Conjunção ou justaposição / coordenação ou sintaxe
1. Uma forma geral de caracterizar os duplos
laços é dizer que eles ligam
os elementos dum ente ou
estrutura social e relevam de duas leis indissociáveis – nenhum dos laços pré-existe sozinho, não são dois laços mas um laço duplo –
e inconciliáveis – entre cada duplo laço e a cena dos outros todos por
razões diferentes consoante os domínios – : uma
das leis dá o movimento ao ente ou estrutura social a um como que ‘motor’
alimentado de fora, a outra, recebida das leis de circulação da cena como um
‘aparelho’ de regras que permitem ao ente (ou estrutura) circular (ou
reproduzir-se) na cena face aos outros que aí circulam, dando sentido à sua
circulação (como um automóvel, que serve de modelo simples). Aproveitando o
último texto publicado, a diferença entre as moléculas minerais dos graves e as
moléculas orgânicas das células permite um primeiro exemplo destes dois tipos
de duplos laços: as moléculas minerais (podendo sem dúvida misturarem-se como
no granito, no vinho ou na atmosfera, em que predomina azoto e oxigénio),
formam graves juntando-se moléculas iguais, ao invés das moléculas das células, especializadas em funções
diferentes criando uma ordem nova, o que, a partir do grego táxis (ordem) juntando o prefixo ‘com’ (syn), deu o termo linguístico sintaxe, de que coordenação é o
equivalente latino.
2. O simples não é deste mundo. A Terra é um imenso conjunto geográfico, com
zonas de selva e outras urbanizadas. Estas são compostas de unidades sociais diversas, familiares e de emprego, compostas de
indígenas e de utensílios, do que os filósofos chamam ‘entes’, os quais são por
sua vez ‘compostos’ (de partes mais simples, por sua vez também compostas) e
que são susceptíveis de movimento, de mudança. Essas partes mais simples que
compõem o composto, algo as enlaça de maneira que condiciona as possibilidades
de mudança do composto, que pode ser móvel na sua cena (exemplo com os animais
compostos de órgãos) ou ser apenas susceptível de ser movido por outros
(pedaços de inertes). Trata-se duma aproximação comparativa dos laços dos
compostos que ou serão por conjunção (ou justaposição) dos elementos homogéneos de que são compostos ou por
coordenação (ou ‘sintaxe’, ‘organização’ por via de ‘órgãos’) dos seus
elementos a partir da sua especialização; com efeito, é a especialização dos elementos que os compõem que define os duplos
laços por sintaxe. Os duplos laços do átomo ligam partículas – protões,
neutrões e electrões – os quais não subsistem por si sós, são particulas, bom nome que mantém bem o do átomo, etimologicamente
aquilo que não se divide. Nem o átomo sozinho nem por mais forte razão as
partículas são ‘entes’ ou fenómenos em sentido terrestre, são “entes de
laboratório”, como dizia um dos pais da Mecânica quântica, Niels Bohr.
A justaposição dos inertes
3. Do átomo à molécula: os 2
electrões livres (da esfera de atracção ao núcleo, em que estão retidos todos os outros) terão esse papel de força
atractiva que liga quimicamente dois átomos em moléculas, e depois liga esses
pares de moléculas a outros de número diferente de protões (a química feita por
fotões / electrões), pares esses, simples ou compostos, que são por sua vez
capazes de formarem com outros iguais graves macroscópicos sólidos, líquidos ou
gases, sobre os quais actua a gravidade. A lei de atracção da gravidade de
Newton exerce-se, segundo ele, entre quaisquer dois graves, mas nós não a vemos
a actuar entre dois objectos quaisquer que aproximemos um do outro como se
fossem ímanes, porque o laço de atracção da Terra sobre eles dois é forte demais,
o que leva a pensar que só uma grande quantidade de graves é que parece capaz
de ‘engravidar’ como astro. O que implica que, do ponto de vista da fenomenologia
que eu tento, a partir do motivo de duplo laço em cinco descobertas científicas
decisivas do século XX, os electrões acopulando-se com fotões (Feynman) são os
elementos decisivos que permitem desdobrar quimicamente a matéria desde o átomo
de hidrogénio até aos materiais oferecidos à gravidade para o fabrico de
astros, o sistema planetário do sol e planetas, e depois as galáxias todas,
todo este macrocosmos entregue às órbitas criadas pelas forças de gravidade e
expandindo-se por inércia, a qual supõe o laço nuclear de cada átomo como o que
lhe garante uma identidade perene, o que se terá dado aos nossos antepassados
como ‘eternidade’.
