1. Há alguns anos, a Sociedade
Portuguesa de Filosofia lançou um inquérito, pedindo aos seus sócios uma lista
dos vinte textos do século XX mais importantes do seu ponto de vista, que aliás
foi um fracasso, apenas três respostas. Na lista que enviei, havia um pequeno
artigo de meia dúzia de páginas que ainda hoje considero luminoso, embora o
autor já se tivesse esquecido dele, como me confessou quando lhe contei que
fazia parte do meu top 20: ora, esse texto sugeria nada mais nada menos do que
o mecanismo social ligado à aprendizagem pelo qual se incentiva a diferença
entre o pensamento (dianoia)
que se tem em diálogo consigo mesmo e o discurso (logos) com outros, de que escreve o Sofista de Platão (263e). Tratava-se da lógica da
conversa[1],
com o filósofo americano P. Grice que propôs um “princípio de cooperação” entre
os dois (ou mais) parceiros da conversa, com quatro máximas a que devem
obedecer: quantidade da informação prestada, sua qualidade verdadeira, relevância
para a conversa e modalidade de clareza e brevidade. François Flahault, além de
criticas da primeira e da última máximas e da própria noção ‘moral’ do
princípio de cooperação, retoma as outras duas através da elaboração do espaço
da conversa duma forma que me fascinou e que nunca encontrei em mais nenhum
lado: conversar não implica nenhum contrato de cooperação, cada locutor não
pode falar ao mesmo tempo do
que o outro, já que o “conflito inerente a um lugar em que não há lugar para
dois encontra-se estruturalmente gerado, não há senão um fio da conversa (é por
isso que se diz tomar a
palavra, cortar, dar a
palavra); noutros termos, o que se diz, vale, deve valer para os que ouvem” (p.
74). Mas então, continua ele, cada um no seu tempo de fala tem que conseguir
que o(s) outro(s) o escute(m), tem que mostrar que é pertinente, que o que diz merece ser ouvido. A conversa
releva dum conflito em que se procura convencer o outro e é onde sem dúvida se situa o
extraordinário leque de entoações de que as línguas dispõem, que se pode
observar ouvindo em redor de nós, a qualquer nível é raro quem não ponha na
conversa o peso todo para ser considerado pertinente no que diz, inteligente,
informado, em não ser desconsiderado como estúpido ou ingénuo, pior um pouco,
como doido (competente no que se faz é a outra vertente das reputações). A
inflamação das entoações nas discussões televisivas é um espectáculo delicioso,
com muitas variantes, a ‘razão’ devendo resultar da pertinência do que se diz,
o altear da voz, o crescendo das entoações sendo o reconhecimento implícito de
que ela está falhando no conflito. Resta a máxima da ‘verdade’ de Grice, que já
de si é contestada pelo facto de que ninguém é obrigado moralmente a dizer
todas as verdades a toda a gente, a verdade só é eticamente exigível em relação
a quem tem direito a ela, ensinou-me o meu primeiro mestre, o P. Honorato Rosa,
isto é, deixa de lado as questões de etiqueta em que mal iria ao mundo se toda
a gente dissesse o que pensa ser verdade. Mas o argumento de Flahault
relaciona-a com a pertinência: para se ser pertinente no que se diz, tem que se
medir o que se vai dizer e reservar, o termo é dele, algo como um foro interno da fala, que permita a
distância ao interlocutor ou, como se diz, permita ‘pensar duas vezes’ antes de
falar, permita dissimular
nesse foro o que haja de impertinente: e eis que encontramos de forma inopinada
a mente de Damásio, lá onde só o próprio tem acesso, a sua reserva. Se se tem em conta que desde miúdos se riem de
coisas que dizemos, nos castigam por vezes e premeiam outras, percebe-se que, à
medida que vamos aprendendo a falar, vamos também aprendendo a dissimular o que
vamos percebendo não ser conveniente, pertinente em tal ou tal situação,
aprendemos a ‘pensar’ mentalmente, a guardar segredo, a ter távcticas.
