“Imaginemos a extraordinária habilidade
de um malabarista,
que não pode interromper o processo
de manter todas as bolas no ar
sem deixar que alguma caia,
e temos uma representação teatral
da
vulnerabilidade e do risco da vida.
Pensemos [...] que está já a imaginar
uma actuação ainda melhor” (p. 57)
Homeostasia, anatomia, genes
Princípio de inércia e princípio homeostático
Os dois sistemas da anatomia, o ‘antigo’ e o ‘não tão antigo’
Energia: sentimentos e emoções
A oposição interior / exterior a desconstruir
O cérebro é um órgão simultaneamente biológico e social
A evolução e o malabarista
Homeostasia, anatomia, genes
1. “Deixei de me chamar um
neurocientista. Sou um biólogo interessado na mente e no cérebro” disse António
Damásio (AD) em entrevista a Clara Ferreira Alves[1],
a qual, perspicaz, comentou: “aqui está uma novidade; nunca tinha ouvido A.
Damásio dizer isto”. Trata-se com efeito duma revolução na sua caminhada de
cientista, a neurologia inserida no conjunto da anatomia, como faz esta
fenomenologia desde 1996, quando, inocência de leigo apaixonado, começou a
escrita de Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida (2007)
pelo seu capítulo 3 sobre as ciências da vida, e como se tem reclamado frequentemente
neste blogue a biólogos e neurologistas. Não contente com esta revolução, opera
uma outra ao contestar o primado dos genes que grassou durante as primeiras
décadas da biologia molecular e se tornou parte da ‘cultura geral’ do sr. Todo
o Mundo (que diz ‘faz parte do meu ADN...’): defende a “teoria do metabolismo
primordial” de Freeman Dyson (1999), tendo havido em seguida “uma série de
acontecimentos fortuitos que levou à geração de moléculas auto-replicadoras,
como os ácidos nucleicos”, os genes[2]
(A estranha ordem das coisas,
p. 62). Este novo livro de AD começa bem, no seu 2º capítulo já biológico, ao
pôr o ponto de partida e o fulcro da sua nova posição sobre a anatomia dos
vivos na homeostasia, indo
mais aquém do que fazia J.-D. Vincent há uma trintena de anos em Biologia
das paixões (1986), porque
jogando desde a célula (em 1970, já J. Monod aludia ao “estado homeostático do
metabolismo celular”[3]).
Segundo AD, é a homeostasia que permite ao vivo, ao unicelular, persistir e
prevalecer, isto é, sobreviver por um lado, e por outro florescer (42), ir mais além do que a reprodução de iguais.
2. Temos todavia que ultrapassar a posição de
todos os biólogos e neurologistas que li, descendentes de Aristóteles que
define os vivos como os que se movem por si mesmos (kath’autôn), definição essa que valoriza, por exemplo, a
“autopoiêsis” de F. Varela (63); temos que colocar o vivo como ser no mundo, na cena ecológica que o dá e deixa ser
autónomo em sua temporalidade
nessa mesma cena. Para isso, há que ligar a homeostasia à produção de entropia
positiva de Prigogine, que trabalhando – como químico e não como biólogo –
sobre a química do metabolismo celular, mostrou como este – duas mil
transformações químicas [incrível!] – cria uma estabilidade instável, uma estrutura
dissipativa (que lhe valeu o
Nobel de Química em 1977), ou seja uma homeostasia, sendo que esta só é
possível por haver uma fonte externa que alimenta energeticamente essa
estabilidade instável, essa criação de entropia. Ou seja, a homeostasia é correlativa da
alimentação do metabolismo por moléculas vindas da cena ecológica, o que obviamente confirma AD (65). É por isso que a noção de homeostasia (do sangue)
implica a de dois limiares, mínimo e máximo
(77), entre os quais ela oscila, a
descida perto do mínimo levando a pedir aumento que não pode ultrapassar o
máximo: é a esta demanda que corresponderá o que AD chama o “imperativo da
homeostasia”. Trata-se com efeito dum processo que tem a ver com as dimensões –
da célula, dos órgãos, do conjunto do organismo – que são possíveis a tal
espécie de seres vivos. “Sobreviver” significará então reproduzir-se dentro dos
limites a que a homeostasia corresponde e “florescer” será crescer paulatinamente
até chegar ao tamanho de adulto, movendo-se para se ultrapassar. Por exemplo
endócrino: há hormonas da fome que suscitam os comportamentos de caça, de captação de outro vivo e outras que fazem saciar-se, que além dum certo limite interrompe a entrada
de mais moléculas; também as células crescem até um certo tamanho e depois
dividem-se em duas mais pequenas que crescerão por sua vez. Para Damásio, há
neste ‘florescimento’ “uma projecção dessa vida no futuro dum organismo ou duma
espécie” (p. 42), “a homeostasia como impulsionadora da evolução” (p. 77). Eis
o que é novo, as “paixões” de Vincent incluídas mas talvez mais além; com o
risco duma finalidade? A dizer verdade, qualquer ser vivo tem uma meta de
espécie, no fundo é ela que Darwin considera na sua teoria da evolução, mas que
é limitada à espécie e manifestando-se nas variedades que desta resultam, após
se estabilizar endogamicamente (aludiremos de novo à questão evolutiva).
