quarta-feira, 14 de novembro de 2018

A filosofia perene e os seus gestos históricos



1. Eis uma maneira de dizer a diferença de paradigmas entre a filosofia tradicional e a sua desconstrução por Derrida: enquanto que, desde Platão, se argumenta sobre ‘categorias’, ‘essências’, ‘conceitos’, temas resultantes da definição, a gramatologia tem antes demais em conta o gesto de escrita que isolou esses temas, retirando-os do respectivo contexto, a saber, a operação de definição filosófica e o laboratório científico, gestos históricos de escrita dos textos que impõem fronteiras aos temas filosóficos e científicos que eles tratam, sobre os quais argumentam. No comentário que fiz à recusa da R. P. Filosofia em publicar o texto “Filosofia com Ciências, recuperar a dimensão filosófica das ciências, suspensa por Kant” no blogue Filosofia com Ciências (18/04/2018), dei uma lista ad hoc de exemplos de ‘gestos’ em filosofia, que tratarei agora de detalhar um pouco, procurando mostrar em cada caso como é que o gesto altera o curso dos temas que constituem o paradigma da filosofia escolar, que se vê a si própria como uma “philosophia perennis”, quase anhistórica: embora estudando a “história da filosofia”, ao pensar como que se esquecia dos pensadores, das suas épocas e circunstâncias, das mãos que escrevem ou operam laboratorialmente, do que relativizaria os seus argumentos, manifestaria a sua busca da verdade. Trata-se não apenas da historicidade da discussão filosófica, mas também de procurar situar esta na história da civilização.
2. Eis a lista que dei: o ‘sei que nada sei’ socrático e a dúvida metódica cartesiana; com a definição, a instituição da Academia e do Liceu; a Physica como filosofia com ciências; o plurilinguismo helenista, donde o motivo do ‘signo’, abrindo uma brecha no ‘mesmo’ de Parménides, que tinha continuado em Platão e Aristóteles; a maneira como o platonismo se apoderou do discurso cristão em Orígenes; a teologia cristã levando no seu bojo a filosofia para a Europa; a recepção dela pelas universidades medievais; Aristóteles substitui Platão no tomismo; transformação nominalista deste; papel de Newton na critica de Kant; a redução husserliana e a doação com retiro heideggeriana; a questão da escrita posta à filosofia por um herdeiro de ambos, permitindo entender não apenas o que os pensadores ‘pensam’ (logocentrismo), mas também o que eles ‘fazem’ escrevendo historicamente (desconstrução).
3. O propósito é ambicioso demais para o meu saber, por certo. Haverá que começar pela própria escrita como invenção em sociedades agrícolas e guerreiras, garantindo uma casta de nobres alimentados pelo excesso de comida que camponeses cultivam, casta que nas guerras fazia escravos que os dispensavam dos trabalhos de mãos, deixados a servidores e a artesãos. Foi este ócio (scholê) que proporcionou a alguns nobres e dedicarem-se a reflectir sobre as coisas do mundo e as maneiras de governar as sociedades, a ler as literaturas literárias e filosóficas, a escreverem por sua vez o que discutiam entre eles (assim como as Descobertas e a escravatura, também os filósofos gregos eram guerreiros que filosofavam assentes na escravatura). Pode-se situar as duas épocas principais do pensamento filosófico ocidental: os séculos V-IV a. C. dos sofistas vindos a Atenas, onde entre outros Sócrates, Platão e Aristóteles fizeram ‘escola’; os séculos XVII-XVIII europeus de Galileu e Descartes, Hobbes, Newton, Locke e Leibniz entre outros até Hume, Rousseau e Kant. Tratou-se de duas épocas de explosão de publicação de escrita. Na época do helenismo, a publicação dum manuscrito fazia-se depositando-o num templo, biblioteca ou arquivo oficial, onde se podiam fazer cópias. Para uma difusão rápida, havia oficinas especializadas, onde escreviam numerosos copistas a quem o texto era ditado[1]. Durante a Idade Média, eram monges que copiavam os manuscritos da Antiguidade e asseguraram que uma parte dela chegasse às universidades medievais, onde voltou a haver, agora não nobres guerreiros, mas clérigos, a dedicarem-se ao ócio de ler, discutir, pensar, escrever. Os Modernos europeus serão muito críticos das universidades por se limitarem a ler e transmitir textos, mas só foram capazes de tirar novos conhecimentos das suas experiências, marítimas ou laboratoriais, por terem tido esse passado de vários séculos de ensino textual. Foi só o desenvolvimento das comunas, artesanatos e comércios com as respectivas populações que veio a permitir a invenção da tipografia, a explosão dos livros produzidos industrialmente e a existência de numerosos  leitores, estudantes.
