quarta-feira, 27 de abril de 2016

Somos ‘seres no mundo’ : mas o que é este ‘mundo’ ?



1. É porventura a questão de partida do conhecimento, à qual não se responde facilmente. Há muitas coisas, ‘entes’ diziam os filósofos, como componentes do mundo que nos rodeia, onde somos dia a dia, há intuitivamente uma organização nesse conjunto de coisas, nas zonas habitadas por humanos mas também nas florestas onde eles só passam; mas não é fácil dizer esse conjunto de coisas de maneira a descrevê-lo satisfatoriamente, pedras e água, árvores e flores, insectos e gatos, utensílios e humanos de idades variadas, e por aí fora. As lógicas destas ‘coisas’ são bastante diferentes entre si, como pensar a sua organização, mostrar que ela não é caótica?
2. Digamos que os Gregos perceberam a diferença (repouso / movimento?) entre entes estáveis e entes que crescem: phuô é crescer; a phusis supõe quatro elementos fundamentais, a terra sólida, a água líquida, o ar gasoso e um quarto, diferente, dinâmico, perigoso, o fogo[1]. Mas para conhecer o ‘mundo’ envolvente, os filósofos socráticos tiveram que o desorganizar: retirar dele entes semelhantes e defini-los – em suas essências – fora do contexto, isto é, fora do ‘mundo’, que ficou com o estatuto implícito do além dos limites da definição, portanto além dos limites do conhecido. Quando falamos de ‘realidade’, por exemplo, é este mundo desconhecido que designamos. O lento desenvolvimento das ciências – os reinos mineral, vegetal, animal, este incluía os humanos mas não os destacava – foi permitindo conhecer lógicas diferentes ‘regendo’ estes ‘reinos’, mas sem que o nosso ‘mundo’, de que somos e em que somos e que em parte nós mesmos organizamos, consiga ser conhecido em sua organização de maneira a transpor fronteiras entre ciências. Basta ver como filósofos, psicólogos, neurologistas e outros, quando se querem focar nisso que nos envolve fora de nós, o ‘mundo’ ou a ‘realidade’ ou o ‘mundo real’, o fazem designando colecções de coisas e gentes, tipo factos, acontecimentos, objectos ou coisas, situações, acções, relações, pessoas, processos, estruturas, indivíduos colectivos, instituições, e por aí fora, a lista de coisas soltas é infindável.
3. Num texto anterior, defendi que é pela aprendizagem que nos vem de fora, da nossa tribo ou mundo, que somos estruturados interiormente (tal como é comendo restos de entes vivos, vegetais ou animais, que as suas moléculas se tornam as nossas moléculas num processo biológico parecido com o da aprendizagem: os nossos corpos são feitos dos de outros). Então a questão põe-se: como dizer o que aprendemos? Pelos seus nomes? Já no Crátilo, Platão explicava que saber os nomes não é suficiente para conhecer o que eles nomeiam e basta perceber como tribos diferentes dão nomes diferentes às mesmas coisas para se perceber que ele tinha razão, embora os argumentos dele possam ser melhorados. É mesmo a partir dessa recusa de que, digamos, dos nomes se chegue às essências, que ele pela primeira vez põe a hipótese das Formas ideais que, resultantes de definições, abriram a via real do pensamento ocidental. Só que também essas definições de coisas não chegam, pois delas (e dos nomes) é que nos ficam as colecções, as listas de entes definidos, isto é, equivalentes em essência a uns tantos e separados de todos os outros, fora do ‘mundo’.
4.Como dizer o que aprendemos? Não sendo antropólogo, creio poder oferecer uma solução antropológica – a descrição duma qualquer unidade social – que será a dos usos e costumes dessa unidade no seu fazer quotidiano e anual, já que justamente é próprio de cada unidade social, seja uma família, uma escola, uma oficina ou um escritório, o imperativo da aprendizagem dos usos da ‘casa’ aos novos, consoante aí nasceram ou nela ingressaram. Pode-se definir uso como uma sequência organizada de gestos com materiais mais ou menos heteróclitos, de que os próprios humanos fazem parte como agentes, e que para isso tiveram que aprender a fazer bem, já que frequentemente os usos são de interesse colectivo, feitos até em equipa. O que Kuhn chamou paradigma duma ciência pode ser generalizado a qualquer unidade social, ao conjunto dos usos dos seus indígenas ao longo do tempo, das respectivas receitas (‘faz-se desta maneira: começa-se por ...’). Assim quando se fala da mesa da sala de jantar ou das cadeiras que a rodeiam está-se referindo o uso das refeições, como os roupeiros referem os usos de vestir, e assim