terça-feira, 30 de outubro de 2018

Experiência espiritual, o que é ?


uma tentativa fruste de auto-análise

O motivo de ‘ex-per-iência’
O meu caso



O motivo de ‘ex-per-iência’
1. Uma longa citação do meu texto neste blogue Prova e provação de Deus (16/08/2015) permite-me entrar no tema. Retenhamos do Dasein – do pensador da doação da fecundidade (múltipla, não ‘mono’, não ontoteológica), doação essa dissimulada, retirada – que o ek-sistir dos humanos é um -sistere sempre-já fora (ek-), exterioridade, ser-no-mundo[1]; a tão prezada por cada um de nós ‘interioridade’ vem-lhe da aprendizagem, dos rastos (memória) das experiências passadas, rastos esses que lhe permitem uma certa distância ou afastamento, um retiro, um Fort-sein[2], em relação ao Da- (proximidade, ser-o-aí), a esta ex-posição de exterioridade sempre-já. É este retiro que retém a identidade do humano, que o guarda enquanto ‘ele próprio’ nessas suas ‘saídas’, nessas experiências mais fortes que o alteram; ele provém dos usos recebidos dos antepassados, da repetição quotidiana, em que o seu ‘eu’ se vai afirmando, simultaneamente agindo fora e retirado, repetindo os outros mas segundo o seu talento, estilo, idiossincrasia, os rastos dos outros (heteronomia social) ficam esquecidos[3] como condição da sua autonomia, sem o quê seríamos loucos, sempre presos da exterioridade como alienação: o grande interesse deste motivo heideggeriano é justamente o de permitir pensar os humanos fora da oposição alma / corpo, sujeito / objecto, indivíduo / sociedade, como seres-no-mundo tribal, liberdades finitas reguladas para cenas aleatórias. Por outro lado, como se sabe, Ser e Tempo[4] é construído sobre uma experiência de antecipação da morte como mudança duma existência imprópria, inautêntica, em uma existência própria, autêntica.
2. ‘Espiritual’ será a experiência de sermos arrancados à nossa tribo (casa, família, instituição onde emprego), dum rapto, arrebatamento, duma provação que nos transporta, nos move, nos promete a muito mais do que a tribo, a “qualquer coisa de misterioso e de glorioso” (Leonardo Cohen): alteração, metamorfose, conversão, abertura dum caminho inédito sem medida comum com o que se era antes da provação do amor, antes da paixão ‘inaugural’. Tempo relâmpago, claro-escuro, tempo fora do tempo, tempo acontecimento, kairos no grego do novo Testamento, tempo tal que não se volta mais atrás. O destino mudou, uma (de)cisão se fez aí entre antes e depois. Fica-se assim cortado dos seus antepassados, do sagrado de outrora: é nisso que uma tal experiência é ‘moderna’, podem-se atribuir experiências assim aos Profetas que escreveram a Bíblia hebraica e aos Filósofos gregos, mu­tatis mutandis. E ainda aos santos de todos os tempos e espaços espirituais. Mas também, ainda que sem o acolhimento dito ‘fé’, aos grandes apaixonados em seus textos e obras artísticas e de pensamento, o que se chama cultura em sentido forte, que nos permite abrir como nossos difíceis itinerários humanos, nos dá algo como uma esperança em época tão mal tratada como a nossa.
3. Experiência é a palavra dum viajante em zona estranha, hostil. Tomada na sua etimologia latina, a palavra ex-per-iência diz um per-igo, a saída (ex-) de si, da sua identidade (tribal) assegurada até aí, o risco de per-ecer[5]; uma alteração pois da identidade construída a partir dos antepassados, mortos e vivos: a ex-per-iência é vida / morte / vida, uma morte na vida, uma sua alteração mais ou menos brutal. Ora bem, esta ex-per-iência, esta alteração decisiva, entre aqueles que sofrem a sua provação a um nível especificamente ético, há muitos humanos que a atribuem a Deus, ao totalmente Outro. Mas se o si de cada um é já tecido indefinidamente de outrem, desde a noite dos tempos ancestrais, como separar este totalmente Outro de todos os outros e de si mesmo? A ex-per-iência tornar-se-á rasto também ela, memória, outrem-em-si, si-como-outro-mais-si-do-que-si (‘inti­mior intimo meo’, dizia Agostinho de Deus: mais íntimo a mim do que o meu próprio íntimo, também vale de outrem, como os nossos sonhos atestam[6]): como é que ela aguentará a duração, já que haverá outras experiências sempre possíveis? Não é o próprio que decide; pode-se regressar duma ex-per-iência em que o ‘si’ se per-deu, per-eceu? Quem deciderá então? A (de)cisão está lá, indecidida todavia, pode ser que ela seja o futuro do -per- da experiência: jogando de novo com o que chamamos memória, refará a experiência de outra maneira, reabrindo o campo que ela tinha aberto, impedirá o si perdido de se perder, perdendo-o novamente. Como conseguir falar de tão fortes experiências, das seqüelas em toda uma vida do vendaval que a alterou, dos altos e baixos que inevitavelmente se sucedem? O -per- da ex-per-iência não a torna incomparável a qualquer outra experiência? Diz-se que o amor é cego, que não vê aquilo que toda a gente à volta vê. Mas é a cegueira dum visionário, ele vê o que os outros não vêem. É por isso que ele está aquém e além dos argumentos de pensamento. São usos, hábitos, contextos quotidianos, que mudam nessas experiências-acontecimentos de-cisivos duma vida que nunca mais será a mesma.