4. Se começo pelas estrelas é por as partículas à
solta que os físicos propõem para antes delas não me parecerem susceptíveis de
entendimento em termos de composição em laços, como disse acima. As estrelas
são, ao que eles dizem, formadas da conjunção de átomos de hidrogénio e de
hélio e as combustões que elas operam desses átomos estão na origem dos outros
átomos mais complexos da tabela periódica, que podemos dizer serem, segundo o
seu número de protões e neutrões, mais ‘especializados’ do que aqueles donde provêm,
sendo eles que deram origem aos planetas, nomeadamente à Terra em que todos
estes conhecimentos têm sido adquiridos ao longo dos séculos. Que as estrelas
sejam astros capazes de produzirem átomos até então inéditos, os dos graves dos
planetas, marca bem uma diferença – estrela / planeta – na génese da cosmologia
que veio a acentuar-se muito fortemente no planeta que inventou a vida. A
Terra, que Lovelock pensou – como Gaia – como uma unidade quiçá coordenada,
dá-se todavia como justaposição de compostos de três grandes condições, rochas
sólidas da crosta, mares líquidos e ares gasosos, litosfera, hidrosfera,
atmosfera. As suas mudanças são da ordem da química, que opera nas justaposições
em que os graves se encontram, e da ordem da física, segundo a gravidade que liga
o conjunto dessas três grandes
componentes como unidade planetária, em duplo laço que se faz com os laços dos
núcleos dos átomos impenetráveis. O que opera nestas conjunções que são os
graves, rochas, águas e gases do ar, são essencialmente electrões e fotões, que ligam átomos homogéneos para formar as
respectivas moléculas, e estas entre si para fazer os graves em suas dimensões,
mas têm que pressupor o papel das forças nucleares que ligam protões e neutrões e os retiram tanto das modificações químicas como das mudanças
provocadas pela gravidade. As explosões nucleares como as da gasolina nos
nossos carros, em que as partículas do núcleo e as moléculas líquidas virando
gás manifestam uma violência que as faz escapar à gravidade terrestre, parecem
sublinhar que esta actua essencialmente sobre esses graves que resultam das
conjunções de moléculas homogéneas. Ainda que estas conheçam de facto, com dominâncias
de elementos – sílica das rochas, água dos mares, azoto e oxigénio dos ares,
respectivamente – heterogeneidades significativas, sem todavia chegarem a uma
coordenação como o motivo de Gaia postularia porventura.
Foi a vida que inventou a sintaxe
5. A célula é o primeiro duplo laço que se faz
claramente como uma coordenação de moléculas heterogéneas altamente
especializadas, bem mais complicadas do que as que formam o planeta Terra: onde
há especialização tem que haver coordenação ou sintaxe, como em qualquer protozoário ou bactéria. Há um
paralelo curioso entre o duplo laço do átomo e o da célula: em ambos, a
movimentação interna é levada a cabo pela zona onde se fazem trocas da ordem da
química, electrões com fotões no primeiro, metabolismo na segunda, enquanto que
os laços restritos, os dos núcleos respectivos, têm em comum garantirem as identidades dos respectivos compostos, do átomo (moléculas de
graves) como a da célula (organismos), o que explicará que estes duplos laços
escapem ao modelo geral ‘motor + aparelho’ dos compostos (sendo que no caso do
átomo se garante também a inércia destes – graves e astros –, já que os
respectivos duplos laços incluem os núcleos atómicos). Em contraste com a alta
sintaxe da célula, as primeiras colónias de células cuja extensão cria uma
unidade animal na cena ecológica, serão simples justaposições donde lentamente
se farão embriões de órgãos, como proto-aparelhos digestivos muito simples
comuns aos vários anéis justapostos de vermes, por exemplo. O que é fortemente
aparatoso é como, tanto em invertebrados como em vertebrados, se dão estranhos
fenómenos de metamorfose que
parecem ao leigo ser (pelo menos nos vertebrados) a transformação de embriões
de tipo justaposto em adultos organizados com os seus órgãos alinhados em torno
de um esqueleto (de vértebras justapostas) com membros e músculos, o que exige
um sistema digestivo e respiratório com distribuição das moléculas da boca às
células todas e sistema neuronal que ‘sabe’ do conjunto e do ambiente próximo
da cena de forma a poder estimular a mobilidade para a necessária caça. O duplo
laço do organismo é constituído por este sistema que alimenta todas as células
e serve de laço ‘motor’ ao conjunto capaz de mobilidade que, laço ‘aparelho’,
constituído pelo sistema de órgãos de ‘ser no mundo’ (olhos, faro, ouvidos,
tacto da pele, sabor), a rede neuronal e cerebral e os músculos, se encarrega
da busca da necessária alimentação na cena ecológica.
