1. Não se trata duma invenção,
resulta do pensamento fenomenológico enquanto “retorno às coisas”, mas
desligado da ‘consciência’ husserliana e do ‘Dasein’ heideggeriano e chegado à
gramatologia derridiana e à sua posição aberta às ciências. Ainda que se possa
discutir se o percurso destes três grandes pensadores releva da invenção ou da
descoberta, parece-me muito claro que a chegada à Fenomenologia geral (‘geral’
designando a diferença em relação ao percursor, a quem ficou ligado o termo
‘fenomenologia’ como capítulo da história da filosofia) releva duma descoberta, em sentido próximo do que o termo tem em
ciências, conotando que havia algo na dita realidade que se desvelou à
investigação. Com efeito, a Fenomenologia geral estava – na história do
pensamento greco-europeu – à espera de ser descoberta, é isso que tentarei
escrever brevemente.
2. Digamos que se trata da relação
entre Aristóteles e o pós-kantiano Husserl, entre dois gestos de “retorno às
coisas”, gesto este cuja história já um dia evoquei neste blogue. A ousia traz a ‘essência’ platónica (o que se conhece) à
‘substância’ (realidade) de cada coisa individual, para explicar o seu
movimento, aquém dos respectivos ‘acidentes’: é o que está na génese da Physica como filosofia, o que permitirá desenvolver as
diversas ‘ciências’ aristotélicas, à base de definições. Isto durou uns vinte
séculos, até Galileu e Newton entre outros, em que essas novas ciências são
parte especializada da Filosofia, como hoje a Estética ou a Ética: princípios
matemáticos de filosofia natural,
o título do primeiro grande tratado de Física faz fé de que o seu autor se
considerava um filósofo que fazia filosofia natural, cujos princípios
matemáticos por sua vez atestavam que se tratava de uma ciência nova, que arrebanhou
aliás o nome da filosofia aristotélica, se chamou Física porque de compreender
o ‘movimento’ se tratava (embora apenas do deslocamento local, no chamado
‘espaço’, para que os Gregos não tinham nome, e não já do crescimento e
alteração que dizia a palavra phusis). O nome é incerto, na Academia das Ciências de Paris (1666) o conteúdo da
nova ciência é incluído com a astronomia nas matemáticas, enquanto o nome
‘física’ engloba química, anatomia e botânica; ainda no meio do século XVIII,
na Encyclopédie, a flutuação
do termo ‘física/o’ é notável; nas universidades burguesas dos inícios do XIX,
os nomes das várias disciplinas já estão repartidos à nossa maneira. A novidade
do sec. XVII, matemática (geometria) e laboratório (de mecânica), acrescentada
à antiga filosofia (da definição), foi-se sobrepondo à filosofia natural (os
‘naturalistas’ faziam o que chamamos biologia, termo de 1802 (Lamarck), ainda é
como Darwin se designa a si e aos seus colegas): a ciência que usurpou o nome da
antiga filosofia veio a ganhar, tornando-se claro para Kant que havia que
distinguir os dois tipos de conhecimento, o da ciência e as categorias do entendimento
dum lado e do outro o da filosofia e as ideias da razão. Ou seja, para que as
ciências se pudessem desenvolver fora da matriz filosófica e das suas questões
metafísicas (para não falar das teológicas, e dos desaguizados de Galileu com
os santos ofícios), foi extremamente útil suspender, ignorar a sua origem filosófica,
tal como a criança aprendendo a andar e a falar esquecerá para toda a vida o
tempo em que foi ‘parte’ mamífera da sua mãe.
3. Este esquecimento, como diria Heidegger, teve
efeitos: ainda hoje os cientistas não sabem olhar as suas descobertas fora do
seu laboratório, justamente por efeito da matriz filosófica aristotélica que
presidiu à sua invenção, que Heidegger chamou ontoteologia e Derrida
logocentrismo, e que relevam do substancialismo essencialista da Physica que o
laboratório da Física elimina ao fazer medições e equações com os seus
resultados, mas não desconstrói da cabeça interpretativa dos cientistas no que
diz respeito ao fora do laboratório. “Na língua não há senão diferenças, sem
termos positivos”, de Saussure, é um aforismo exemplar dum cientista que se
espanta, na filosofia que aprendeu como todos nós, da sua inadequação ao seu
domínio de investigação (Freud teve espantos parecidos, como antes Darwin), e
tão forte foi esse espanto que duas gerações depois veio a gerar uma corrente
filosófica aliada às ciências sociais e humanas, dita estruturalismo, que
Derrida teve que atravessar para ultrapassar o seu impasse com o tempo, que Heidegger
introduzira na Fenomenologia husserliana.
4. O caos ou anarquia dos saberes
ultra-especializados das ciências actuais, que tem como efeito que deixou
praticamente de haver autoridade científica porque os especialistas só sabem da
sua especialidade entre centenas doutras da sua ciência que não podem
acompanhar, justifica que se considere que a suspensão kantiana da dimensão
filosófica das várias ciências deixou de ser necessária e que, pelo contrário,
as grandes descobertas científicas do século XX permitem um “retorno às coisas”
inédito e fecundo, já que postas em face a face umas com as outras sob a luz
fenomenológica dos duplos laços, permitem uma consideração sistemática de tudo o que existe sob a terra
(fora dos laboratórios, feudo exclusivo dos cientistas) em termos de movimento
e da respectiva indeterminação (todo o movimento é aleatório).
5. Para dizer a razão histórica desta Fenomenologia
geral, poder-se-ia pretender que o nome a que ela teria direito é aquele que
foi usurpado pela primeira ciência, o de Física, cuja relação próxima com a
Química mostra bem a limitação dessa designação: numa fala-se de átomos, noutra
de moléculas, que são indissociáveis entre si, já que os átomos só subsistem em
moléculas. Que a Biologia, que é a ‘verdadeira’ ciência correspondente à
Physica aristotélica, a que se ocupa dos seres cujo movimento é o de crescerem
(phuô, em grego), e não apenas
se deslocarem (as árvores não andam), tenha tido que se contentar por designar
uma das suas regiões como Fisiologia, a que se ocupa dos seus vários tecidos de
células especializadas, é outra amostra da inadequação, ainda no século XIX os
médicos eram ditos, aristotelicamente, physicos. Se fosse possível chamar à
Fenomenologia geral a Physica moderna enquanto critica (quase kantiana) da
Physica antiga, ambas Filosofia com Ciências, daria para perceber que se trata do acabamento
de uns vinte e três séculos e meio de história do pensamento greco-europeu, no
que ao conhecimento das coisas se refere. Algo que estava à espera de ser
descoberto por qualquer um que passasse – com um mínimo conhecimento de
ciências, mormente de linguística – e que desse por ela, após os grandes
gigantes do pensamento científico e fenomenológico do século que findou.
6. O percurso foi assim, partindo do movimento dos
seres vivos que crescem por si próprios e seus acidentes, passando pela medida
do movimento dos seres inertes e suas energias até chegar ao movimento dos
seres no mundo, vivos e máquinas, e seus acontecimentos.
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