O meu caso
4. Foi no dia 30 de Março de 1953, eu ia nos 19 anos e meio, 20 contando com o tempo passado no ventre da minha mãe, em cujo calor começou a brincadeira. Uma semana após a morte repentina da minha avó materna, é por isso que me lembro da data, num retiro espiritual dirigido pelo P. Abel Varzim e organizado pela Juventude Universitária Católica no seminário dos Olivais. Estou sentado no coro da capela e sucede-me um transe, não tenho outra palavra para dizer, que me abarca o corpo todo, como um banho de água quente ou como um forte orgasmo sem sexo, sublimado. Dura poucos minutos, mas transforma-me noutro. Quarto dos nove filhos dum casal fortemente católico, no ambiente da capela e do retiro, não tenho a menor dúvida em atribuir essa experiência ao Deus dos católicos. Expliquei no texto citado de entrada sobre as razões porque não creio num Criador do universo terrestre dos vivos, mantenho todavia uma relação ao cristianismo (sem o amor do próximo, hélas!), que não sei dizer se é ou não de crença mas vive ainda do passado forte que então se abriu.
5. Durante muito tempo, fui extremamente discreto sobre esta experiência, quereria aqui reflectir sobre ela a partir de quem agora sou. Num texto recente sobre Maio 68, propus compreender a sua razão histórica pela transformação operada por ele, entre o seu antes e o seu depois; também esta experiência espiritual, quando não a interpreto já como a visita do criador, pede para ser avaliada pela transformação decisiva, pela ruptura que operou em mim. Quem era o rapaz que entrou nesse retiro espiritual? Alguém que se tinha tornado um ‘bom aluno’. Duas lacunas me aparecem no meu percurso de adolescente: não me lembro de ter alguma vez querido ‘quando fosse grande’ ser qualquer coisa (filósofo menos do que tudo, chumbei em filosofia no 6º ano do liceu, não percebia nada do que dizia o professor, sonolento em aulas depois do almoço, assim como o manual era ilegível); nunca ninguém me aconselhou ou incitou ao que quer que fosse que tivesse a ver com cultura ou com as questões do mundo (eu tinha 12 anos quando a guerra acabou), lia muito mas ao calhas. Fui um aluno razoável no liceu, o que aprendi estruturou-me a cabeça em áreas diferentes, gostava sobretudo de matemática, por isso fui para o Técnico, e depois para civil por exclusão das outras quatrco especializações então possíveis. Como sucede a muito boa gente, perdi-me completamente na transição entre o liceu, onde éramos bem enquadrados, com pontos e chamadas que nos faziam andar com os estudos em dia, e um instituto em que não éramos obrigados a ir às aulas teóricas e em que a matemática se tornou algo de incompreensível para mim. O que teve como consequência que comecei a passar muito tempo a jogar à bola no ringue da Associação de Estudantes, foi a minha boémia de menino de família numerosa sem cheta. No 1º ano ainda passei rés-vés, no 2º, com quatro cadeiras apenas, chumbei em três e só passei em Cálculo, a mais difícil, usei cábulas nos exames. Mudei então para a Faculdade de Ciências na Escola Politécnica, podendo frequentar algumas cadeiras do 3º, o que implicou bastante trabalho desde o princípio do ano, tendo conseguido passar a todas e voltar para o 4º ano do Técnico (com três cadeiras atrasadas que fui fazendo uma por ano) e reencontrar os meus colegas anteriores. Ora bem, foi nesse 3º ano na Escola Politécnica que se deu o tal retiro, o que significa que já tinha feito uma espécie de conversão de vida como ‘bom aluno’.
6. O efeito da experiência espiritual foi dar-me uma motivação de vida que eu não tinha, mas ela não jogou em relação aos estudos ou à futura carreira de engenheiro; o que fez foi criar motivos que não havia, militância da JUC e frequência da igreja, e igualmente me abriu a questões intelectuais e politicas, que começaram a desenvolver-se lentamente, pois que vinha do zero. Só olhando mais longe se percebe a mutação, quando larguei a ideia de engenharia, que nunca fora minha mas uma exclusão de partes de quem não sabia o que queria ser, nem tinha o mínimo de informação do mundo adulto para escolher. A escolha veio a manifestar-se depois, primeiro com a decisão de entrar para o seminário acabados os seis anos de licenciatura e mais tarde, depois da licenciatura em teologia em Paris, em 1968, e da ruptura com a condição de padre católico, com a decisão de prosseguir pela leitura materialista do evangelho de Marcos a que se seguiu, em Lisboa e na Faculdade de Letras, a inesperada possibilidade duma vocação filosófica – aberta no seminário por um extraordinário professor de filosofia, o P. Honorato Rosa –, sempre com um pé fora da filosofia, nas ciências, no cristianismo e na história europeia. O que se manifestou como efeito daqueles minutos de transe foi uma enorme paixão intelectual, totalmente ignorada pelo adolescente de 19 anos que foi ao tal retiro espiritual.