6. Os órgãos (de tecidos feitos) destes dois
sistemas são as peças que os duplos laços animais ligam. A questão é: como é
que se fabrica a especialização das células dos tecidos? Barbieri termina o seu
livro pela confissão da ignorância da bioquímica de 1985[1]. As células do sangue, os glóbulos vermelhos, que
vão a todas as células, e os nervos do neuronal, axónios de neurónios, que
mobilizam os músculos – são ligações? Um, correlativo do genoma, o outro, do
aprendido – com as hormonas esteroides? Será que a embriologia esclarece a
questão? O sangue alimenta as células com moléculas, o neuronal mobiliza o
conjunto dos órgãos para a mobilidade necessária. Algumas etapas da composição
da anatomia, sabendo que se trata sempre do conjunto a ter que funcionar para
caçar e não ser caçado: ganhar esqueleto de vertebrado, ganhar sintaxe orgânica
além dos anéis com as metamorfoses, ganhar superfície neuronal para estratégias
mais complexas (neo-cortex). O que é que os electrões têm a ver com as células
e com as suas moléculas bioquímicas extremamente complexas, à base de carbono
nomeadamente? Essas moléculas são compostas por demasiados átomos que forças
intra-moleculares (electrões) ligam entre si; essa complexidade – que joga já
na diferença entre as moléculas que os glóbulos vermelhos do sangue levam,
aminoácidos, relativamente pequenas, que terão que ser sintetizadas, isto é,
compostas em moléculas mais complexas – parece ser a fragilidade mesma da vida, a sua mortalidade face à ‘eternidade’
das moléculas das rochas ou da água dos mares, será o que obriga ao metabolismo
incessante das células. Mas como os biólogos que eu li não falam nunca em
‘electrões’ nestas moléculas orgânicas, não sei acrescentar grande coisa a esta
hipótese. A biologia é com a embriologia que repete a evolução mas sem os obstáculos que esta enfrentou, usando
os truques que ela inventou em cada espécie e que o jogo ARNs/ADN retém;
depois, a memória do aprendido. O pouco que li sobre embriologia, já há algum
termpo antes de chegar a estas questões mais ambiciosas, não tinha nada a ver
com evolução, embora a velha tese de Haeckel, de que a embriologia recapitula a
evolução da espécie, pareça muito sedutora; um único exemplo: o líquido
amniótico do embrião, assim como o sangue que vai a cada célula, repetem a invenção
das células no mar, com a mesma percentagem de sal. As células nunca terão
funcionado fora do ‘mar’, o “meio interior” d Claude Bernard será um “mar
interior”.
