelho de Marcos)
Ciências das sociedades
A vagarosa crise climática
1. A verdade na perspectiva da fenomenologia geral, é bem de ver, que há
outras perspectivas em filosofia que eu não pratico: se as ciências trabalham
(laboram) sobre determinado tipo de fenómenos, é no que dão a conhecer do movimento
deles que consistirá a sua
verdade, a qual é também a verdade da respectiva cena de
reprodução, de circulação. A
dificuldade consiste em que a experimentação laboratorial é sempre de fragmentos
que se acrescentam uns aos outros, sem que o fenómeno inteiro (e ainda menos a
sua cena de reprodução) venha ao laboratório. Para se chegar à descrição
teórica dele e da cena há que voltar ao exterior do laboratório, donde ele foi
colhido, para compreender o seu movimento nessa cena, deduzindo como é esta que
dá as regras procuradas desse movimento, que é sempre reprodutivo, tanto nas repetições quotidianas dos vivos, como
nas alterações, incluindo gerações e fabricos, mortes e lixo ou reciclagem.
Será nesta relação entre experimentação laboratorial e teoria do fenómeno
reproduzindo-se na cena dos seus congéneres que estará a verdade de tal ou tal
ciência, das cinco grandes ciências com as quais se elaborou a fenomenologia
geral aqui praticada, na esteira da fileira Husserl, Heidegger e Derrida. É
certo que neste blogue me repito muito, não sei se há leitores que o frequentam
suficientemente para se impacientarem com essas repetições, mais provável sendo
que o carácter estruturalmente fragmentário dum blogue assim torne difícil a
sua compreensão para quem vem apenas uma ou duas vezes. Quando se chega a uma
idade provecta como a minha com um problema bastante amplo e complexo, sem se
ter já pachorra para ler muita coisa que se publique, é natural que as variadas
questões deste grande problema venham à inquietação de quem busca ainda
compreender o que sempre falta. Certo é, por exemplo, que o motivo dos duplos
laços responde a esta questão da verdade de cada ciência, segundo os duplos
laços dos seus fenómenos que só ela permitiu compreender, no conjunto com as
outras e com a fenomenologia da desconstrução de Derrida. (Tanto ele como
Heidegger passaram essencialmente pela fenomenologia de Husserl, mas se nenhum
deles se quedou nela, ambos permitem o retorno aos fenómenos fora do par
sujeito / objecto que era ainda o âmago da fenomenologia segundo Husserl. É a
possibilidade desse retorno, que nenhum deles praticou, que aqui se chama
fenomenologia geral).
2. Retomando o fio.
Toda a experiência, como qualquer experimentação científica, é fragmentária por
definição, retirada que é do grande caos das coisas ; pede por isso para
ser integrada num conjunto de mais experiências, numa teoria coerente de experimentações que forme um sentido: de reprodução. Quer daquele que experimente e vai integrando, melhor ou pior, no que
aprendeu doutras experiências que foi tendo, quer das unidades a que pertence,
quer ainda com a razão que de leituras lhe vem, enquanto experiências também de
sentidos das coisas, do mundo. No que diz respeito às ciências, a teoria a
partir da composição dos fragmentos diz respeito ao que se retitui fora do
laboratório, na cena de reprodução dos fenómenos em estudo: a verdade dessa
ciência consiste na descoberta da lei de reprodução desses fenómenos, que é
a lei da própria cena que os dá
lei do tráfego das viaturas automóveis, lei da gravitação (Newton) e das
alianças químicas feitas de duplas de electrões e fotões (Feynman), lei da selva (Darwin com bioquímica),
da aliança e da guerra (Lévi-Strauss e Clastres), lei da verdade da linguagem. Verdade no sentido
em que estas leis determinam as anatomias dos entes, os paradigmas
das unidades sociais.
Ciências físicas, químicas e zoológicas
3. No que diz respeito às ciências físicas e
químicas, a verdade delas consiste teoricamente nos três campos de forças
atractivas – nucleares, electromagnéticas e da gravidade – que estruturam os
graves do nosso planeta e todos os outros astros. Bastará considerar que uma
explosão nuclear tem como consequência que as partículas dos núcleos atómicos
se livram não apenas das forças nucleares mas também das outras duas, para se
ter uma ideia de centralidade delas. Quanto à cena de reprodução, a verdade
destas duas ciências manifesta-se claramente na eficácia das técnicas a que, de
forma polivalente em relação às suas várias regiões científicas com alguma
autonomia entre elas, elas têm dado origem desde a invenção da máquina a vapor
de Watt, ainda que esta como o dínamo eléctrico de Gramme tenham sido prévias à
respectiva teoria, mas no contexto aberto pela física desde Galileu e Newton.