4. Paradoxo de Sócrates : desdenhou todo o saber que aprendera de seus mestres e da tradição, desdém de critica radical que é o seu famoso “só sei que nada sei” – “aquele homem acredita saber alguma coisa, sem sabê-la, enquanto eu, como não sei nada, também estou certo de não saber”, Apologia de Sócrates, 21d, será a formulação que se encontra em Platão mais perto do aforismo tradicional , mas também não quis contribuir para o saber futuro dos seus discípulos, desdenhando de escrever aquando da explosão dos manuscritos e das escolas sofistas do seu tempo. Ora, o paradoxo é esse desdém ser parte da sua invenção da definição e portanto, por via das escritas de Platão e de Aristóteles, da invenção daquilo a que chamamos filosofia: mesmo se se a desconstrói, é por grande respeito pela construção que ela foi, que o maior critico de Sócrates não desdenhou:  “há que admirar o homem por ser um pujante génio da arquitectura que conseguiu erigir sobre água corrente um edifício conceptual indefinidamente complicado”, espanta-se Nietzsche em Sobre a verdade e a mentira em senti­do extra-moral, de 1873. O paradoxo da recusa da escrita na fundação da nossa filosofia estende-se a Platão (Fedro) e pelas mesmas razões: é que o alvo da definição era a maiêutica de Sócrates, que o jovem que ele interrogava chegasse ele próprio a definir a virtude que se discutia e por aí a pô-la em prática. A definição deveria ser o fruto do diálogo, da dialéctica, como dois exemplos modernos poderão ajudar a entender: a psicologia não directiva de Carl Rogers busca que o cliente da relação psicológica chegue à sua própria verdade, o psicólogo – anti-socraticamente – abstendo-se de acrescentar algo do seu saber científico (o que bate certo com o ‘não saber’ socrático! paradoxo, não é?); também a psicanálise freudiana se recusa a meter a sua teoria no trabalho de rememoração analítica, já que é esta que, reconhecida pelo paciente como uma verdade estranha saída de si, o libertará (foi por isso que Freud abandonou precocemente a hipnótese, apesar do que permitia saber dessa verdade ao psicanalista, mas não ao paciente). O paradoxo é que a definição, mecanismo violento de escrita filosófica como já é manifesto nos textos aristotélicos, tenha sido inventada ao serviço do que Derrida chamou logocentrismo, do primado da interioridade na filosofia (e depois no cristianismo) que rasurou essa sua violência escriturária no seio do seu próprio operar, como se pode ver na leitura ‘mental’ de meditação.
5. Há um paralelo à escola da filosofia ocidental, a ideografia chinesa que forneceu o braço da administração mandarim dum império que, tal como a filosofia, durou uns 23 séculos. Creio que é possível argumentar que também foi a definição filosófica quem sustentou a escola ocidental: foi a ela a que Platão atribuiu a eternidade das suas Formas ideais, à maneira da intemporalidade da geometria. Uma maneira de argumentar sobre a definição como operação de escrita violenta é correlacioná-la com a instituição da Academia para ensinar jovens sobre coisas além do que toda a gente aprendia como suficiente, ensinar coisas difíceis relevando do efeito da definição, a chamada abstracção que produz conhecimentos prescindindo dos tradicionais cinco sentidos; dificilmente adquiridos, esses conhecimentos também não se prestam ao diálogo nem à aplicação óbvia no social: é que este é suspenso enquanto tal, enquanto contexto deixado fora das fronteiras (fines) do definido, aquilo que Aristóteles chamará ‘acidentes’, dado ao conhecimento sensível comum, o tal que não sabe dos definidos aprendidos na Academia. Ora, esta instituição durou cerca de dez séculos, até ser fechada no sec. VI pelo imperador Justiniano por relevar da sabedoria pagã. Mas a definição e a abstracção voltaram alguns séculos depois como a coisa própria das universidades
6. Em relação à obra de Aristóteles, a questão que me interessa é a do papel central da Physica (o ente enquanto movimentando-se, preponderância portanto dos vivos, do seu crescer, phuô), onde se fazem as definições centrais da sua obra – ousia, aitia (causa), etc – e que articulam as várias ciências sobre as quais ele escreveu, sendo o eixo a definição de ousia no respectivo domínio, a começar pelo zoológico, mas que se manifesta também no cap. 6 da Poética, definindo a ousia da tragédia (texto no blogue Filosofia com ciências, 15/06/2012). Ora, a Idade Média introduziu a obra filosófica de Aristóteles na teologia mas privilegiando a Metaphysica (o ente enquanto ser, o movimento reduzido ao estatuto de acidente), deixando a Physica e as suas questões a cientistas como Roger Bacon e mais tarde Galileu. É a Heidegger que se deve a redescoberta da Physica, de que disse: “a Physica de Aristóteles é, em retiro, e por essa razão nunca suficientemente atravessado pelo pensamento, o livro de fundo da filosofia ocidental”.