A linguagem é só sintaxe
7. As línguas humanas, comparadas com matemática,
músicas (igualmente lineares na sua composição) ou desenhos de mapas ou
fotografias (sem essa linearidade, construídas em planos), são as únicas cujas
unidades, as palavras, são duplamente articuladas, donde os seus duplos laços,
segundo as duas dimensões da fala (parole), que a linguística saussuriana opôs à língua: a voz e o discurso. A voz é
a corrente sonora (ou a linha de letras dos textos alfabéticos como este) que
sai da garganta e entra no ouvido (que sai da mão que escreve e entra pelos
olhos), corrente essa que se percebe, pela energia implicada – na ex-pressão oral ou na im-pressão escrita – ser o ‘motor’ do fenómeno da comunicação;
mas que obviamente não é suficiente para ela, basta considerar que se ouve um
estrangeiro cuja língua se desconhece. A voz é feita de palavras articuladas por fonemas / letras, enquanto que o discurso articula-as em frases que permitem que o sentido do que
alguém diz se torne comum aos
que ouvem e partilham da mesma língua. Como é que o falar colhe as coisas do mundo a dizer de forma inerente a
esse dizer, como é que essa capacidade de colheita faz parte da língua? trata-se de palavras que são
nomes, de coisas ou gentes, de
acções ou qualidades, etc. A colheita é inerente ao nome, ainda que este
conheça deslocações metafóricas sempre possíveis. Se não forem nomes, são
palavras de sintaxe (sincategoremas medievais, preposições, conjunções...) das
que o são (signos ou categoremas, substantivos, adjectivos, verbos e
advérbios). Na frase, as preposições ligam sintagmas nominais ao verbo, as conjunções ligam frases subordinadas à principal: são, por assim
dizer, arremessos de desdobramento, de terceira ligação. E a cena? É a maneira
de nomes e verbos agarrarem
coisas, gentes e seus actos: criarem uma constelação de actantes, é para isso
que serve a linguagem de seres no mundo, dar a ver / ouvir a cena contada. Sem
conhecerem justaposições (talvez lengalengas, ladainhas...), que facilitariam a
aprendizagem da fala a bebés, estes recebem como automatismos o que a pouco e
pouco vão dizendo, quer dos sincategoremas da frase quer da articulação dos fonemas
de que cada palavra é feita, isto é aprendem a falar correctamente sem terem de
aprender escolarmente as regras da gramática, que nós continuamos a utilizar
sem pensar nelas nem gaguejar. Ora bem, há uma maneira de entender a dupla
articulação / ligação entre voz e discurso, atentando em quem, em sequência de
um acidente tipo AVC, seja afectado nos músculos da fonação e tenha que fazer
terapia da fala: esta exige-lhe algo de ‘impossível’, que dê atenção ao que
quer dizer e escolha as palavras convenientes para o seu discurso, mas que dê
também atenção à maneira como diz cada fonema da voz, aquilo que qualquer
falante faz automaticamente (também um estrangeiro tem esse problema, ficando-lhe
por regra um sotaque que lhe vem de não conseguir dizer alguns como os
indígenas).
8. A cena é feita das experiências (em sentido
lato, que inclui o que só se sabe de se ouvir dizer ou de ler) entre actantes
que se falam (eu / tu) – são os “discursivos” de Benveniste – ou repetem
acontecimentos outros que podem ser repetidos (narrativos) ou definem e
argumentam sobre essências, fora do espaço e tempo do eu / tu e dos verbos dos
acontecimentos, criando constelações de motivos de saber, do que, não dito por
eu / tu nem acontecido, permite compreender o que faz mover a cena (textos
gnosiológicos, como os da filosofia e das ciências, da matemática e da lógica).
Além de denotarem aquilo que nomeiam, os nomes em qualquer destes três grandes
tipos de textos criam conotações entre si no texto, estruturando-se como códigos que se vão dizendo / escrevendo, sendo o que liga os nomes e os verbos do esqueleto textual de
frases nessa constelação um código sequencial, outros códigos coadjuvando (analítico
e estratégico no evangelho de Marcos que li em tempos), assim como os vários
códigos paramétricos que se mantêm constantes ao longo do texto. Nos três tipos
linguístico-textuais de Benveniste, a instância de enunciação em torno do presente
(discursivo) e os códigos topográfico e cronológico em torno do aoristo
(narrativos) fazem parte dos códigos enquanto factor de desdobramento da frase
(dos linguistas) ao texto (dos semiotas); que sejam eles que são eliminados no
gnoseológico mostra que o paradigma dos sujeitos / verbos é o que estende a
frase para o texto, criando conotações textuais que são o factor principal:
aqueles dois fazem parte, marcando quer a espacialidade da enunciação quer a
temporalidade dos verbos, de forma radical nos narrativos, que o gnoseológico
reduz por efeito da definição. O discurso / texto é uma sequência articulada de
frases e é esta terceira articulação / ligação que é constituída pela repetição
de ‘actantes’ (que são lugares textuais que os textos singulares preenchem) na
extensão sequencial coadjuvada pelos códigos paramétricos. Tratar-se-á duma
quarta articulação de narrativos e gnosiológicos, a dos códigos formando
paradigmas que dão azo a corpus.