4.
Em relação às ciências zoológicas, também posso ser abreviado, já que o que terei que dizer tem sido frequentemente
aqui exposto. A verdade que a bioquímica trouxe à biologia anterior consistiu
na descoberta do ciclo biológico do carbono, desde a maneira como na
fotossíntese o CO2 transmite glicose às plantas, com moléculas
preciosas de carbono, decisivas em todas as moléculas de que se faz a vida
(excepto água e oxigénio), como algumas dessas moléculas, chamadas proteínas,
são sintetizadas nas células (pois que não existem senão no próprio metabolismo
celular desde a sua invenção, deduz-se da teoria semântica da evolução de
Marcello Barbieri) a partir de aminoácidos que os animais vão ter que comer
noutros vivos, plantas ou animais: donde que a anatomia de qualquer espécie
animal, vertebrada ou invertebrada, tão diferentes umas das outras, tem que ser
fabricada de forma a permitir esta caça e a fuga a ela. Quanto à verdade da cena que assim fica
esclarecida, o seu desenho ficou esplendorosamente feito por Charles Darwin,
apesar do (confessado várias vezes) vazio bioquímico da sua demonstração e
apesar de os bioquímicos serem cépticos em relação à sua “luta pela
existência”, isto é, apesar de os bioquímicos parecerem não ser capazes de aliarem a sua teoria com o
darwinismo. E no entanto a “selecção” das variedades e formas de raças por
criadores de animais e de plantas mantém-se um laboratório, crê o leigo, de
verificação possível de como nessa selecção haverá dois tempos, o da variedade
ser escolhida e cultivada e só depois ela se tornar hereditária, ganhar genes
adequados a ela. É que nessa selecção, que deu a ideia de “selecção natural” ao
mestre inglês, praticamente desaparece a “luta pela existência” própria da lei
da selva.
Ciências da linguagem (exemplo do evangelho de Marcos)
5. As ciências da linguagem e da sociedade põem
problemas mais delicados, no que à verdade diz respeito. Mais do que na
Linguística estrutural originada em Ferdinand de Saussure, que é um pouco como
a Aritmética e as quatro operações da tabuada, uma análise da lógica interna
duma língua com verdade por assim dizer imanente que é a da construção dos seus vários paradigmas
(fonológico, sintáctico, morfológico e sintáctico-semântico) que podem servir
para aferir a correcção dos discursos ou textos, os seus erros, é nas chamadas
Semióticas – leitura de textos – que a questão da verdade se porá. Nos áureos anos 60 do estruturalismo francês, quando a semiótica foi
relançada, buscavam-se homogeneidades estruturais em que o semiota-leitor não
se imiscuiria, munido de modelos que se quereriam universalizar, ciências
humanas enfim. Era o que estava subjacente ao projecto de R. Barthes em 66, no
texto “Introdução à análise estrutural das narrativas” (Communications 8): criar um modelo capaz de convir às
“inumeráveis narrativas do mundo”. Nesse modelo figurava Greimas que no mesmo
ano publicava Sémantique structurale onde, com
clareza meridiana de louvar, se deslinguisticizava a par e passo o texto de
tudo o que nele fosse ‘significante’, em sentido saussuriano, para se poder
então trabalhar com “semas”[1],
mais tarde enquadrados em “quadrados semióticos”, duma maneira que permitiria
que tais análises pudessem fazer-se sobre uma qualquer versão dum texto em
qualquer língua. Como foi o ideal europeu da filosofia e das ciências ditas naturais :
sujeito fora/acima das línguas e dos textos. Como a definição, operação
elementar do texto gnosiológico (filosofia, ciências, lógica), isola um só
sentido ou significado no polissémico significante para poder ‘pensar’ (uma
coisa de cada vez, Aristóteles) e argumentar. Esta maneira de fazer, sem a qual
não estaríamos aqui, seus descendentes ainda que suspeitosos porventura, era
uma arma contra a polissemia literária, a metáfora poética, e foi obviamente
fecunda, desde que não se tratasse de semiótica de textos literários. A Escola
Semiótica de Paris produziu sem dúvida muitos bons textos de leitura, quero
crer mais pela astúcia dos leitores do que por virtude do método. O campo fôra
semeado fora do texto e não faço injúria ao meu mestre Barthes ao pô-lo nesta
vizinhança com Greimas, com cujo projecto ele mesmo rompeu nos anos seguintes
e publicou o fruto dessa ruptura, a fabulosa e singular leitura da novela Sarrasine de Balzac, cujo título S/Z assinalava como
o trabalhar minucioso da língua do texto balzaciano fôra até ao eco do conflito
da novela nas iniciais efeminizantes do masculino e masculinizantes do feminino.