Princípio de inércia e princípio homeostático
3. Como caracterizar este fenómeno
base dos vivos? Damásio cita o físico Schrödinger, O que é a vida? (1944), que diz que “a vida parece ser o
comportamento ordeiro e correcto da matéria, não baseado exclusivamente na sua
tendência de passar da ordem para a desordem”, a vida ser uma força que se opõe
à “tendência natural de todas as coisas de procurarem a desordem” (p. 64), essas coisas que seguem o 2º princípio
da Termodinâmica, da degradação da energia como entropia que cresce negativamente
(Clausius); Schrödinger como que anuncia a
entropia positiva de Prigogine. Poder-se-á então contrastar a homeostasia com o
princípio da inércia próprio
da física e química mineral, a qual inércia não é algo de intrínseco ao grave
mas significa que o seu estado de repouso ou de movimento depende de haver ou
não forças da cena da gravitação incidindo sobre ele. Talvez se possa dizer
que, do ponto de vista das transformações químicas (um pedaço de ferro que se
oxida ao ar), a inércia implicaria uma ‘abertura’ à proximidade na cena da
gravitação de outro grave (o oxigénio do ar), tal que os respectivos electrões
livres se atraiam mutuamente para criar um novo grave composto (óxido de ferro).
Então a proposta de Damásio levaria a considerar o princípio homeostático como característico dos seres vivos, a
auto-regulação da oscilação resultante do fluxo de moléculas vindas das fontes
externas de alimentação, respiração incluída: essa auto-regulação, a autonomia
de cada vivo (com regras recebidas da heteronomia da espécie), em que os genes
têm um papel importante, mas Damásio frisa que posterior: “faz sentido aventar
que o imperativo homeostático, tal como se manifestou nas primeiras formas de
vida, terá sido seguido pelo material genético, e não vice-versa” (66); pode-se
dizer que foi o citoplasma que veio a precisar dos genes, estes definem-se pela
sua função no metabolismo, antes da reprodução celular.
Os dois sistemas da anatomia, o ‘antigo’ e o ‘não tão antigo’
4. Chegados aqui, podia-se esperar um programa biológico de
leitura da anatomia animal que permitisse situar cabalmente as investigações
sobre a mente e o cérebro, como diz, lamentando o fenomenólogo que AD não
acentue mais claramente a sua
lição de O Livro da consciência, a de que a mente não é outra coisa do que os neurónios cerebrais, enquanto
só o próprio[4] lhes tem
acesso, confortando no leitor que não leu esse livro a lição cartesiana
dualista de que tão primorosamente nos libertara. Todavia a expectativa
gorou-se: a anatomia do biólogo, provavelmente dos biólogos em geral, é uma
colecção empirista de órgãos, ao fenomenólogo foi mais difícil do que é costume
a leitura, dada a diferença entre as duas filosofias[5].
Mas houve uma excelente compensação, uma das suas propostas principais, que
permite uma diferença essencial para o autor entre sentimentos e emoções,
indica duas regiões anatómicas decisivas, caracterizadas na sua manifesta
novidade para AD de forma muito curiosa, pela cronologia da sua invenção na
longa evolução do mundo animal: “mundo interior ‘antigo’” e “mundo interior ‘não tão antigo’”. O primeiro “é o mundo interior do metabolismo,
com as sua respectivas químicas, vísceras, como o coração, os pulmões, os
intestinos e a pele, e os músculos lisos [...] paredes dos vasos sanguíneos e
os invólucros dos órgãos” (118). Correspondem-lhe “termos como bem-estar,
fadiga ou desconforto; dor e prazer; palpitações, azia ou cólicas [...]
constrição da faringe e da laringe que ocorre quando sentimos medo, ou a das
vias respiratórias e o arquejar dum ataque de asma [...] ou tremores” (118-9).