Os duplos laços das sociedades humanas
9. Antes de os abordarmos, ponhamos a difícil
questão do desdobramento entre dois níveis de cenas abertas pelas ciências europeias.
A invenção da célula, supondo um jogo de fazer e desfazer moléculas durante um
bilião de anos e a pré-existência entre elas de algumas capazes de sintetizarem
moléculas mais pequenas segundo a sua própria ordem bioquímica (Barbieri), é
por assim dizer completamente gratuita, face à zona da gravitação sem dúvida,
mas também à da ordem química, de tal maneira as suas probabilidades eram
diminutas (um bilião de anos!). Se se tem em atenção que essa invenção é a duma
estrutura conservadora, capaz de se auto-reproduzir tal e qual (é o grande
efeito do ADN, parece-me ser a consequência da teoria do biólogo italiano, que
trabalhou muitos anos na Alemanha), resulta que a evolução, que implica
alterações anatómicas, é fortemente improvável. Presumo que a descrição que
Jean-Marie Vincent fez das hormonas esteroides, lhes permite ter um papel de
impulsão de algumas alterações internas, mas antes de haver glândulas que as
secretem já houve muita evolução: de qualquer forma, os duplos laços com a sua
relação essencial à cena ecológica e à criação de entropia (Prigogine) poderão
fornecer uma base teórica plausível. Já no que diz respeito às sociedades, a
mesma contradição entre conservação e progresso existe mas é mais facilmente
explicável. O risco é que, em ambos os casos, compreender a evolução ou a
história, não sendo possível pensar as coisas apenas de baixo para cima, sempre o telos comande o desdobramento, embora de forma incipiente:
como evitar a teleologia? A resposta parece ser mais simples em história do que
em evolução, em que somos quase irresistivelmente levados a pensá-la como tendo
os humanos como o seu ‘fim’ (com a agricultura e a criação de gado como
‘vitória’ duma espécie na guerra da selva), embora não ‘finalidade’ (que
orientasse a evolução, lhe desse de avanço esse sentido). Resta saber se os biólogos
consideram que a agricultura e a criação do gado inventadas pelas sociedades
humanas e a respectiva “selecção” de variedades e raças fazem ou não parte da
evolução (porque não?). Em história, é mais fácil evitar a teleologia. O final
do ápice mediterrânico da Antiguidade, o império romano do Ocidente e o
intervalo de cerca de dez séculos até haver ‘renascimento’ do fio do progresso,
assim como, por outro lado, a extrema poluição que a tecnologia trouxe com
os seus benefícios, a crise em que
nos encontramos sob a ameaça do aquecimento global, qualquer que seja a sua
causa, estes dois exemplos a menos de dois milénios de distância (e já houve
algo de equivalente durante três ou quatro séculos entre a Idade do Bronze e a
do Ferro, entre os séculos XII e VIII), são suficientes para evitar uma teleologia.