sucessivamente, os nomes das coisas que usamos referem justamente aos usos delas, à respectiva lógica. Teremos então uma maneira de descrever a organização do ‘mundo’ desses indígenas adentro dessa unidade social a que pertencem, descrever  o respectivo paradigma; em regra geral, nas sociedades de hoje há ao menos dois tipos de paradigmas de pertença, um familiar e outro profissional ou escolar complementares temporalmente: onde se trabalha e onde come e dorme e vive além do tempo de trabalho; creio  que esta dupla é o ponto nevrálgico da liberdade individual, na medida em que a pertença a dois paradigmas permite em princípio escapar a uma única autoridade, paternal ou patronal.
5.Mas estas unidades são abertas: em contraponto com as autarcias das casas agrícolas de antanho, as profissionais são especializadas e portanto abertas a trocas, tal como as familiares que, com os salários das outras, compram o que as sustenta. Abertas à tribo, a outras unidades vizinhas, como aldeias e bairros, conhecidos e amigos. A continuação da compreensão do ‘mundo’ em que somos nas redes mais ou menos complexas das unidades sociais (cidades e regiões, nações e inter-nações) depende de outros níveis científicos, sociológicos e económicos nomeadamente, que não incidem já directamente na categoria ‘ser no mundo’, ao contrário do que advém da relação da escola e dos médias de massa (dos livros aos jornais, das imagens dos cinemas e televisões às músicas) com os vários indígenas de cada unidade social, o que provavelmente intervirá na análise que seja possível dos paradigmas.
6. Há todavia uma zona dos ‘seres no mundo’ que não fica considerada com a alusão feita a estes paradigmas das unidades locais, a da alimentação e saúde, que depende da relação, tanto biológica como cultural (culinária, higiénica, terapêutica) com vegetais, animais e atmosfera. Heidegger falou da angústia, metafísica porventura, perante a morte, o meu amigo Jorge Vilaça, pintor marginal com vários filhos e pouco dinheiro, falou-me uma vez do “medo da fome”, medo que é o de muitas gentes por esse mundo fora, como aliás medo de doenças também: como dizer a parte destes medos e das tensões para os evitar naquilo que faz de nós ‘seres no mundo’? O que é que desses medos se aprende no que aprendemos?
7. O que me faz hesitar nesta questão, que sinto não saber colocá-la de forma satisfatória, é a perplexidade diante da tentativa de descrever fenomenologicamente a categoria ‘ser no mundo’ contando para isso com os contributos vindos de níveis científicos diferentes, que julgo ter conseguido articular entre si nos capítulos 13 e 14 do meu Le Jeu des Scinces avec Heidegger et Derrida, passando de uns aos outros desde os átomos da Física e da Química[2] pela evolução biológica e pela história das sociedades ocidentais e a dos seus textos de saber. Como articular biologia, antropologia e linguística (além de músicas e filmes) numa descrição fenomenológica, com alguma coerência, nem digo unidade, que a torne interessante? Comecei este texto com esse fito, com a convicção imodesta que tenho de que esse trabalho permite descrever a Terra (e colocá-la no conjunto dos astros)[3] enquanto uma complexidade sem fim de cenas de circulação de ‘coisas’ ou ‘entes’ – graves, vivos, humanos, textos – como sendo os contextos do que se define / analisa laboratorialmente retirando dos contextos, mas não dos acontecimentos, que estes misturam alegremente os diversos níveis em que instituem as ciências, e portanto os contextos também ficam indecifráveis, num contexto só, ou quiçá em vários consoante a variedade dos protagonistas. Mas isto pertence ao registo dos sonhos dos filósofos.
8. Esta digressão permite talvez entender que a categoria ‘ser no mundo’ dificilmente terá utilidade em descrições sociológicas, ficará quiçá restrita aos fenomenólogos, podendo ser todavia útil aos cientistas sociais e humanos como defesa contra o dualismo sujeito / objecto, sujeito / mundo, de que padecem sem saber.


[1] Vejo na Wikipédia que os Chineses tinham cinco: em vez do ar, a madeira e o metal.
[2] A Mecânica Quântica aqui não conta, não há ‘mundo’ nela, só partículas que fogem.
[3] As ciências são todas ciências da Terra, incluindo a astrofísica, que não só é feita a partir da Terra como é feita em laboratórios da Terra, confrontando os fenómenos observados da estratosfera com os dados comprovados laboratorialmente da própria Terra.

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