1. Há um não saber no coração do
duplo laço enquanto lógica do acontecimento, que por definição é imotivado,
isto é, escapa à definição, duplicando as causalidades, multiplicando-as, tal
como acontece fora dos
laboratórios. É o que faz desta fenomenologia um obstáculo intelectual para
cientistas, que têm dificuldade em sair do paradigma da causa / efeito e em
aceitar que as suas descobertas laboratoriais possam servir para compreender
acontecimentos extra-laboratoriais, não ‘tudo’ o que se passa fora dos laboratórios,
mas compreender o que se passa segundo as lógicas das cenas e dos duplos laços.
Se for possível trazer até aqui um cientista, há que lhe dizer depois:
acontece, com as suas regras numa cena aleatória, mas não se sabe como.
2. Como é que um carro escapa a um
acidente numa manobra repentina? Não se sabe nem no carro nem no piloto, mas
sabe-se as lógicas que jogaram nisso. Ou numa conversa, entendem-se as
propostas e respostas de cada lado, umas expectáveis outras inesperadas, mas
não se sabe como é que elas se organizam gramaticalmente sem os locutores
saberem como é que as frases se arrumam tão rapidamente neles, com a sintaxe
correcta, assim como não se sabe como é que se aprenderam essas regras em
criança. Mas conhecem-se as regras da sintaxe e da morfologia, está-se perto de
conhecer as da semântica (M. Gross). Em todos estes casos, sabe-se pela lenta
pesquisa laboratorial as várias regras uma por uma, o que não se sabe, não se
pode saber, é a conjunção delas, e quais, num acontecimento. Nessa conjunção é
que está a indeterminação do acontecimento, a sua lógica intrínseca, a
impossibilidade em geral, com excepção da astronomia provavelmente, de prever
que será assim ou assado. No caso dos humanos, suprema indeterminação que será
o enigma da nossa liberdade.
3. A dificuldade para o cientista e
para o filósofo clássico, com uma tradição determinista, é de aceitar esta indeterminação
como conhecimento positivo, porque é como se passam as coisas na chamada
‘realidade’ fora do laboratório, é aquilo que a definição e o laboratório têm
que largar, deixar fora dos seus limites, para conhecerem. Mas os duplos laços
trazem os conhecimentos das ciências, das descobertas principais delas no
século XX, para se entender as lógicas de circulação dos fenómenos estudados:
da gravitação, da alimentação, da habitação, da inscrição. É certo que com um
limite, o limite de cada uma destas cenas, com fenómenos muitos variados nelas,
ser compreendida segundo os limites entre elas que são os limites das próprias
ciências. Mas também é, em princípio possível, dependendo das competências
da/do analista, passar duma cena a outra, da biologia à neurologia, desta aos
usos duma unidade social e a textos; uma das maiores urgências das leituras de
textos históricos (ou ficções) é justamente a de relacioná-los com as sociedades
em que foram produzidos (foi um dos trunfos da minha leitura do evangelho de
Marcos, em 1974, mas antes dos duplos laços) e depois lidos.
4. Numa pequena parábola desse evangelho, fala-se
dum semeador que lança a sua semente à terra e, enquanto ele dorme e faz outras
coisas, ela germina e cresce e dá uma planta “sem que ele saiba como: por ela
mesma, a terra produz primeiro a erva, depois a espiga e depois esta cheia de
trigo” (4, 26-9). Paulo, na 1ª carta aos Coríntios, retoma o exemplo: “o que tu
semeias, não é o corpo [a planta] que virá, mas uma semente nua, trigo por
exemplo, ou qualquer outra, e Deus dá-lhe um corpo à sua vontade, a cada
semente um corpo particular” (15,37-8). Aqui não é a terra, é Deus em pessoa
que dá o crescimento. Esse 'não saber como' dos Antigos, agora sabemos como é, sabemos a biologia das células e
moléculas, não precisamos de uma divindade para colmatar o nosso não saber,
ficamos até a saber que era esse não saber dos nossos antepassado de como
nasciam e cresciam as plantas e os vivos e os humanos que os levava a acreditarem num sobrenatural que ‘acabasse’ o natural, um Deus que era a Causa do que hoje
dizemos ‘acontecimento’, imotivado; mas também nós não sabemos como é que as regras biológicas e quais – que
conjunção delas – jogam em cada um, caso por caso. Já dizia Aristóteles que não
há ciência dos singulares.
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