10. A tribo é uma colónia de unidades
locais justapostas com usos e língua comuns, que trocam mulheres e bens e se
reúnem para fazer guerra e outros casos tribais: os conselhos de anciãos serão
os nós do laço político, os trabalhos (digestivo, etc) pertencendo às unidades
locais justapostas. São os desdobramentos que resultam de invenções técnicas
que vão estar na base da especialização das unidades locais: enquanto que as casas agrícolas permanecem numa
lógica de autarcia, de justaposição, nas vilas e cidades casas artesanais criam um laço
económico, o mercado, e as casas de guerreiros dominam o laço politico,
formando conselhos (côrtes) de governo, em torno do que rege, o rei, o laço
global social, religioso, se votando a glorificar os deuses de quem dependem as
fecundidades económicas, colheitas e rebanhos, como as do parentesco, a das
mulheres e as saúdes dos indígenas de que elas cuidam, como da alimentação,
enquanto que o justifica os guerreiros é a defesa do conjunto e, por jogo de
reciprocidade que é a guerra, o ataque dos vizinhos que se revelem mais fracos
e susceptíveis de derrota e vassalagem
11. As invenções abrirão também, a parti da
invenção da escrita a especialistas desta, nomeadamente literatos, filósofos e
cientistas, que virão a abrir escolas secularmente marginais (tal como aliás os
mercados) e, no alvor da Europa, laboratórios. Será deles que sairão as
máquinas, desde o vapor da segunda metade do sec. XVIII, e a electricidade e
da conjunção de ambas os motores
eléctricos e os automóveis e outros veículos e aviões a petróleo. Ou seja, a
revolução industrial que provocará, do que até aí era marginal – escola,
mercado, laboratório – uma explosão de especializações que rebentou sobre as
antigas casas agrícolas e a sua autarcia plurimilenária e as quebrou entre unidades
familiares sempre em justaposição entre elas e com paradigmas relativamente
equivalentes e unidades de empregos especializados, das quais depende o pão
para a boca dessas famílias. Mas todas as novas unidades locais (sem trabalho
alimentar), ao ganharem dimensão, precisarão de ‘conselhos de experimentados’,
à maneira dos antigos conselhos de anciãos tribais, que as governem como direcção
‘politica’ do laço interno da unidade.
12. Aos dois tipos de laços – por conjunção ou por
coordenação / sintaxe – há que ter em conta outros dois que se combinam com um
daqueles: os que fazem entes,
inertes e vivos, os que fazem unidades sociais de muitos vivos e as respectivas sociedades, uns fazem
coisas (inertes ou vivos), os outros estruturas de coisas. Assim, as células em
sua sintaxe justapõem-se em tecidos e estes em órgãos que por sua vez se
coordenam na anatomia do organismo. Numa casa de antanho, como nas famílias
modernas menos rigidamente, indígenas mais ou menos especializados segundo
idades e sobretudo género, funcionam no mesmo paradigma que os justapõe aos das
unidades sociais vizinhas. Nas instituições, num todo em sintaxe, o trabalho em
série coordena trabalhadore/as que repetem os mesmos gestos no que se pode
chamar justaposição consigo mesmo (rotina exacerbada, que é o contrário da
sintaxe especializada). E como encaixar no jogo de duplos laços dois tipos
espantosos de fenómenos biológicos: as metamorfoses e a transformação de órgãos
justapostos em órgãos coordenados em sintaxe, por um lado e por outro, a tese
sedutora de Haeckel, na geração a seguir a Darwin, segundo a qual a evolução de
cada espécie biológica é recapitulada pela sua embriologia. Claro que este tipo
de ‘recapitulação’ é para ser lido com muitas aspas, é preciso uma certa
quantidade de especialistas de épocas diferentes para estabelecer a sua
verosimilhança. Mas de forma não sequencial, até porque desconta o que se tem
por erros, é óbvio que a escola recapitula a história do saber ocidental,
como uma forma de embriologia social, desde a primária até aos seminários de doutoramento, e fá-lo através de unidades
textuais, manuais e sebentas não
sendo outra coisa do que recapitulação, começando pela definição e pela lógica
de argumentação inventadas pelos Gregos.