Flahault, sem aparentemente dar por isso, encontrou o mecanismo de construção
da interioridade como distância em relação ao próximo. Entre outras consequências, isto ajuda a
perceber um mistério da história intelectual europeia: a percentagem muito grande,
em proporção ao resto da população, quer de judeus quer de gays entre os
artistas e os intelectuais: provavelmente a constrição a que foram sujeitos em
meios anti-semitas e machistas forçou-os a desenvolver o seu mundo interior
secreto, obrigando-os a um esforço maior de compreensão do seu contexto, dos
outros, mas também contribuindo para descobrir linhas de paixão como liberdade
sua e saída para aceitação social. Pois se aprender a dissimular é poder
aprender a mentir, isso põe a questão da lei da verdade nesta estrutura de conflito da linguagem: por
isso mesmo que há conflito e que a língua é a mesma para todos da tribo, ela só
pode funcionar se o axioma da pertinência se conjugar também com um axioma da
verdade na relação entre os nomes e as coisas, dois axiomas igualmente prévios
à ética. A maneira como as anedotas brincam constantemente com a linguagem mostra
bem como ela pesa sobre nós, o riso traz um alivio, embora também devido a
pesos sociais, trabalhos e vários tipos de conflitos e rivalidades. Mas a capacidade
de dissimulação é também poder aprender a ser actor, escritor de ficções, e
ainda aprender que se pode errar, enganar-se, que a verdade das conversas e das
escritas é uma coisa boa mas por vezes difícil, e por aí fora: é algo que tem
uma grande relevância ética justamente por term como condição que todos
aprendemos a dissimular, tal como a paz recebe a sua relevância da lei da
guerra. Já que a dissimulação é uma boa arma de guerra, como se pode perceber
lendo Nietzsche.
2. Um texto póstumo dele, Sobre a verdade e
a mentira no sentido extra-moral (1872), que li em
contraponto com a Poética de Aristóteles[2],
após uma fabulosa fábula – “num canto
qualquer afastado do universo espalhado no flamejar de inumeráveis sistemas
solares, houve uma vez uma estrela na qual animais inteligentes inventaram o
conhecimento; foi o minuto mais arrogante e mais mentiroso da ‘história
universal’, mas foi apenas um minuto; alguns suspiros da natureza e a estrela
congelou, os animais inteligentes tiveram que morrer” – desenvolve uma tese
sobre o intelecto e o conhecimento que resume bem esta citação. “Enquanto é um
meio de conservação para o indivíduo, o intelecto desenvolve as suas forças
principais na dissimulação (Verstellung); esta é com efeito o meio pelo qual os indivíduos mais frágeis, menos
robustos, subsistem como sendo aqueles a quem é recusado conduzir uma luta pela
existência com cornos ou com a mandíbula aguda dum animal de predação. No humano
esta arte da dissimulação atinge o cume: a ilusão, a adulação, a mentira e o
enganar, a coscuvilhice, os ares de importância, o brilho de imitação, a
máscara, o véu da convenção, a comédia para os outros e para si próprio, em
resumo o circo perpétuo da adulação por uma labareda de vaidade são de tal
maneira a regra e a lei que nada é mais inconcebível entre os humanos do que a
vinda dum instinto de verdade honesto e puro”.
3. Nietzsche em 1872 ainda é
professor em Basileia, se não leu, ouviu certamente falar da publicação, 13
anos antes, de A origem das espécies, a quem vai buscar o quadro para colocar a questão do conhecimento, no
‘minuto’ cósmico que durará um ou dois milhões de anos: arrogante, esse minuto,
e mentiroso. Que a arrogância e a mentira faziam parte dele, também congelaram.
A dissimulação é uma forma geral da astúcia, termo que diz melhor o carácter
guerreiro que pode ter a mentira no sentido extra moral, mas que convém tanto
ao conhecimento como a ‘verdade’, já que qualquer novo conhecimento, qualquer
nova verdade, só pode resultar dum lento processo de dissimulação em relação à
verdade instituída que for vencida. Ora, a astúcia foi herdada com os músculos
da evolução submetida à lei da selva e da guerra: a “luta pela existência”. É
este quadro cósmico e evolutivo grandioso da ciência sua contemporânea que o
filósofo encena para situar o teatro mundano de Basileia, o conhecimento é um
meio de conservação dos indivíduos na luta pela existência: o teatro mundano
que o texto vai fustigar é sem dúvida o da universidade que abandonará brevemente
para o ar livre da montanha de Zaratustra, as guerrazinhas académicas com os
seus “ares de importância e brilho de imitação”. Todavia, este início grandioso
que liga conhecimento e dissimulação não busca desvalorizá-los enquanto competição
com animais de cornos e mandíbulas, mas bem pelo contrário quer fustigar o humano
de razão, só de razão, e valorizar o artista como o grande dissimulador. “Este
instinto que leva a formar metáforas, este instinto fundamental do humano de
que não se pode fazer abstracção um instante só [...] procura um novo domínio
para a sua actividade e um outro leito de fluxo e encontra-os no mito e sobretudo na arte; continuamente confunde as rubricas e as células
dos conceitos instaurando novas transposições, metáforas, metonímias;
continuamente mostra o seu desejo de dar a este mundo presente do humano acordado
tão confusamente irregular, tão incoerente, uma forma cheia de charme e eternamente
nova como sucede no mundo do sonho”.