O “mais recente é dominado pelo esqueleto e pelos músculos a ele ligados
(esqueléticos), ‘estriados’ ou ‘voluntários’. [...] São usados para andar,
manipular objectos, falar, escrever, dançar, tocar música e operar maquinarias
[...] A estrutura corporal global, dentro da qual se situa parte do mundo visceral
antigo, é o suporte sobre o qual se drapeia [...] o mundo antigo da pele [...],
a maior das nossas vísceras. [...] A estrutura corporal global é o cenário onde
se encontram os nossos portais sensoriais [...] as regiões da ‘moldura’ corporal onde estão implantados os dispositivos
sensoriais, bem como estes” (119), os quais são dados a partir dos tradicionais
cinco sentidos, dos quais o quinto, a pele, “está distribuído por todo o corpo”
embora irregularmente, concentrados nas mãos, na boca, nas zonas mamilar e
genital (119-120)[6]. Sua
proposta: do mundo antigo, “os sentimentos retratam o interior do organismo”
(149), como exemplos de forma geral, o bem estar e a dor relativos às vísceras
do abdómen, tórax e pele e seus processos químicos, contracções ou descontracções
de tubos respiratórios, intestinos ou vasos sanguíneos (150), e ainda a
consciência das pulsões de fome ou sede (146). Em contraste, exemplos de
emoções que correspondem a movimentos do mundo não tão antigo,: “a alegria, a
tristeza, o medo, a fúria, a inveja, o ciúme, o desprezo, a compaixão e a admiração”
(146).
5. O mundo antigo é o mundo do metabolismo, disse o início da
explicitação, “da regulação fundamental da vida” (121), o que há de músculos
(lisos) nele foge ao controlo voluntário, é caracterizado pela espontaneidade
ou automatismo dos seus movimentos ou ritmos, pelos sentimentos que são gerados
nele. O que contrasta bem com o mundo recente, que é justamente o da mobilidade em relação com
a cena exterior em que se é. É possível que alguns leitores mais frequentes dos
meus textos, se os há, sejam capazes de reconhecer na maneira como costumo
apresentar as anatomias animais estes dois mundos de Damásio como
respectivamente o sistema da alimentação e o sistema da mobilidade. Com toda a
franqueza, fico com o sentimento de que, se acontecer que venha a ler este
texto, possa AD aprender com o fenomenólogo algo de biológico, por muito
estranho que possa parecer. O mundo antigo da alimentação é aquele onde a
anatomia obedece à componente química da lei da selva: alimentar todas e cada
uma das células do organismo, além de água e oxigénio, com moléculas orgânicas,
tal como o mundo mineral inerte não as tem e que a fotossíntese fornece às
plantas (glucose, com as moléculas de carbono que são essenciais em todas as
moléculas orgânicas) e que os herbívoros vão buscar a estas, sendo por isso
presas, por sua vez, dos carnívoros. Neste processo, aprendo por minha vez com
Damásio que os automatismos
são a regra de toda a movimentação do sistema de alimentação, o coração e os
pulmões nomeadamente, e que os sentimentos que nele se geram espontaneamente relevam da homeostasia que regula todo
o sistema (Claude Bernard e J.-D. Vincent), permitindo preservar e florescer a
homeostasia de cada célula, contribuindo para a do órgão de que faz parte, e
para a da sua reprodução, quando é o caso[7].
Quanto ao mundo mais recente, é aquele onde a anatomia obedece à componente
guerreira, por assim dizer, da lei da selva, que é pulsionado pelo que AD chama
o imperativo da homeostasia a
caçar ou buscar ervas, assim como a fugir de ser caçado por mais forte ou
astuto, sendo obviamente, ensina Damásio, o reino das emoções, das ‘moções’ surgidas de dentro (e-, como também
‘esforço’ diz uma força que vem de dentro). O cérebro articula os dois sistemas,
regulando endocrinologicamente a homeostasia do sistema alimentar e daí
pulsionando a buscar na cena as moléculas que aquele exige, sendo provável que
no duplo cérebro de aves e mamíferos, o novo córtice se especialize nas tarefas
estratégicas da selva que incombem ao sistema da mobilidade, antes de virem a
ser a base da cultura humana a que AD aponta nos últimos capítulos.