7. O que sugere que o ‘espiritual’ acabou por se desvanecer – não fui capaz de ser santo – e virar intelectual. Mas é possível que esta maneira de contrapor espiritual e intelectual, que levaria a ligar aquele ao evangelho e este ao filosófico, não seja muito correcta. Comecemos por distinguir intelectual e inteligente: este é quem compreende as coisas do mundo, além dos seus interesses próprios, aquele é quem sabe jogar com conceitos e literaturas. Há quem sem ter estudos superiores e sem ser intelectual seja fortemente inteligente e há intelectuais académicos que são burros de fazer dó (acontece-me em certos aspectos da vida). Os Profetas que escreveram a Bíblia hebraica eram intelectuais, tal como os Filósofos gregos, embora com concepções intelectuais diferentes, como mostra o livro de Daniel Sibony que liga o pensamento de Heidegger ao desses longínquos Profetas. Também o motivo de ‘espiritual’ tem que ser distinguido de ‘religioso’, que se constituiu como uma forma social englobante de toda a sociedade, desde o nascimento, enquanto que o ‘espiritual’ parte da conversão da vida e rompe com o aparato ritual e doutrinal da religião. Mas também o ‘espiritual’ não é a pôr apenas do lado da ética, que esta também tem incidências intelectuais, ainda que filósofos, cientistas e artistas possam por vezes rebaixarem-se eticamente. Seria tentado a pensar o que chamei ‘respiritual’[7] do lado do sopro na vida, mais do que da ética de que, melhor ou pior, muita gente dá provas em vidas que não são fáceis: ‘respiritual’ seria o sopro duma paixão que se põe acima do culto dos feitiços habituais, o dinheiro, o poder, as ortodoxias mediáticas, uma paixão que não transige, não se dobra em face do que impera. Sendo assim, ‘não ter sido capaz de ser santo’ – e é certo que não basta querer para o ser – não significará menos ‘respiritual’ (porque mais egoísta, por exemplo) mas mudança progressiva da tonalidade da vida com a afirmação da paixão intelectual. Que esta tem as suas maneiras de se manifestar ao próprio, através do que eu diria, utilizando um termo claramente espiritual, através da graça experimentada frequentemente como fecundidade da escrita bem além do que se pode e se sabe, experiência do inesperado, duma frase que ao se escrever, ao se terminar, abre outra sem que se saiba como. Será essa fecundidade que será dada aos grandes apaixonados.
8. Dito tudo isto, fica a questão: o que foi o transe, a experiência respiritual? Alguma coisa se libertou em mim que se revelou dinâmica para o resto da vida, durante 65 anos até hoje. O que é que podia ser? Não tenho ideia de que antes fosse angustiado, gostava de me rir, mas o que veio a seguir mostrou que, a chumbar no Técnico porque jogava à bola e a estudar estimulado na Escola Politécnica, faltava-me qualquer coisa que me permitisse distância em relação ao que fazia, pensar além do quotidiano e de mim. Haveria algo como uma falta de capacidade de me tornar adulto, uma adolescência retardada que assim se ‘desencadeou’? Porventura foi um escape à autoridade do meu pai nos tempos em que me vigiou os estudos e me ia buscar ao liceu onde ficava a jogar futebol ou matraquilhos no Jardim Cinema, o ‘bom aluno’ tinha-me enfim começado a libertar-me dele, naquele momento do coro da capela ter-se-á destapado parcialmente o recalcado do que Winnicot chamou o brincar infantil, antes da aprendizagens das regras da fala e da sala virem ‘calcar’ esse brincar primitivo do feto e do bebé, que marcará todavia esse regrado aprendido[8] dando-lhe um estilo pessoal. Seja como for, soltou-se a possibilidade de escolher enfim o que queria ser quando fosse grande: foi três anos mais tarde o renegar da ida para engenharia (que espreitara num estágio de verão feito na fábrica metalo-mecânica da Mague em Alverca), indo buscar claramente outra via que não a dum burguês beato e instalado, assim como doze anos mais tarde, achando-me marxista, a avaliação da situação clerical numa Igreja ligada demais ao salazarismo me fez mudar de rumo de novo sem saber para onde, mas sem largar a perspectiva cristã que a experiência dos 19 anos me abrira, procurando durante cinco anos – com emprego e casado, dois filhos – relacionar Marcos com Marx: foi o primeiro fruto da paixão, em que espiritual e intelectual caminhavam juntos. Depois veio o 25 de Abril e um ano mais tarde o convite inesperado para o departamento de filosofia da Faculdade de Letras, tendo como base curricular a publicação da Lecture matérialiste de l’évangile de Marc: sorte grande! (que devo ao Fernando Gil e ao Manuel Vilaverde Cabral, que mal me conheciam). Levou alguns anos a encontrar o fio do futuro, a tese sobre epistemologia da semântica da linguista saussuriana, onde Derrida e os duplos laços e, depois da tese, Heidegger, pensador da terra, encontraram o lugar principal na minha, agora clara, paixão intelectual.
9. Significa isso então que a desconstrução que operei do cristianismo, trabalhando sobre os textos dos seus primeiros quatro séculos, foi algo de puramente intelectual? O espiritual foi evacuado? Que tenha largado o que era a única possibilidade de exercer a teologia em que me licenciara em Paris e continuado esses cinco anos (1968-73) a trabalhar nas questões que me apaixonavam, que nunca tenha largado nenhum ponto criticável do cristianismo sem ser por argumentação, implica que houve – durante aliás toda a minha vida futura – uma espécie de docilidade intelectual no seio da atitude critica de busca que poderá ser o que sobrou do espiritual. Outra maneira de responder a essa questão, haveria que perguntar pelo que sobra dessa desconstrução: a resposta está num texto inédito[9] sobre a ética de fecundidade espiritual além do que se pode dos cap. 5-7 do evangelho de Mateus, o chamado discurso da montanha,  que outros passos corroboram. Ora, pode-se presumir que, sendo um texto da dita fonte Quelle, comum a Mateus e Lucas, sem influências nem gregas nem apocalípticas ou iranianas, sem referências teológicas à morte e à ressurreição, presumir que se trata da obra de pensador de Jesus de Nazaré, recuperado dos posteriores enfeites messiânicos ou divinos, como que saído do túmulo mitológico que o envolveu, como profeta espiritual alimentado pela tradição bíblica hebraica. O espiritual redescoberto pelo intelectual. Mas eu fico de fora,  estou a léguas dessa fecundidade, sempre estive.