4. Antes, o texto como que se viu forçado
a ‘admirar’ o humano de razão. “Há que admirar aqui o humano por ser um
poderoso génio da arquitectura que consegue erigir , sobre fundações móveis e
de certa maneira sobre água corrente, um edifício conceptual infinitamente
complicado; em verdade, para encontrar um ponto de apoio sobre tais fundações,
tem que ser uma construção como que feita de fios de aranha, fina que baste
para ser transportada com a onda, assaz sólida para não ser dispersa pelo sopro
de pouco vento. Pelo seu génio da arquitectura, o humano eleva-se muito acima
da abelha: esta constrói com a cera que colhe da natureza, ele com a matéria
muito mais frágil dos conceitos que só pode fabricar a partir de si mesmo. Há
que admirá-lo muito aqui – mas não pelo seu instinto de verdade, nem pelo puro
conhecimento das coisas”. Estas fundações móveis sobre água corrente do
edifício dos conceitos da filosofia e da ciência ocidental, ou se se preferir
este edifício sem fundações, pode ser lido como a intuição do pensamento com jogo
das diferenças, que não é feito a
partir da ‘verdade’ duma realidade exterior mas tece-se de maneira a bastar-se
enquanto o tão difícil de pensar texto sem fora de texto (Derrida), mas que a
homeostasia de Damásio no coração do mundo dos humanos permite compreender, ou
seja a estabilidade instável de Prigogine, estável sem fundação.
5. O texto termina contrastando-os a ambos, “o
humano racional e o humano intuitivo, [...] um no medo da intuição, o outro no
desdém da abstracção; e o último é quase tão irracional quanto o primeiro é
insensível à arte. Ambos desejam dominar a vida: este sabendo afrontar as
precisões mais importantes pela previdência, a prudência, a regularidade;
aquele, enquanto herói ‘alegre demais’, não vendo essas precisões e não tomando
como real senão a vida disfarçada em aparência e em beleza. Aonde, talvez como
a Grécia antiga, o humano intuitivo dirige as suas armas com mais força e mais
vitoriosamente do que o seu adversário, uma civilização pode-se formar
favoravelmente, a dominação da arte pode-se fundar na vida: esta dissimulação,
esta negação da indigência, este brilhar das intuições metafóricas e sobretudo
este carácter imediato da ilusão acompanham todas as exteriorizações duma tal
vida. Nem a casa, nem o marchar, nem o vestir, nem os jarros de argila traem
que a necessidade os atingiu: parece que neles devia-se exprimir uma felicidade
sublime, uma serenidade olímpica e em certo sentido um jogo com o sério. Enquanto
que o humano conduzido pelos conceitos e as abstracções faz deles uma defesa contra
a infelicidade, sem sequer obter a felicidade a partir dessas abstracções,
enquanto aspira a ser libertado o mais possível dos sofrimentos, ao contrário,
posto no coração duma cultura, o humano intuitivo colhe já, a partir das suas
intuições, ao lado da defesa contra o mal, um esclarecimento de irradiação
constante, um florescimento, uma redenção. É verdade que ele sofre mais
violentamente quando sofre:
sofre mesmo mais vezes, porque não se entende a tirar lições da experiência,
cai sempre no buraco em que já caiu. É tão pouco razoável na dor como na
felicidade, grita muito alto e fica sem consolo. No seio da mesma desgraça,
como é diferente o estóico, instruído pela experiência e dominando-se por meio
do conceito! Ele que não procura ordinariamente senão sinceridade, verdade,
liberdade face às ilusões e protecção contra as surpresas enganadoras, coloca
agora na infelicidade a obra prima da dissimulação, como o outro na felicidade;
não tem um rosto humano móvel e animado, mas leva em certo sentido uma máscara
com os traços dignamente proporcionados, não grita nem altera o som da sua voz:
quando uma nuvem justa de aguaceiro desagua sobre ele, esconde-se no manto e
afasta-se com um passo lento”. Dois estilos de dissimulação, antes da ética.