6. A sensação que fica no leitor
fenomenólogo é a de presumir que se AD tivesse dado por esta lógica
estritamente biológica da constituição das anatomias animais, todas, em tão grande diversidade,
invertebrados e vertebrados, incluindo a dos humanos[8],
determinadas por esta lei
da selva, poderia AD ter
distinguido melhor o que em nós releva da biologia e da cultura; pode ser que o
fito de chegar a esta tenha impedido maior atenção àquela. Por exemplo, o tratamento
da violência, que “contra os outros humanos [...] não precisa de ser
justificada pela fome ou por lutas territoriais” (p. 239-240): ora, é justamente
a lei da selva que é a responsável da evolução dos músculos esqueléticos como
das astúcias de ataque e de defesa, seleccionados bem antes dos humanos. Outro
exemplo seria a seguinte afirmação: “não temos maneira de saber ao certo
quando, nem como, teve lugar a emergência dos sentimentos na evolução; todos os
vertebrados têm sentimentos e quanto mais penso nos insectos sociais, mais
desconfio que os seus sistemas nervosos gerem as respectivas mentes simples com
versões básicas de sentimentos e de consciência” (177). Mas aqui põe-se uma
questão mais vasta. A noção de mente do Livro da consciência pareceu-me inerente a toda e qualquer rede
neuronal, por incipiente que seja: onde há neurónios, o animal sabe de si, toscamente que seja, terá pois uma mente sua, é
consciente na sua mobilidade, ao seu nível. Parece que Damásio guarda um conceito
humano de mente e consciência como modelo que aplica para trás e busca a respectiva
emergência sem ser nos neurónios, quando me parece que são os seus graus que as
anatomias ao longo da evolução podem testemunhar: se ouso pôr hipóteses de
saltos, de invertebrados para vertebrados, metamorfoses nuns e noutros, cérebro
duplo de aves e mamíferos, invenção cultural de usos técnicos e de linguagem
com melhoramento progressivo.
Energia: sentimentos e emoções
7. O motivo central da homeostasia na sua relação
essencial à regulação da energia presta-se a uma reflexão geral que, do ponto
de vista fenomenológico, me parece ir longe. O esquema de AD pode resumir-se
assim: quando há movimentos inesperados no mundo visceral (sistema da
alimentação), geram-se por homeostasia sentimentos que podem implicar
igualmente por homeostasia emoções no sistema de mobilidade que levem a
comportamentos tendendo a uma solução possível do surgido inesperadamente.
Partirei dum excelente esquema de O Erro de Descartes[9] sobre a expressão de emoções entre corpo e
cérebro, a qual é susceptível de suceder segundo dois mecanismos, um em que a
emoção provém do corpo como força energética que se exprime cerebralmente (o
esquema é dum duplo anel, o do corpo e o do cérebro) e outro, dito de
simulação, em que o corpo é curto circuitado completamente (só há um anel, o
cerebral). A discussão entre AD e outros autores supõe que os dois casos se
põem em alternativa, mas o fenomenólogo, que nada sabe de laboratório, entendeu
que os dois casos da figura podiam também representar a aprendizagem dum uso: o duplo anel diria o lento esforço de aprender,
com a energia corporal que isso implica, e o anel de simulação diria justamente
a poupança energética que sobreveio no uso tornado espontâneo e rotineiro. Ora,
desde que haja aprendizagem – que é progressiva com a complexidade do sistema
de mobilidade e respectivo sistema nervoso –, haverá este processo de primeiro
duplo anel e depois anel de simulação, o que acrescenta um ponto importante à
lição de AD: se é certo que o sistema de alimentação, o seu mundo mais antigo,
é caracterizado pelo carácter automático dos movimentos, percebe-se agora que
no outro sistema também se vem a conseguir como meta um equivalente automatismo, o da habilidade espontânea ganha por quem antes
não sabia usar, algo que permanece um dos meus grandes espantos em biologia. A
energia da emoção que ‘dá’ o esforço de aprender, retira-se, ‘(dis)simula-se’
na repetição mais ou menos automática conseguida: subindo um patamar para a
disciplina seguinte, a antropologia, estes usos são agora o nível ‘mais antigo’
do funcionamento de qualquer unidade social, família ou emprego, todas supondo
no seu funcionamento as rotinas dos seus habitantes. As invenções de novos usos
repetem o duplo anel e a grande despesa energética dos inventores, que será
muito mais mitigada junto dos que os aprenderão até chegarem à rotina. Ou seja,
a homeostasia de Damásio verifica-se fecunda ao nível antropológico e até
histórico, se pensarmos nas invenções de conceitos filosóficos ou nas