Ora, tal leitura minuciosa do texto e da sua língua só se revelava possível na
singularidade do texto lido, nos antípodas da semiótica universalizante antes
delineada. Que Barthes não renunciara totalmente a algo como uma ligeira
metodologia, capaz de leitura de textos variados, provam-no alguns outros
exercícios de leitura, sobre as versões francesas duma novela de E. Poe e de
dois textos bíblicos, do antigo como do novo Testamentos[2]. Mas foram tentativas qu
não chegaram a nenhuma cientificidade no campo da semiótica. mas por essa porta
que prossegui por minha conta e risco : o primeiro texto com que me
confrontei, Lecture matérialiste de l’évangile de Marc. Récit, pratique,
idéologie (Cerf, 1974), também depois com textos
filosóficos [3].
6.
Trata-se de textos singulares, o que permite inclui-los numa abordagem fenomenológica de
retorno às coisas, à ‘coisa’ que é um texto singular. O
que implica, é óbvio, que se trate de textos fortes, que inovam e buscam eleger
leitores, seja em que domínio fôr. A primeira condição: autor e leitor lêem o
mesmo texto, o mesmo no sentido da estrutura
significante tal como ela é dada na impressão tipográfica. Palavras, regras da
língua, códigos textuais de corpus pertencem à sociedade (ou ao paradigma da
instituição), são de todos, sem o quê nenhuma leitura seria possível. O que
assinala a força dum texto (mesmo que não recente) é, apesar de tal mesmidade
(e sem ter em conta a descontextualização que as traduções e a história vão
produzindo ao substituir gerações de leitores), o modo como ele resiste à
leitura, nomeadamente à primeira abordagem, assim como
não se deixa ler da mesma maneira pelos diferentes leitores. É essa força que cria alguma história, abre
paradigmas: é aonde se pode buscar a sua verdade como fecundidade. Mas há-de se
poder encontrar a fonte dessa verdade no próprio texto.
Seja então o caso do evangelho de Marcos,
resumidíssimamente. A primeira consideração
a fazer tem a ver com o facto de ser tido como um “livro religioso”, como os
outros textos bíblicos, mas as narrativas dão-se num contexto claramente
politico: o da ocupação da Palestina pelos Romanos (uma ocupação que, antes
deles, já tinha mais de 8 séculos por reinos diversos) e
de resistência a essa ocupação, sobretudo na Galileia onde, segundo o texto, se
passou o essencial da narrativa (9 em 15 capítulos). Ora, a religião de Israel
foi fundada pelos Profetas numa aliança com o seu Deus, que prometia liberdade
e grandeza ao povo aliado desde que fiel à Lei de Moisés. Uma literatura
apocalíptica de havia dois séculos a essa parte anunciava a vinda de Deus ou do seu Messias para os salvar, os que fossem
encontrados justos. A primeira e a última palavra atribuída ao protagonista,
Jesus, são elucidativas. “Os tempos cumpriram-se e o Reino de Deus está
próximo; mudai de vida e acreditai na Boa Notícia” / “meu Deus, meu Deus,
porque me abandonaste?”. Um apocalipse de fim do mundo é anunciado mas a
narrativa acabou no abandono do anunciador. Num texto de 15 capítulos, 13 são
de sucesso aparente da promessa, e os 2 últimos terminam em tragédia, com
anúncio posterior da ressurreição do executado. Toda a naarrativa entretém o suspense a um leitor desprevenido, com Jesus a escolher um
grupo de discípulos e a atrair multidões a quem ensina algo de novo e a curar
os doentes que se lhe apresentam, mas também aparecem precocemente adversários
