segunda-feira, 5 de junho de 2017

Sem que se saiba como



1. Há um não saber no coração do duplo laço enquanto lógica do acontecimento, que por definição é imotivado, isto é, escapa à definição, duplicando as causalidades, multiplicando-as, tal como acontece fora dos laboratórios. É o que faz desta fenomenologia um obstáculo intelectual para cientistas, que têm dificuldade em sair do paradigma da causa / efeito e em aceitar que as suas descobertas laboratoriais possam servir para compreender acontecimentos extra-laboratoriais, não ‘tudo’ o que se passa fora dos laboratórios, mas compreender o que se passa segundo as lógicas das cenas e dos duplos laços. Se for possível trazer até aqui um cientista, há que lhe dizer depois: acontece, com as suas regras numa cena aleatória, mas não se sabe como.
2. Como é que um carro escapa a um acidente numa manobra repentina? Não se sabe nem no carro nem no piloto, mas sabe-se as lógicas que jogaram nisso. Ou numa conversa, entendem-se as propostas e respostas de cada lado, umas expectáveis outras inesperadas, mas não se sabe como é que elas se organizam gramaticalmente sem os locutores saberem como é que as frases se arrumam tão rapidamente neles, com a sintaxe correcta, assim como não se sabe como é que se aprenderam essas regras em criança. Mas conhecem-se as regras da sintaxe e da morfologia, está-se perto de conhecer as da semântica (M. Gross). Em todos estes casos, sabe-se pela lenta pesquisa laboratorial as várias regras uma por uma, o que não se sabe, não se pode saber, é a conjunção delas, e quais, num acontecimento. Nessa conjunção é que está a indeterminação do acontecimento, a sua lógica intrínseca, a impossibilidade em geral, com excepção da astronomia provavelmente, de prever que será assim ou assado. No caso dos humanos, suprema indeterminação que será o enigma da nossa liberdade.
3. A dificuldade para o cientista e para o filósofo clássico, com uma tradição determinista, é de aceitar esta indeterminação como conhecimento positivo, porque é como se passam as coisas na chamada ‘realidade’ fora do laboratório, é aquilo que a definição e o laboratório têm que largar, deixar fora dos seus limites, para conhecerem. Mas os duplos laços trazem os conhecimentos das ciências, das descobertas principais delas no século XX, para se entender as lógicas de circulação dos fenómenos estudados: da gravitação, da alimentação, da habitação, da inscrição. É certo que com um limite, o limite de cada uma destas cenas, com fenómenos muitos variados nelas, ser compreendida segundo os limites entre elas que são os limites das próprias ciências. Mas também é, em princípio possível, dependendo das competências da/do analista, passar duma cena a outra, da biologia à neurologia, desta aos usos duma unidade social e a textos; uma das maiores urgências das leituras de textos históricos (ou ficções) é justamente a de relacioná-los com as sociedades em que foram produzidos (foi um dos trunfos da minha leitura do evangelho de Marcos, em 1974, mas antes dos duplos laços) e depois lidos.
4. Numa pequena parábola desse evangelho, fala-se dum semeador que lança a sua semente à terra e, enquanto ele dorme e faz outras coisas, ela germina e cresce e dá uma planta “sem que ele saiba como: por ela mesma, a terra produz primeiro a erva, depois a espiga e depois esta cheia de trigo” (4, 26-9). Paulo, na 1ª carta aos Coríntios, retoma o exemplo: “o que tu semeias, não é o corpo [a planta] que virá, mas uma semente nua, trigo por exemplo, ou qualquer outra, e Deus dá-lhe um corpo à sua vontade, a cada semente um corpo particular” (15,37-8). Aqui não é a terra, é Deus em pessoa que dá o crescimento. Esse 'não saber como' dos Antigos, agora sabemos como é, sabemos a biologia das células e moléculas, não precisamos de uma divindade para colmatar o nosso não saber, ficamos até a saber que era esse não saber dos nossos antepassado de como nasciam e cresciam as plantas e os vivos e os humanos que os levava a acreditarem num sobrenatural que ‘acabasse’ o natural, um Deus que era a Causa do que hoje dizemos ‘acontecimento’, imotivado; mas também nós não sabemos como é que as regras biológicas e quais – que conjunção delas – jogam em cada um, caso por caso. Já dizia Aristóteles que não há ciência dos singulares.

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