descobertas científicas que se tornam depois ‘paradigmas normais’ rotineiros
(Kuhn) após essas revoluções. Ou também os movimentos espirituais que queriam
reformar as estruturas eclesiásticas, beneditinos, franciscanos, dominicanos e
outros, e depois confissões protestantes, todos surgem com grande força
espiritual contagiosa que ao cabo de poucas gerações seguintes se tornaram
rotineiras, tal como aquilo que queriam reformar. Sendo assim algo de bastante
geral como característica da homeostasia, é possível também estender o interesse
deste mecanismo à evolução biológica, naquilo que diz respeito à esmagadora
maioria dos exemplos de Darwin e da sua “luta pela existência”, que têm a ver
justamente com o ‘mundo interior recente’ de AD e em que se pode pensar assim
os efeitos da homeostasia: primeiro, ganham-se rotinas de comportamentos na
luta pela existência na selva, segundo, essas rotinas vêm a ser corroboradas
por mutações genéticas que as tornam hereditárias. Grande vantagem de Damásio
dar primazia à homeostasia sobre os genes! tornando-se prigoginiano sem o
saber.
A oposição interior / exterior a desconstruir
8. Peguemos então na questão filosófica mais
difícil, a da “filosofia espontânea dos sábios”, título dum livro de Althusser
que nunca li, mas restituo do meu ponto de vista: a filosofia recebida nos
liceus em qualquer disciplina, científica ou humanística[10],
que releva da tradição europeia e da oposição entre alma / corpo, alma-corpo /
mundo, cérebro-mente / ambiente, em resumo, a oposição entre interior e
exterior que vigora ainda em
muitas ciências e até filosofias modernas[11].
Não se trata de inverter esta oposição mas de a desconstruir, inserindo ambos
os termos na cena ecológica que os torna possíveis: esta cena, vulgo
‘ambiente’, é prévia a cada organismo que nasce e que dela tem que receber o
alimento que o fará crescer autonomamente, auto-regulando essa alimentação (que
aliás tem que procurar). Seja o exemplo da linguagem que, reduzida pela
tradição filosófica europeia a ‘instrumento’ do pensamento, continua em AD a
sê-lo, ao falar de “uma faixa verbal pessoal que traduz imagens que surgem do
mundo exterior, mas também as imagens que chegam do mundo interior” (207), as
quais imagens são “mapeadas” quer do mundo externo quer do mundo interno (130).
Como se o cérebro tivesse a iniciativa de ‘mapear’ imagens recebidas e depois
de as ‘traduzir’ em palavras. Basta pensar como uma criança de 3 ou 4 anos diz
frases sintacticamente correctas, com preposições, morfologias verbais e
nominais, e por aí fora, pensar como nós próprios formulamos as nossas frases
de forma automática no que diz respeito à sintaxe e à morfologia, para perceber
que não há ‘tradução’ nenhuma, assim como não houve aprendizagem expressa
dessas regras linguísticas nas línguas maternas, ao contrário da aprendizagem
escolar de línguas estrangeiras. Ora, este automatismo (homeostático) das
frases é indiscutivelmente ‘externo’, na língua que já lá está quando nascemos,
ela que é a mesma para todos os falantes da tribo, e nesse sentido não é “uma faixa verbal pessoal”, já que foi
‘recebida’, mas é-o quando se
fala, quando dizemos o nosso próprio pensamento ‘pessoal’ com a língua da
tribo. Ou seja, a oposição externo / interno é neutralizada pela fenómeno da
aprendizagem, o que é ‘passivo’, pois que recebido, torna-se mecanismo ‘activo’
de fala. Tal como o ovo ou zigoto recebido dos progenitores – homeostasia do
metabolismo e genes reguladores – que, também ‘passivo’, é deposto no útero
feminino como ‘activo’: o que o ovo recebe é a própria potência da espécie,
heteronomia, como condição da autonomia do novo indivíduo, a ser alimentado
pelo sangue e depois pelo leite da mãe, a ter que aprender os usos da tribo,
para que a sua homeostasia venha a jogar autonomamente. Do que se propôs no §
anterior, deduz-se que a homeostasia damasiana inclui sistematicamente esta
passivactividade como sua condição, esta marcha permanente com um pé fora que
dá e um pé dentro que regula o que recebe a partir de regras que recebeu. Esta
homeostasia, do sistema e do que de fora constantemente o alimenta, é mais
difícil de pensar, como também é difícil ser malabarista. Difícil para os
neurologistas pensarem como o cérebro joga com a linguagem[12]
e com as suas emoções, como ela as exacerba como paixões de todas as artes e
todos os excessos mas também as contém e racionaliza: sempre este jogo entre
razão e paixão foi mal-estar insolúvel do pensamento filosófico e psicológico.