ligados ao poder de Jerusalém que se concertam para o perder. Tendo em conta
este perigo, Jesus recorre à estratégia de evitar as cidades e em Jerusalém de
clandestinidade durante as noites, de dia pregando abertamente no Templo
apoiado pelo favor da multidão, que os chefes temem. Além deste código
estratégico, um outro propõe a questão de saber quem é este profeta, de que
autoridade se reclama (solução: é o Messias esperado); ora, o próprio Jesus por
três vezes se retira para rezar, em tempo de procurar esclarecer a escolha estratégica
face ao agudizar da narrativa. Isto é, ele não sabe de avanço o que vai se
passar (confirmação: este tipo de
passagens será atenuado ou apagado pelos evangelhos seguintes). Leituras para
compreender e estratégias de clandestinidade para se proteger dos adversários
mostram bem que ele não quer morrer mas cumprir a sua missão numa narrativa de
incerteza da qual faz parte, a dado momento, a decisão de subir a Jerusalém e
enfrentar a sua proclamação do Reino de Deus com os guardiães do Templo e
governantes do pais sob a vigilância dum procurador romano. Ora bem, essa
subida a Jerusalém (cap. 10) é pautada por um triplo discurso de predição por Jesus do desfecho que será contado nos dois
últimos capítulos. Estas predições jogam claramente em contradição com a lógica
de incerteza da narrativa, com o
não saber e a necessidade de avaliar o que se vai passando e de elaborar
estratégias para evitar justamente o que sucederá após essas predições: estas
não têm pois sentido narrativo, relevam do discurso do narrador, que já sabe o
desfecho do que está a contar e corrige de antemão a execução na cruz com o
anúncio duma futura ressurreição. Mas ao fazer assim, dá um estatuto
‘sobre-humano’ ao protagonista (que os ‘milagres coadjuvam) e coloca esse
desfecho trágico não apenas como ‘não trágico’ mas como plano de Deus, em contraste abissal com a narrativa: com a
agonia de Gethsemani, com o espanto dos discípulos diante do túmulo vazio onde
o crucificado fora sepultado e sobretudo com o “meu Deus, meu Deus, porque me
abandonaste?”, dito em aramaico e traduzido em seguida para grego, o que
sublinha a sua historicidade.
7. Qual a razão próxima desta tripla predição,
confirmada pelo final da narrativa? É de garantir ao leitor confiança numa
outra predição do protagonista no cap. 13, sobre o fim do mundo que fora o
anúncio inicial da narrativa, o qual é anunciado – “leitor, compreende” – com
alusões nítidas ao desastre do Templo de Jerusalém, o ‘adversário simbólico do
Messias’, pode-se dizer. A verdade da escrita do texto consiste neste anúncio
escatológico que interpreta a derrota de Israel face aos Romanos no ano 70 como
o início do fim do mundo. Mas essa verdade da redacção do texto e da sua contradição narrativa / predição foi negada pelos acontecimentos: todos os que conheceram Jesus morreram e
ele não voltou, a olhos judaicos não era portanto o Messias. Donde que os
textos tenham passado para mãos gregas, segundo um processo de que escrevi a
“génese, do dogma da incarnação”, neste blogue (23/02/2018). A verdade dos
textos bíblicos no mundo cristão passou a ser lida pelos olhos dogmáticos e
mitológicos, com “redenções”, almas salvas do Diabo para Deus, etc. No caso de
Marcos é “Nosso Senhor” que, filho de Deus, faz milagres e ressuscita,
ressuscita-se enquanto Deus ou é ressuscitado? O que se tira das leituras
litúrgicas, nos melhores casos, são lições de moral mais ou menos metafóricas.