7. Outro gesto histórico decisivo para a futura Europa : a tradução de Aristóteles para latim, com dois motivos filosóficos de fundo : logos, traduzido por ‘razão’ (Cícero : o ‘animal tendo discurso’ vira ‘animal racional’), deixando de fora o discurso e a língua (verbum, oratio), ousia traduzida por ‘substância’ (a ousia primária das Categorias) e por ‘essência’ (a secundária), relevando esta também do pensamento em língua; por outro lado, o bilinguismo helenista introduziu na díade grega clássica nome / coisa um terceiro termo, o lekton, como ‘significado’, aquilo  que se mantém na tradução com a coisa, quando o nome muda de língua (os Gregos clássicos não traduziam para línguas bárbaras !). Estes gestos baralharam completamente a herança grega, vindo a ser o ponto cego, se se pode dizer, do debate realismo / nominalismo. A tríade do signo helenista nome / coisa / significado veio a ser a base de linguagem / realidade (res) / pensamento, a primeira que com o terceiro fazia a ‘essência’ da segunda, a ‘substância’ da coisa ; o nominalismo negou que essa essência pertencesse à substância dela, dissociou-as uma da outra, colocando a essência na noção occamiana de ‘nome mental’ da coisa, de que os nomes das línguas virão a ser os instrumentos na Europa clássica : a oposição pensamento (res cogitans) / coisa (res extensa) é uma herança nominalista sem lugar (primacial) para os nomes, para a linguagem. E o ‘eu’ que pensa é uma coisa pensante, coadjuvada pela alma imortal. É esta que tem ideias inatas, as ideias cartesianas, que foram um enorme sucesso filosófico, rdtão para as palavras e para os discursos como as almas para os corpos, também podem ser imortais.
8. A alma imortal veio com outro gesto importante para a futura Europa ocorrido nos tempos do helenismo: foi a maneira como o platonismo, com os seus seis séculos de escola e de obra filosófica, se apoderou do jovem discurso que lhe apareceu no cristão Orígenes de Alexandria e o platonizou, como era seu hábito face ao que lhe chegava vindo do Médio Oriente, como diz o filósofo platónico Celso, anunciando Orígenes com uns 50 anos de antecedência. Foi este platonismo adaptado que venceu os concílios, contra os teólogos de Antioquia, donde vinham os hereges face aos de Alexandria. Ora, não se trata apenas de uma questão da teologia cristã, que terá o seu patrão em Agostinho de Hipona: foi com estas vestes platónicas que a filosofia foi transmitida às universidades medievais. Se é certo que Alberto Magno e Tomás de Aquino substituíram Platão por Aristóteles, gesto que valeu a citação de Heidegger no final do § 6, há que sublinhar que não o fizeram integralmente. Platão havia introduzido uma oposição entre alma e corpo, mas essa alma era imortal, isto é, susceptível de viver sem o corpo, com uma substancialidade inteligível, o que Aristóteles criticou no seu hilemorfismo, a alma como forma do corpo material: ora o Aquino, dependendo da sua condição de teólogo cristão, manteve a imortalidade da alma (ignorada pela Bíblia, que anunciava a ressurreição dos corpos, que era justamente o que desagrava a Celso, citado acima), dando um peso filosófico (teológico coberto filosoficamente) enorme à res que cogita, ao pensamento. É nestes diversos gestos que a filosofia europeia se constituiu, como muitos filósofos sabem, é claro.