Eis o que incita a aceitar a proposta de Damásio: a própria homeostasia resiste
às nossas tentativas de pensá-la.
O cérebro é um órgão simultaneamente biológico e social
9. O que haveria que corrigir sistematicamente na
prosa de AD por razões duma fenomenologia da homeostasia? Muita coisa, sem
dúvida, limito-me aqui à noção de ‘mapeamento’ ‘criado’ pelo cérebro, que tem o
grave inconveniente de o separar do corpo e do mundo, noção essa a ser substituída pela de grafo de J.-P. Changeux, que implica a de ‘gravação’
como trabalho energético; tal como leio O homem neuronal, o que os ditos órgãos dos sentidos fazem é
gravar[14]
o que AD chama “cadeias de circuitos neuronais” (137), recebidas para actuarem
(passivo->activo): pensar por exemplo faz-se em frases cujos nomes e verbos
vêm relacionados com as coisas que dizem, que também foram aprendidas, a ver,
mexer e nomear. Por certo, não é fácil saber como é que estas coisas se passam
no cérebro, mas que pensar se faça por frases encadeadas sugere que sejam estas
redes de cadeias de circuitos gravados que são activadas, uma
notícia referente às experiências de J. Gallant[15]
sugerindo que as palavras se encontram espalhadas por todo o córtice segundo paradigmas semânticos de usos quotidianos.
Mas também o que se vê é gravado electroquimicamente em grafos, próximos
provavelmente dos seus nomes, na sequência complexa da “projecção de padrões
luminosos na retina” (210), expressão de AD que sublinha o que eu chamaria a
‘iniciativa da visibilidade’ do mundo externo, em detrimento da noção de
‘mapeamento’: esta atribui à criatividade do cérebro aquilo que ele começa por
receber de forma repetida – uma criança pequena leva muito tempo a aprender a
segurar num copo, dizia na Tv o neurologista Rui Costa – até que se grave e se
torne cerebralmente activo, nesta matéria cinzenta de química e electricidade.
10. Eis o que resiste mais à nossa compreensão
destas coisas neuronais, que se trate apenas de química e de electricidade. A
electricidade industrial é de electrões de metais e outros
bons condutores, a neuronal é de iões de sódio e potássio, prestando-se a trocas
químicas nas sinapses[1]. Dada esta diferença, seja uma comparação. Ao telefone, reconhecemos a
voz de quem nos fala, ela chegou transformada em corrente eléctrica e depois
virou de novo voz humana que diz tal e tal coisa : não é óbvio, mas a frequência
acústica duma voz e a sua frequência eléctrica telefónica são as mesmas. A ideia que me fica do que leio há muitos anos dos neurologistas é a
de que é também assim, mutatis os mutandis que disse acima: a nossa mente é estruturalmente aberta ao que
vê, ouve e mexe lá fora e que no sistema neuronal se transformou em
electricidade química em suas operações cerebrais, estas sempre ligadas ao mundo que recebe de fora e agindo muscularmente (falando,
fazendo) nele ; ela é a mente dum ser no mundo. É muito ‘materialista’,
creio que é muito difícil de ‘aceitar’ isto, mas quando se aceita que nós
não somos só ‘corpo’ mas seres no mundo, dando-se importância à gramática e à tabuada, é algo de
fabuloso : tudo o que amamos e admiramos, todo o humanismo, tem o seu
segredo na homeostasia deste neuronal corporal. Inacreditável ! É certo
todavia que o mundo, que inclui as outras pessoas, é muito mais bonito do que
as nossas vísceras, que felizmente nós não vemos.