8. A verdade do texto perdeu-se completamente, a
própria noção de texto é inexistente, mesmo na exegese histórico-crítica até há
40 anos. Foi por essa razão que foi possível a um simples licenciado em
teologia, leitor de R. Barthes e doutros estruturalistas que revelaram o jogo
das diferenças linguísticas e textuais, recuperar como pioneiro dezanove séculos mais tarde a verdade desse velho texto, que fazia fraca figura ao pé dos outros três e
dos seus belos discursos que ele ignorava, adstrito que estava a que aqueles
que transcrevesse fossem bem inseridos na sua trama narrativa, nomeadamente a
sua peça das parábolas das sementes (cap. 4), que jogam uma viragem estratégica
do protagonista. A astúcia foi a de relacionar o texto com a sociedade que o
produziu, através do motivo barthesiano de códigos, que são os mesmos na
narrativa e na sociedade contexto dela, sendo a dimensão politica e de confronto social dela que a dogmática
cristã ignorou. A verdade dum texto singular, forte, é a fecundidade de
paradigmas textuais que ele abre: Marcos abriu a narrativa de Jesus (que Paulo
ignorou) e a sua forte verdade foi recoberta porque o que ele anunciou se
revelou um fracasso; redescoberta nestes tempos de crise do cristianismo, essa verdade
permite elucidar as razões civilizacionais dessa crise, que é do ter chegado ao
fim a sua fecundidade histórica, para o bem como para o mal.
9. Este exemplo duma verdade semiótica é sem
dúvida bastante complexo, mas noutros textos filosóficos, como a Poética de Aristóteles ou os de Descartes e de Nietzsche,
a verdade é menos complexa, mais delimitada pelo contexto escolar que os reproduziu.
Em princípio, uma leitura textual singular será suficiente para chegar à
verdade dum texto, mas essa leitura pede muita energia, que os tempos actuais
apressados não facilitam. O que Marcos permite é justamente a percepção de como
as ‘verdades’ se transformam na história das interpretações. Acrescento aqui a
questão da psicanálise, que é uma semiótica dum texto oral, que vem periodicamente ao divã laboratório
prestar-se a transgredir as regras do bom senso e da moral em associações de
ideias que, sob a vigilância do psicanalista, conduzem a rememorações perdidas
e desse passar por um passado que nunca foi presente chegará a um alivio dos
sintomas de sofrimento que trouxe o paciente ao divã, uma cura talvez que será a verdade da psicanálise.
Ciências das sociedades
10. Pretender dizer qual é a verdade destas
ciências é ainda mais complicado como tarefa fenomenológica: é que o que se dá
como ‘fenómeno’ observável são as unidades locais e as suas ligações em ordem
à reprodução, quer as familiares,
quer as de trabalho, divisão moderna das antigas casas pela difusão das máquinas a vapor e depois eléctricas
que tornaram as unidades de trabalho absorventes dos seus trabalhadores e os
arrancou por períodos diários regulados às unidades familiares. Ora, a análise
dessas unidades é da ordem da antropologia, que forjou os seus inquéritos e
motivos de análise nas sociedades mais simples, sem escrita histórica nem
Estado, ou mesmo, no título feliz de P. Clastres, sociedades contra o Estado, que lhes permitiu sobreviver ao longo dos séculos
nas lutas das selvas e dumas contra as outras, mas que lhes ditou a morte
perante ‘sociedades armadas com Estado’. Ora, a descrição
dos paradigmas das unidades supõe outras ciências, quer a biologia
aquém, quer a tecnologia e a semiótica além. A base biológica impõe os limites infraestruturais
das unidades, que têm que garantir a
alimentação, o repouso e a saúde dos seus indígenas; ao que se poderia chamar
super-estrutura da unidade corresponde a tudo o que se aprende para conseguir a
boa reprodução da unidade, donde a preocupação permanente com a iniciação das
crianças e jovens. Então dir-se-á que a verdade de cada unidade consiste
justamente nessa sua reprodução, quer no quotidiano quer ao longo das gerações. Só que essa reprodução sõ se consegue em aliança
com outras unidades, o conjunto de todas reproduzindo-se também, a sua verdade
sendo a das suas crises como da sua reprodução conseguida, a qual por sua vez se articula com as outras
sociedades vizinhas em alianças, ainda que implícitas, sabendo-se que a guerra é a lei mais geral
dessas relações de vizinhança.