9. Outro gesto pouco conhecido de que falou Isabelle Stengers em A Nova Aliança, que muito me intrigou e que Jules Vuillemin tinha esclarecido, foi a maneira como a critica kantiana da razão pura se moldou na física de Newton, buscando aí a resposta ao cepticismo de Hume que o acordou do “dogma” leibniziano: como é possível a verdade de Newton? Para a ciência, os conceitos do entendimento construídos sobre os fenómenos vindos da sensibilidade pelas formas a priori do espaço e do tempo, e as ideias puras, isto é sem sensibilidade (abstractas?), para a filosofia (e para a teoria?); trata-se da física de Newton, que desprezou as “qualidades”. A maior parte destes exemplos têm sido abordados neste blogue. Um deles, particularmente significativo que virá num próximo livro meu, é o de relevar o mesmo gesto critico de Aristóteles em relação a Platão e o de Kant em relação a Leibniz, em civilizações fortemente contrastadas, algo de impensável para uma philosophia perennis.
10. De que se trata nestes casos variados de implementação do pensamento filosófico ? Digamos duma forma simples, que são transformações de civilização que abrem novos horizontes às sociedades onde alguns pensadores se revelam capazes de filosofar, e cada um deles é sempre uma singularidade, um enigma, um leitor de pensadores anteriores em que a escrita se funda, fecunda. Nas duas emergências mais óbvias, a grega e a europeia, é a multiplicidade de manuscritos e de livros que aparece claramente como ocasião de pensamento, mas essa explosão de publicações é já índice de mais tempo livre (o tal ócio, que deu o nome à escola) que alicia gente nova para querer compreender quem são, para onde vão os humanos que assim desabrocham colectivamente, mormente com o Renascimento, navegação e artes humanistas, mãos que desenham, perspectivam, escrevem, se aliam com os olhos que até aí predominavam no pensamento. A derrota dos Gregos dá origem ao helenismo, a sua cultura tornando-se coisa dos Romanos mas também de outros cultos orientais, como o cristianismo, que por sua vez ganhou preponderância com a exaustão do império romano: a época que se seguiu, os longos séculos bem chamados ‘medievais’, atestam no seu vazio de pensamento, os seus monges intelectuais tendo-se dedicado à cópia de manuscritos, tarefa obscura e formidável que tornou possível um fenómeno que creio único na história dos humanos, a formação das universidades dos seculos XII e XIII que pegaram nesses manuscritos e em outros recebidos dos árabes e lendo e discutindo textos (sem experiêmcia, criticaram os renascentistas) que deram bases a uma nova civilização que (re) nasceu com uma bagagem cultural da Antiguidade. Foi esse sistema – que deu os pejorativos ‘escolástico’ e ‘académico’ – que tornou possível que a filosofia chegasse como berço de pensamento duma civilização (que logo soube de si como renascimento), fenómeno inédito na história humana, sem o qual não teria havido a modernidade europeia. Berço de acento cristão, é certo, a própria filosofia sendo a ‘serva’ (ancilla) da teologia, levada como foi no bojo da Igreja, bagagem que os Europeus completaram redescobrindo os grandes autores pagãos de Roma e o próprio Platão, traduzido para latim na segunda metade do século XV. Ora, são as novas comunas dos últimos séculos medievais que necessitaram dessas universidades, de se ultrapassar a teologia agostiniana para monges, camponeses e guerreiros para uma que tivesse a ver com as novas tarefas bem difíceis do urbanismo renascente. Depois, as mãos renascentistas inventaram o laboratório científico e com ele a filosofia reformulou-se, Bacon, Descartes e Hobbes. Kant e Hegel são já a transição para a civilização que se anuncia com o desabrochar formidável das ciências do século XIX: a revolução das próprias sociedades leva à importância ganha pelo tempo e as novas ciências serão da história: da terra e da vida, do trabalho ou economia, das línguas, dos textos.