11. Ora, segundo o Livro da consciência, é a rede de sinapses neuronais a que só o
próprio tem acesso que é a mente. E provavelmente é também a memória, que no fundo não é senão o conjunto cerebral dos grafos de todo o nosso
saber, de si e do seu mundo, que, enquanto conjunto, está ‘esquecido’, fora do
circuito que está agindo em cada circunstância, mas sempre apto a vir à baila
quando o que se está a jogar o solicita. A mente humana – aquele que age e fala
em seu nome – parece ‘ser vista’ nas luzes das pantalhas laboratoriais dos
neurologistas, acendendo-se e apagando-se interminavelmente: ela também é
homeostática, oscilando entre as redes de sinapses ‘atentas’ que se vão
sucedendo, oscilação maior quando a atenção cessa para uma rede agora
descontraída, relaxada, poupança energética antes de voltar a nova
concentração. Ou, ao fim do dia, oscilação da relaxação ao deixar-se adormecer,
e outra ainda entre o sono pacífico e o paradoxal dos sonhos agitados. Estas
oscilações homeostáticas trazem zonas de memória à consciência desperta, se for
certo que esta é tudo o que fica ‘esquecido’ em cada momento para que atenção
haja: à medida que vamos ouvindo ou lendo, falando ou escrevendo, fazemos
associações do que temos em mente com outra coisa que está na memória e é
chamada a jogo, muitas vezes razoavelmente mas de vez em quando da forma
inesperada que se diz ‘inspiração’, onde porventura a noção damasiana de
homeostasia ‘floresce’, como ele diz de maneira tão bonita, faz flores e
florestas. O pensar é florestal, donde a noção de cultura que Damásio procura homeostasiar.
A evolução e o malabarista
12. Damásio propôs a noção de “imperativo
homeostático” e chegou mesmo a chamar-lhe “jugo despótico” (260), o que me fez
franzir os olhos de leitor, só alguns dias depois deste texto escrito me tendo
apercebido da boa razão para um tal despotismo, que funciona nas considerações
sobre a cultura humana como um motor. O interesse do tema é vasto, ele permite
reavaliar a questão daquilo a que Darwin chamou selecção natural e que os biólogos actuais dizem ser um
‘mecanismo’, que obviamente não é, como o não é a selecção humana de criadores
de gado e de agricultores; na Origem das espécies ela funciona apenas como lógica imanente dos
fenómenos biológicos, Darwin chama-lhe “lei” ou “princípio” e claramente que no
seu texto tem como função opor-se à doutrina tradicional da criação divina das
espécies. E o problema é saber se há e o que é um tal “mecanismo” da evolução:
a proposta de AD, que não fala assim, é a de que será a homeostasia e o seu
imperativo. Ora, como tenho tendência a pensá-la como ‘equilíbrio’, e a não ter
directamente em conta o imperativo, só a evocação de Prigogine me fez perceber,
embora ele não dê importância à biologia além da química do metabolismo: a
questão da alimentação é primordial todavia e, sem o negar, AD não lhe dá a
devida conta em parte nenhuma do texto, certamente pela pecha do paradigma que
privilegia o interior sobre o exterior, como se só o primeiro é que fosse
‘biologia’. Ora, nos animais a homeostasia é o equilíbrio oscilante do “meio
interior” de Cl. Bernard, que alimenta a mini-homeostasia de cada célula do
organismo, e é o teor em nutrientes do sangue que indica a necessidade dum
interdito: ‘nós, as células todas, precisamos de ser alimentadas, senão
morremos’. E o organismo tem que ir à busca de ervas ou presas para responder.
Ora, desde que se saiba que os dois sistemas articulados pelo sistema neuronal,
o da alimentação e o da mobilidade, o ‘antigo’ e o ‘recente’ de AD, são o
desencadear e a resposta a esta necessidade estrutural, segundo a lei da selva,
percebe-se que o tal mecanismo, que ajuda a perceber a célebre “luta pela
existência” darwiniana, será justamente o do interdito da homeostasia em nome
da alimentação e o da caça pela mobilidade, a conseguir essa alimentação. Caça
e fuga de ser caçado, questão de vida ou de morte: se o vivo não come, morre. Porque a
homeostasia, em terminologia prigoginiana, é produção de entropia, de uma
estabilidade instável que, se falhar, vira entropia negativa, a de Clausius,
degradação que é a morte do vivo. Que está aqui o segredo da evolução, da vida,
basta pensar que a lei da selva que exige a constante alimentação determina a anatomia de todos os sistemas animais na sua
imensa variedade, invertebrados e vertebrados. O título deste texto está
justificado, Damásio colocou a homeostasia como segredo da vida.