11. Esta lei da guerra, desde as rivalidades intra-familiares e adentro
das alianças da ordem do parentesco até à formação de castas guerreiras nas
sociedades agrícolas introduz contradições sociais que tanto produzem escolhos na boa reprodução
como promoveram frequentemente invenções de usos e de costumes que se
reproduziram, enxertadas nas reproduções das unidades: a escrita nas escolas
assim como o mercado de produtos de luxo e de armamentos são dos exemplos mais
óbvios, que são deles mesmos índices de comparação entre unidades sociais, quer
contemporâneas da mesma sincronia, quer na longa diacronia histórica. Os casos
mais flagrantes são um negativo, a quebra do cosmopolitismo romano no Ocidente
que gerou uma longuíssima ‘crise histórica’ única, a chamada Idade Média, e
outro positivo que, após um processo de recuperação das comunas e universidades
medievais e do (re)nascimento da Europa, veio a eclodir no século XIX como
revolução industrial – o que chamei super-estrutura das unidades conheceu um
desenvolvimento tal que exigiu unidades específicas só para elas, com exclusão
da dimensão da reprodução biológica dos indígenas, deixada às famílias – com a
renovação adequada das universidades e a generalização da escola a toda a
população. A formação consequente de duas redes de unidades sociais, famílias e
empregos, torna as análises científicas muito mais difíceis, tendo de recorrer
a estatísticas que subsumem aspectos diversos duma ou doutra rede ou de ambas,
mas sempre parcialmente: as estatísticas não são fenomenológicas, procuram
suprir o impasse das fenomenologias[4]. Se se quisesse buscar uma maneira fenomenológica
ou antropológica de fazer estas ciências, ter-se-ia de reconhecer para começar
que a ordem do parentesco, que Levi-Strauss colocou como estrutura global das
tribos e assim terá continuado entre as castas nobres e populares, perdeu esse
papel de aglutinador social, que acabou por vir à super-estrutura económica e
financeira do capital, dominando as unidades de emprego (mesmo as políticas dos
Estados) [5]. A maneira fenomenológica seria de partir dum
dado nó de rede de unidades sociais susceptível de alguma delimitação – uma
zona em crise particular talvez, as crises são boas ocasiões para análises de
laços – e analisar as relações de aliança e de rivalidade entre elas e os fios
que ficam abertos de relações a outras zonas (de aldeia ou bairro a cidade,
região, pais, redes várias – de produção e comercio, de relações politicas e
administrativas, de escolas e médias, etc. Impossível fenomenologia! Sobretudo
se tudo ‘correr bem’, são as crises que poderão revelar algumas ‘verdades’, negativas, por assim dizer. de escolas e médias. Será sem dúvida a relação entre as duas redes, as
unidades familiares e as de emprego que será mais difícil, fora das relações
económicas dos salários nos mercados. Mas é provavelmente onde se situa uma das
questões actuais mais tratadas, a da corrupção, como se pode deduzir das
sociedades africanas que ainda têm fortes traços tribais e onde se contam
histórias de políticos de estatuto elevado serem assediados pela sua tribo de
que ele se sente um dever de responsabilidade: a ordem do parentesco é ainda
dominante. Ora bem, acontece que há dois exemplos históricos de sociedades
actuais que poderíamos caracterizar com a maneira de P. Clastres pensar as
sociedades tribais: Grécia e Israel seriam dois casos de sociedades contra o
Estado. No texto acima citado de
23/02/2018, §§ 13-14, faço uma referencia à maneira como estas duas sociedades
que vêm desde a Antiguidade e guardam ainda hoje as suas línguas respectivas,
apesar das grandes perturbações das suas histórias, eram claramente sociedades
endogâmicas em relação aos povos estrangeiros, opondo-se (ou dificultando ao
máximo) ao casamento com mulheres estrangeiras, de gentios num caso, de