6. Também a Bíblia hebraica testemunha de que a
dissimulação é anterior à ética: ela predomina na cena célebre de Adão e Eva,
que merece ser relida deste ponto de vista. Trata-se dum paraíso vegetariano de
frutas, mas com uma árvore interdita, a do discernimento entre o bem e o mal,
isto é, da responsabilidade, o que significa que nele não há ética, apenas a
sua previsão como possibilidade ligada à morte. É essa previsão que vai lançar
uma figura exterior, uma serpente caracterizada como “o mais manhoso de todos
os animais”. A manha consistirá em desmentir a razão do interdito dada por
Iavé: “Nada disso, vocês não morrem! Iavé sabe que no dia em que comerdes o
fruto, os vossos olhos abrir-se-ão e sereis como deuses, que conhecem o bem e o
mal”. Eles acreditaram e descobriram que estavam nus – primeira dissimulação, a
vergonha – esconderam-se (jogar às escondidas é um elemento essencial da
dissimulação, entre crianças e entre ladrões e polícias), e depois desculpam-se
diante Iavé, Adão com Eva, ela com a serpente, as dissimulações são em
catadupa. Mas o melhor ainda está para vir, após os castigos[3] quando Iavé se justifica: “eis que o
homem se tornou como um de nós para discernir o bem e o mal”.
Afinal, a manha da serpente é
requintada, mente como se estava agora a verificar nos castigos e diz a
verdade, já que tinha razão ao dizer que eles se tornavam como deuses: é o
próprio Iavé, ao confirmá-lo, que se revela ser o grande dissimulador.
7. Já agora, há quem conte a história desta
narrativa segundo três versões. A primeira (Gen 2,4b-9a,10-15, 18-24) termina
com a criação de Eva, é um mito da origem do matrimónio, promovida a mulher já
que “tirada do homem” (e não de argila, como ele): “é por isso que o homem
deixa o seu pai e a sua mãe e se liga à sua mulher e ambos se tornam uma só
carne”. A segunda (Gen 2,9b,16-17, 3,1-13,20-24) é a cena do fruto interdito e
da dissimulação, que termina com a expulsão do paraíso e a mortalidade, com o
reconhecimento divino de os humanos serem como deuses – porque dissimulam e
conhecem o bem e o mal – mas mortais: seria a maneira hebraica da diferença em
relação aos animais (em contraste com a alma imortal platónica). A terceira
(Gen 3,14-19) é que traz o castigo e releva da época do exílio de Israel em
Babilónia, servindo de ‘moral da história’ para fazer do mito das origens a
causa remota dessa derrota. A segunda versão dá-nos uns
Adão e Eva positivos, uma espécie de Prometeus hebraicos que, em vez do fogo escolheram a responsabilidade do
conhecimento, decidiram arriscar a morte,
seguindo a serpente manhosa, para “abrirem os olhos e serem como deuses que
conhecem o bem e o mal”, como Iavé ratifica, implicando além da morte o
trabalho, como as consequências que o mito elucida, alem do matrimónio, ma não
como castigo.
[1] Dossier La
Conversation. Communications 30,
1979. Inclui P. Grice, “Logique et conversation”, pp. 57-72 e F. Flahault, “Le fonctionnement de
la parole. Remarques à partir des maximes de Grice”, pp.73-79. Tratei deste
motivo em A conversa, linguagem do quotidiano. Ensaio de Filosofia e
Pragmática,
Presença, 1991
[2] Leituras de
Aristóteles e de Nietzsche. A Poética, Sobre a verdade e a mentira, F. C. Gulbenkian, 1994. O texto de Nietzsche
encontra-se traduzido em português num volume com o título geral de O livro
do Filósofo.
[3] As dores do
parto e a dominação do marido em relação à mulher em relação a ele o duro
trabalho da terra amaldiçoada também, a mortalidade (era antes que eram
imortais como deuses) e a expulsão de ambos. Não são arbitrários: são os sofrimentos que
acompanham as grandes bênçãos que são o nascimento de filhos (que são mortais)
e as colheitas agrícolas.
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