[1] Que fenomenologicamente se traduz na maneira como a aprendizagem dos usos da sua tribo fazem dele um humano.
[2] J. Derrida (La carte postale de Socrate à Freud et au-delà, Flammarion, 1980, p. 342) aproxima o Dasein de Heidegger do Fortsein de Freud (o jogo infantil do Fort/Da em Para além do princípio do prazer), o que daria uma espécie de Dafortsein que aqui me inspira.
[3] O motivo derridiano do rasto implica o retiro e o esquecimento ou apagamento heideggerianos.
[4] M Heidegger, Être et Temps, [1927], trad. E. Martineau, ed. hors-commerce, 1985
[5] Como aliás no alemão (Erfahrung, experiência, Fahrt, viagem), creio que se trata do mesmo –per- na semântica latina, a da viagem fora da segurança do seu território, per-igo de per-ecer entre estranhas gentes, em suas línguas e usos outros. W. Bromeier, tradutor francês de Heidegger, "He­gel et son concept de l'expérience" (Chemins qui ne mènent nulle part, 1962, Paris, Gallimard) diz numa nota que este ‘-per-‘ “significa o movimento de atravessar, de ‘percer’ [em francês]” (p. 308). Ver ‘perig-‘ e ‘peregr-‘ no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2003, Lisboa, Círculo de Leitores, que, além de ‘experiência’ e ‘perito’, acolhe também ‘peregrino’, mas não ‘perecer’.
[6] Quando, deixados os outros, recolhido só na noite, olhos e ouvidos fechados, na maior intimidade, se perde a consciência de si no sono, nesse mais íntimo do que o seu íntimo, encontramo-nos fazendo parte dum povo de gentes estranhas e familiares, que fazem o que lhes apetece, por vezes nos fazem mal, nos levam para onde não sabemos nem sempre queremos.
[7] “exercício em torno de H2D”.
[8] Os dois princípios de Freud, o do  prazer e o da realidade.
[9] Versão francesa no meu blogue Questions au christianisme.  Ver o texto Da fecundidade espiritual, neste blogue (3/7/2018).

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