bárbaros no outro. No caso grego, costuma-se falar de “cidades-estado”, mas de
facto eram cidades com a mesma língua, religião e literatura mas que eram
fortemente rivais umas das outras, não eram expansionistas, as colónias que
fundaram eram uma nova cidade à maneira das outras; pelo contrario, elas opunham-se
a um Estado grego, o que provavelmente lhes foi fatal diante de Filipe da Macedónia,
que as venceu até virem a ser uns e outros vencidos pelos Romanos. Foi
Bizâncio, antes chamada Constantinopla e depois Istambul, que foi a capital do
poder na Grécia até à dderrota de 1453, quando o império otomano a integrou até
1832, na sequência da guerra de independência (1821-29). Ora, ainda hoje o
Estado grego é muito fraco diante da sociedade civil, como se a ordem do
parentesco ainda predominasse. Mais significativo porventura é o caso de
Israel, que se formou na viragem do 2º milénio aC para o 1º pelo rei David,
aproveitando o fim da Idade do Bronze e a crise dos impérios do Médio Oriente
(século XII aC), que durou até ao alvor do século VIII aC, quando se reforça a
série histórica de vassalagens – a Assírios, Babilónios, Iranianos, sucessores
de Alexandre, Romanos – que terminou aquando da Guerra Judaica (66-70 dC) com o
incêndio do Templo de Jerusalém e a expulsão dos Judeus. Ora, a monarquia em
Israel tinha acabado com a derrota face à Babilónia, no início do séc. VI aC, substituídos
com o domínio do Irão por um conselho de sacerdotes do Templo. Mas foi
sobretudo a sobrevivência do povo judaico, em diáspora de mais de vinte
séculos, de reprodução em múltiplos lugares e línguas, conhecendo perseguições
sem fim, ao longo de toda a história da Europa como dos impérios otomano e
russo, história sem Estado, em torno do Livro e respeitando a sua endogamia,
que é inegavelmente a verdade dum povo, um exemplo vibrante de sociedade
contra o Estado. Foi o que o
sionismo quis reverter, bem ou mal (dos palestinianos).
A vagarosa crise
climática
12. O problema com as ciências das sociedades
actuais é o de não haver nenhuma ciência que não tenha senão objectos parciais
– sociologia da educação, da família, do mercado, da saúde, dos médias, da
cultura, e por aí fora – sem sociologia global. Como a economia, ciência dos
mercados, tem como mecanismo fundamental a moeda, que reduz todas as outras componentes ao seu valor
monetário, e como a moeda intervém em praticamente todas as outras estruturas
sociais que a economia reduz mas onde não é o factor dominante – é a educação,
o bem estar familiar, a saúde, etc – ela apropriou-se dessa função global, que
é indispensável tendo embora um discurso aproximativo que tem muitos limites.
13. É o que se está a passar com a crise das
alterações climáticas, em que a economia, embora indispensável, é um dos
principais obstáculos, que terá que conhecer viragens decisivas. Sejam as dez
catástrofes climáticas principais, segundo os dois estudos mais recentes[6]:
“secas, incêndios, inundações, vagas de calor, modificação da cobertura
vegetal, precipitações, subida do nível dos mares, tempestades, reaquecimento,
esgotsmento dos lençóis e dos cursos de água, modificação da composição química
dos oceanos” com seis efeitos
principais sobre a vida humana, “a saúde, a alimentação, a água, a economia, as
infra-estruturas e a segurança, temas desdobrados em 89 sub-rubricas”. “Assim,
mortes e doenças provocadas por inundações ou incêncios ou as vagas de calor,
estragos na agricultura, gado ou pescas após precipitações ou secas, ; efeitos
nefastos sobre a qualidade e a quantidade da água não salgada, destruições de
infra-estruturas em consequência de tempestades e da subida das águas,; percas
económicas e de emprego, da diminuição da produtividade e da crise do turismo
causada pela
acidificação dos oceanos e e a deflorestação. Tudo isto sobre fundo de
violências crescentes e de migrações multiplicadas”.