11. O século XIX foi dominado pelas ciências que forneceram os grandes debates, a economia com Marx, a biologia com Darwin, a psicologia com Freud, deixando espaços, na margem do positivismo, para tentativas de tipo existencial, de Kierkegaard a Nietzsche, enquanto que no século XX a palavra de ordem de Husserl, de retorno às próprias coisas, teve dois surtos, um existencial (Heidegger, Sartre, Levinas...), outro de aliança da filosofia com as ciências sociais e humanas que estavam a impor-se atrás da linguística saussuriana no chamado estruturalismo – sem sujeito nem objecto – segundo o linguista Roman Jakobson. Em paralelo, o lógico contemporâneo de Husserl, Gottlob Frege, deu origem às filosofias ditas analíticas que mal conheço, mas em que as ciências puras e duras, como se diz, física, química e biologia, têm um lugar destacado que o estruturalismo ignorou.
12. Como dizer a relação das correntes fenomenológicas com este século XX, com uma metade disparatada e outra de reconstrução sobre as ruínas desses disparates, com uma pujança científica e tecnológica imensa, esta inclusive nas guerras? Do ponto de vista da fenomenologia geral em que me situo, esta pujança como que apagou o lugar tradicional da filosofia europeia, substituída pelas ciências sociais como fonte de conhecimento novo e de saber-fazer, mormente a economia[2]. Modestamente, como é timbre do pensamento que inova não ser entendido maioritariamente, colocou-se a essa pujança científica a questão heideggeriana do ser no mundo, a sua doação retirada como aberto às inscrições bio-sociais (desconstrução derridiana), à estruturação ‘interior’ dos ex-sujeitos e das ex-consciências pela ‘exterioridade tribal’ que a gera. E disso as várias ciências, se e quando o souberem, estremecerão na teorização dos seus paradigmas, além dos efeitos práticos de poluição (que estão inviabilizando a vida na Terra) resultarem dos eufemísticamente chamados “efeitos secundários” da experimentação laboratorial, que são de facto os efeitos imprevistos – o laboratório busca efeitos ‘primários’ na sua experimentação – que surgem fora do laboratório pelas aplicações tecnológicas (mas Hiroshima e Nagasaki foram efeitos primários como tal buscados, imensa nódoa da física quântica). É que a engenharia, desde Watt e Volta (a corrente eléctrica), é os gestos históricos do pensamento e do conhecimento terem-se tornado um imenso gesto que revolucionou a história, revolucionou as cenas que os laboratórios científicos deixavam fora dos seus muros, as técnicas apoderando-se de usos e quebrando as casas de antanho, criando usos novos e novas especializações e portanto unidades sociais como instituições de trabalho predominando sobre as famílias, alterando inacreditavelmente a paisagem da civilização. Mas há que acrescentar que a ganância capitalista é cúmplice desta poluição, sem que se perceba que a ciência económica cumpra a sua cientificidade nesta questão: pelo contrário, as correntes monetaristas que dominaram as últimas décadas e fomentaram as recentes crises parece continuarem a predominar, porque também produzem efeitos secundários no bolso dos economistas financeiros tornados gestores, numa ‘nova aliança’ da engenharia electrónica com a ciência económica nobelizada, de que são índice os grandes patrões multibilionários da Microsoft, Google e quejandos.
13. Para quem trabalha em filosofia, perceber que essa ‘nova aliança’ se apresenta como o resultado a jusante da fabulosa corrente de pensamento feita de descobertas e invenções filosóficas e científicas, o desaguar destas grandes paixões de vidas totalmente entregues ao pensamento, ao conhecimento e à compreensão das coisas e dos humanos, como se se tratasse do telos de dois milénios e meio da sua história, do seu alvo final. E as chamadas redes sociais, com as suas vantagens, é bem de ver, substituem os livros que impacientam os jovens apressados. Panorama desolador, uma catástrofe na expectativa do pensamento, da razão que Kant anunciou como estádio adulto da modernidade europeia. Mas a história conheceu épocas de desolação afins e é delas que ressurge o florescimento duma nova geração que não conheceu bons tempos e por isso teve que os buscar, que os fazer vir: entre os que nasceram já com a electrónica e se fartaram dos dislates que a habitam, que os seus predecessores não reconhecem como pares, como uma nova música estará já brotando a esperança que acolherá os vindouros.


[1] Nodet e Taylor, Essai sur les origines du christianisme. Une secte éclatée, Cerf, 1998, p. 23.
[2] Assim como novas artes cinemáticas: o movimento da luz permite um conhecimento que parte da ordem do sensível e que é fortemente atractivo; ora, o movimento foi a base quer da physica quer da física.

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