1. Todos pasmámos perante esta lição
de populismo que o Brexit
acaba de nos dar e esperemos que seja mesmo lição para outras bandas,
trumpistas ou lepenistas. Não será a ‘doença infantil’ do capitalismo, mas tem
algo duma inocência infantil, da ilusão duma coisa muito simpática que se quer
muito e só depois, ao se sentir as consequências adversas, que o que se queria
como cura agravou a doença, se percebe que era uma ‘ideia louca’. Mas por se
tratar de mal-estar de multidões, merece respeito por elas quando se repudiam
as ideias, ainda mais quando se sabe que esse mal-estar é de muitas outras multidões
por esse mundo fora e que os dirigentes políticos que temem e criticam com
razão o populismo, não parecem ter resposta à altura, habituados a desculpar-se
com ‘a crise’ que é de todos, portanto, nós...: relativa impotência dos
Estados, mesmo unidos, europeus, reinos britânicos, talvez sem teoria de
direito financeiro e/ou de economia que se imponha.
2. Quando se trabalha em filosofia e
se pede aliança a algumas ciências, pode ter-se tendência a pensar que é
pensamento que falta, ainda que não se saiba propô-lo. Olhe-se para a moeda. A
tradição da esquerda tem dificuldade em aceitá-la, mas tal como a electricidade
na dimensão técnica, é impensável a contemporaneidade na dimensão social sem
ela, já que ela dá uma liberdade elementar, a de escolher o que se quer e
precisa, dentro dos limites do orçamento familiar. Dos números ela recebe a
razão de calcular, de estabelecer preços para as trocas diárias, segundo custos
e tempos de trabalho. Esses números permitem uma ciência em que a moeda, a sua
face monetarista, reduz tudo o
que não é ela: de tudo o que seja mercadoria, só retém quantidades e preços,
única maneira de encontrar regras no complexo mundo das trocas; enquanto tal, a
economia não sabe nem de biologia nem de antropologia nem de politica, não sabe
de fome, de doença, de escola, nem de bem e mal.
3. Mas a moeda tem outra face, que a
torna diferente dos números e das letras e das palavras e das músicas, sistemas
que se podem comparar com o seu. Estes sistemas não têm donos, embora tenham
artistas que jogam melhor do que o comum das gentes, pertencem aos usos de
todos, como queiram, são parte também da liberdade de sermos humanos em sociedade.
Mas a moeda só pode funcionar como reguladora de trocas, uma das partes de cada
troca, a outra sendo uma mercadoria, só o pode fazer por ser propriedade de quem a usa para comprar e tornar-se
propriedade de quem cede a mercadoria que vende. Não há dinheiro sem dono, faz
parte da lógica da moeda, da sua positividade, senão não serve para trocar, não
é moeda. Aqui, os números têm um papel malicioso, que é o de dinamizarem a
economia acicatando desejos de ter maiores quantidades, sempre mais, sempre
mais do que o vizinho, o colega, o rival, o concorrente. E como ela funciona
nos cálculos económicos reduzindo o que não é ela, pode neste acicatar desligar-se de ser preço, de ser meio
de troca, tornar-se especulação, com o seu factor narcísico inerente ao desejo de posse.
4. É claro que muito poucos chegam
perto de serem o mais rico do mundo, mas os campeonatos de milionários
multiplicam-se por países e por especialidades de negócio, em guerras sem
quartel que devastam economias, como se viu em 1929 e em 2008, de que padecem
os milhões que votaram Brexit e os que querem trampa americana, vítimas dessa
‘ideia louca’ de que ser-se milionário é o melhor que há no mundo, que as
lotarias entretêm nos que sacrificam perseverantes à deusa Sorte, boa
consciência dada pelas “santas casas da misericórdia”!.
5. O problema desta loucura
devastadora não é a falta de solução, esta existe, chama-se regulação, existe certamente no direito financeiro e em
teorias económicas minoritárias: trata-se de prever a sua aplicação, uma
espécie de ‘código da estrada’ da circulação da moeda para lhe evitar
acidentes, as catástrofes que são as crises, as fomes, as epidemias dos pobres.
O que falta é a força politica necessária para regular efectivamente: os off-shores são a prova de como se foge às regulações que há,
a prova das cumplicidades que tecem a impotência politica: quando se escolhe
para alto posto politico da regulação da União Europeia o simpático que
fabricou um off-shore mesmo
nas barbas dela. Os que governam as economias que a especulação está devastando
não são cúmplices dela, ao crerem que o que mais precisam é de investimentos
para fazerem crescer os números dos PIBs? Não se vê que o que cresce é o
desemprego, é a precariedade, é a juventude que vai vivendo de sandes na
incerteza do futuro?
6. É a ideologia do ‘querer ser rico’
que mata os ideais. Dinheiro? nem de menos nem de mais.
Público, 19/07/ 2016
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