14. As crises são sinais de dificuldades de
reprodução das sociedades que as sofrem, que frequentemente dependem das
desigualdades económicas mas podem resultar de outros factores, como as famosas
manifestações de 1968, com especial relevo no Maio da França inteiramente
ocupada, fábricas e escolas; por outro lado, somos informados frequentemente
como as crises de guerra ou guerrilha em países periféricos, como se diz, são
por vezes tais que não se percebe como é que as funções alimentares, por exemplo,
são exercidas. Fora dessas crises mais visíveis, dá para causar espanto que as
sociedades ocidentais funcionem muito razoavelmente, havendo sempre, é certo,
aqui e ali mini-crises de tipo variado e a constância das desigualdades. Esse
espanto vem de se saber da imensa especialização de actividades que elas exigem
e de como milhões de pessoas trabalham de molde a, em geral, se poder ter
confiança no seu trabalho, no que comemos e em geral no que compramos. Ora, um
tal espanto parece ser um obstáculo às necessárias politicas contra a grande
ameaça das alterações climáticas, politicas de constrangimento de certos tipos
de consumos que favorecem os famosos efeitos de estufa; vê-se bem na maneira
como a propaganda dos partidos políticos da direita à esquerda, e portanto dos
governos populistas ou democráticos, continua a ser imperturbavelmente a proposta
de crescimento económico, sabendo eles que não podem propor retornos devidos às
ameaças climáticas. A questão é que estas ameaças não são de um apocalipse
total que se avizinhe com sinais inegáveis: os cientistas dizem que a crise climática já começou, por exemplo na Califórnia são seus efeitos “os
incêndios florestais, uma das mais longas secas, além das vagas de calor
extremas no verão”. Como convencer as populações eleitorais de que é assim, de
que a ameaça diz respeito às vidas, agricultura e gado, água potável,
segurança, inundações com a subida do nível dos oceanos, sobretudo nos países
em desenvolvimento, mas também a Holanda ou Países Baixos, a actividade
económica dos países desenvolvidos? Quando se vê os protestos em França quase
paralisada com o aumento dos impostos, que turbulência social e politica não
despertarão os governos que propuserem politicas preventivas para uma crise
vagarosa e ocasional, em zonas muitas vezes longínquas (tem que ver com os
outros...), uma crise que não se vê com os nossos olhos nem nos nossos ecrãs,
apenas em discursos que pedem crença nos especialistas que a anunciam. Enquanto
as unidades sociais, famílias, empresas e politicas, não sentirem a crise, tudo
se passar como maus acontecimentos isolados aqui e ali mas lá longe, se só
acordarem tarde demais para promover a consciência da crise a tempo de precaver
os limites da temperatura até ao ano previsto de 2100. É possível todavia que
os efeitos das catástrofes lá longe tenham efeitos aonde elas não ocorrem.
Portugal não participou na guerra de 1939-45, não sofreu o que sofreram a maior
parte das populações europeias, mas sentiram-se cá consequências, nomeadamente
racionamento na alimentação, consoante o número de pessoas de cada família,
devendo-se fazer longas filas para obter manteiga no Campo Grande, morando nós
perto do Largo do Rato.
[1] F. Belo, Epistemologia
do Sentido. Entre Filosofia e Poesia, a questão semântica, F. Gulbenkian, 1991, §§ Q92-Q119.
[2] S/Z, 1970, Seuil; “Analyse textuelle d'un conte
d'Edgar Poe”, in Sémiotique narrative et textuelle, 1973, Larousse; “L'analyse structurale du récit. À
propos d'Actes 10-11”, in Exégèse et herméneutique, 1971, Seuil; “La lutte avec l'ange: analyse
textuelle de Genèse 32, 23-33, in Analyse structurale et exégèse biblique, 1971, Delachaux et Niestlé.
[3] o 4º capítulo do Discurso
do Método de Descartes (anexo
a Linguagem e Filosofia. Algumas questões para hoje, INCM, 1987), a Poética de Aristóteles e Sobre a Verdade e a Mentira de Nietzsche (Leituras de Aristóteles e de
Nietzsche, F. Gulbenkian,
1994), com um balanço dessas tentativas em “Semiótica e Ciências Sociais” (Revista
Crítica de Ciências Sociais,
Coimbra, nº 10, retomado em anexo a A Conversa, linguagem do quotidiano.
Ensaio de Filosofia e Pragmática,
Presença, 1991) e nos §§ Q168-Q205 de Epistemologia do Sentido.
[4] É por isso que uma
fenomenologia geral de sociedades actuais é muito difícil, ainda mais quando se
é leigo no assunto. Provavelmente as sociedades de regime monárquico e
predominância agrícola serão mais fáceis, com as suas casas de tendência à
autarcia, com relações meramente locais, ou algumas regionais.
[5] A proposta de infra e
superestrutura parece contrariar o marxismo, mas há que ver que os conteúdos
não são os mesmos. Os dois motivos enxertam-se um no outro, tudo o que sendo trabalho
aprendido relevando da super-estrutura. Como Marx não faz intervir a biologia
na sua análise do infra-estrutural, mas ela está lá com todas as actividades
quotidianas das famílias, que ele considera ‘infra’ para dar ênfase à novidade
económica da revolução industrial, a super-estrutura capitalista.