13. Gostaria de também justificar a exergue do
malabarista como figuração homeostática, algo que está já lançado na acrobacia
das bolas no ar que lhe vão passando pelas mãos: o ponto é que as bolas não
caiam no chão. Passa-se o mesmo com o sistema planetário ou com a lua, os
planetas estão lançados em movimento num malabarismo que é das forças de
gravidade deles e do sol, sem paragem possível em que se apoiassem. É o caso da
homeostasia: não tem assento, joga-se no ar, numa estabilidade instável. A interpretação
proposta no § 6 das duas figuras do primeiro livro de AD (fig. 7.6) permite
compreender a figura dos dois anéis como a da aprendizagem dum uso mais ou
menos complexo (guiar um carro, por exemplo), o duplo anel dizendo como o
sistema corporal de mobilidade despende energia até o uso ser conseguido, o
anel só mostrando como então entra o ‘malabarista’, que guia espontânea e
habilidosamente, como se estivesse ‘acima do chão’, sem apoio. É o que acontece
quando falamos (na escola com duplo anel, aprendendo saberes disciplinados) ou
corremos ou fazemos as rotinas da casa ou do emprego. Mas assim como se supõe
alimentação diária, também é certo que este fazer quotidiano entre espontâneo e
atarefado obriga a repouso de várias horas nocturnas: a homeostasia precisa
destes apoios para recomeçar na manhã seguinte. Animais como plantas à sua
outra maneira, são formas – oh quão diversas! – de malabaristas. Bem haja,
Damásio, pela sua bela lição.
[2] Que é compatível com a
teoria de M. Barbieri (1985) que no entanto coloca o papel de ribossomas replicadores
na génese do metabolismo, ignorando todavia a homeostasia.
[5] Ao empirismo
acrescenta-se uma psicologia das “faculdades” que na filosofia do século XIX ainda era dita como “faculdades da alma” (Lalande, Vocabulaire technique et critique da la
philosophie).
[6] A pele provavelmente
pertence aos dois sistemas, que o sistema neuronal articula. Há ainda o sistema
sexual.
[7] Células dos
ossos, da pele, etc., mas não, por razões essenciais de memória, os neurónios
que somos enquanto ‘mente viva’ no mundo.
[8] Que se
libertaram da ‘selvajaria’ da lei da selva com a invenção da agricultura e da
criação de gado.
[10] Que na
ascendência universitária americana actual tende a ser uma vulgata do empirismo
anglo-saxónico.
[11] A proposta
que aqui se segue supõe a sua ultrapassagem, se dizer se pode, pelo motivo do ser
no mundo e de doação
da autonomia
temporal por heteronomias que se dissimulam para deixar ser aquela (Heidegger), retomados mais
radicalmente pelo trabalho de inscrição (rasto ou différance de Derrida). É o que me permite
reler as grandes descobertas científicas com um olhar novo.
[12] Assim como a tabuada no
mundo das quantidades, contas e medidas, a linguagem é para o cérebro o que a
alavanca é para os músculos : aumenta-lhe as possibilidades. Por exemplo,
a de contar um acontecimento passado longe ou antigamente, ou anticipá-lo por
uma receita.
[14] Criando
sinapses, segundo Kandel (2007), nos seus vermes de mar que aprendem a reagir a
certos sinais.
[15] Público, 28 / 04 / 2016.
[1] O engano da gente de Sillicon Valley que trabalham com silício na Inteligência Artificial é julgarem que a electricidade de electrões que esta usa é o mesmo que a electricidade de iões das sinapses que trabalham com carbono. Um ião é, no caso, ou um átomo de sódio ou um átomo de potássio, os quais se podem transformar quimicamente um no outro trocando um electrão excedente : se a electricidade industrial, que Volta inventou ao inventar a pilha em 1800, fizesse o mesmo com o cobre, por exemplo, a corrente dava cabo dos cabos ou do hardware dum robot. Segundo as experiências de Kandler, em que aprender é criar sinapses, o que se passa no cérebro é que é o software, aquilo que é aprendido, que se torna hardware, impossível fisicamente para as máquinas de sílica. A dizer verdade, espanta-me que este engano exista, que o Vale do Silício não tenha dado pela coisa, eles a quem Inteligência Natural é que não falta.
2 comentários:
isto é muito grande, longo, para um blogue... ninguém lê tanta coisa... bjs, um leitor
Tamanho para quem busca informação! Parabéns!
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