13. E a menção dos Gregos faz surgir uma questão
final: para que servem filosoficamente os duplos laços? Há que dizer que a grande ambição deste motivo é
o de substituir o motivo deAristóteles de ousia (essência / substância na versão latina), que foi
o nó da sua Physica enquanto
Filosofia com Ciências. Ela
serviu-lhe para disciplinar a argumentação das várias ciências gregas. A
primeira pretensão dos duplos laços gramatológicos é a de corrigir –
fraternamente para cientistas, de filósofo (com ciências, não vindo de fora) –
os erros que a ousia gerou nos
paradigmas das ciências, erros resultantes da operação de definição, a qual foi fundamental para as ciências, mas com
‘danos colaterais’ (ontoteológicos). Como a definição exclui a cena dos entes
definidos, como ‘ambiente’ de que relevam os “acidentes” na sua singularidade,
variáveis consoante os entes definidos, o coração da ousia, a sua essência, estava no próprio ente como
substância: ontoteologia, o
ente em si próprio com o seu eidos (o que dele se vê) que a teologia cristã tornará facilmente na criatura do
Criador, e a filosofia / ciência europeia na dupla de opostos sujeito / objecto. A primeira vantagem dos duplos laços é a de
colocar os fenómenos na cena, na sua singularidade (e não uma ‘essência’
abstracta), como efeito produzido por ela, cena, por nascimento ou fabrico ou
química. Ora, a ousia foi
pensada para compreender o movimento dos entes, fundamentalmente o dos vivos (os que crescem, phuô, donde physica). Esse motivo foi repudiado pelos
físicos e filósofos do sec XVII, e com ele as ‘causas’ associadas aos seus
‘sentidos’, as de matéria e forma por razões de inadaptação ao laboratório, cuja operação principal é a
medição do movimento, retendo apenas a de ‘motor’ (kinein, o que dá o movimento) e nomeadamente negando a
causa final (telos). Esse
repúdio generalizou-se, como se fosse uma tese filosófica imposta pela ciência
emergente (apenas a Biologia resistiu alguns séculos), em todo o caso
tornou-se, mais do que um erro, quase um delito herético. A questão é: e porquê
essa rejeição? Devido ao facto da Física ocupar-se de inertes, tendo a sua
extensão filosófica aos vivos provavelmente num fisicalismo latente: a Física
seria capaz de explicar um dia mais tarde o movimento dos vivos que crescem
(como hoje está conseguindo, mas com dificuldades fora da cena, em aliar
bioquímica e anatomia). Foi todavia ela que inventou máquinas em que o motivo
de finalidade é estrutural, como qualquer automóvel ilustra, ainda que venha a
ser automático, não deixará de ter destino em cada viagem, como um aspirador o
tem na limpeza duma casa. E qualquer vivo na busca de alimentação como meio
necessário para evitar a morte. Os duplos laços implicam justamente, excepto os
dos inertes e os das células, que um dos laços serve de ‘motor’ e o outro de
‘aparelho’ encarregado da direcção, do sentido da circulação, têm motor e
finalidade. O que mostra que o movimento dos fenómenos (ou ser movido no caso
dos inertes, mas todos o somos quando caímos estatelados ou no esforço a fazer
para andar e para trabalhar) implica forças / energias exteriores dadas pela
cena (ao ‘motor’), a começar pelo seu fabrico ou nascimento que constrói um
‘sentido’ (buscado pelo ‘aparelho’) que só o é na cena e em relação aos outros
entes dessa cena, sejam vivos, sejam instrumentos. Donde uma terceira vantagem
– os duplos laços implicam sempre, entre os progenitores e os fabricantes (com
seu direito de propriedade), que resultam de antepassados, de que recebem uma ‘marca’, que o nome de
família e do fabricante atesta. Se se trata de unidades sociais, os fenómenos
que elas ligam incluem outros nessa ligação como irmãos (ou primos; ou equipa
de trabalho) que são familiarmente comuns mas diferentes individualmente, como
atestam os gémeos como excepção da atenuação dessa diferença. Dito isto, só os
próprios especialistas poderão ajuizar do interesse eventual dos duplos laços
nas suas investigações, que obriga a questionar a oposição interior / exterior
nos seus paradigmas, o que já não é fácil e torna improvável que um
especialista seja capaz de atenção à dimensão filosófica (fenomenológica) do
mundo, mais difícil ser sensível ao jogo que eles permitem entre mais duma
ciência. Como é difícil por razões inversas de especialidade ao fenomenólogo.
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