sexta-feira, 15 de abril de 2016

O Dasein não aprende



1. Há bastante tempo já que desconfiava que o Dasein de Heidegger, não apenas em Ser e Tempo mas ainda nos anos 60, depois de Tempo e Ser, mantinha uma ligação ao ‘sujeito’ de que se queria cortado, como atesta o muito importante motivo de ser no mundo. O que me faltava era perceber o que é que lhe falhou, porquê não deu o passo e que passo era que obviamente não quis dar (não se trata de pensar que ele se enganou). Ora, a leitura recente, pela 3ª ou 4ª vez, de A essência da Verdade, revelou-me duas coisas que concorrem para compreender a questão. Uma delas é que a verdade é sempre questionada em termos de ‘essência’ e esta, essência do ente em totalidade, é a questão da metafísica e, consequência lógica, o tempo não vem nunca à questão, apesar de ser onde se enceta a viragem entre os dois textos que ligam o tempo ao ser, o de 1927 e o de 1962. Trata-se de metafísica em sentido tradicional, o que não parece incomodar o pensador (senão fazia uma nota ou um parêntese a alertar para o que ali não estava a poder tratar). A outra é a maneira como a liberdade é aduzida como essência da verdade, através da aperidade para o ente que se trata de ‘deixar ser’, e também aqui não aparece nenhum dos motivos temporais de Ser e Tempo, angústia e ser para a morte, cuidado quotidiano, distinção entre o que está à mão e o que apenas está ao seu alcance; ou seja, o Dasein aparece posto diante do ente como um sujeito diante dum objecto: tal como o sujeito, o Dasein não aprende. Embora haja outros textos entretanto, dez anos mais tarde o magnífico texto sobre a phusis segundo Aristóteles trata da Physica deste, do 1º capítulo do 2º livro, aonde os seus grandes motivos foram demonstrados, argumentados, a ousia sendo o que explica o ente enquanto dotado de movimento, o que permitirá depois (justeza do ‘meta’) a metafísica do ente enquanto ente. E é onde o tempo é dito o número do movimento segundo o antes e o depois, como é sabido. Vinte anos depois, a viragem consuma-se: o ser e o tempo são dados aos entes (nascidos ou fabricados: de certo, mas isso não é nunca dito) pelo Ereignis que dissimula a doação. O que me parece significar o quê? Que até aí, desde 1927, sempre o Ser dominou o Tempo, a viragem iniciou-se com A essência da Verdade que ‘abre’ a relação do Dasein ao ente para a relação ao ente em totalidade (inversão do motivo da definição, do definido ao contexto, se dizer se pode), este dissimulado, obnibulado. É o motivo essencial do retiro do Ser que aparece pela primeira vez, e que no texto sobre a phusis é acrescentado a Aristóteles pela citação do aforismo123 de Heraclito que ele tornou célebre, sendo onde se vê a Physica sobrepor-se à Metaphysica. Claro que este § 12 à cavaleiro não tem nenhuma pretensão exegética, não conheço suficientemente os textos para isso. Mas o que me parece é que no texto heideggeriano não se deu nunca o passo do ser no mundo para o ser que aprende do mundo e é pois instituído por ele: a aprendizagem é o tempo dos humanos e sobremaneira o tempo em que o ‘sujeito’ muda, se transforma, não é sempre o mesmo.
2. A descoberta deste texto sobre a essência da verdade é a da relação dela com a liberdade do Dasein e a retracção da doação do ente que torne possível tal liberdade, o futuro retiro do Ser, e ainda, de passagem, um recuo da liberdade em relação ao ente a que o Dasein está aberto no seu comportamento em relação a ele: recuo e liberdade que deixam o ente ser o ente que ele é, de velado a desvelado (alêtheia), comportamento com desvelo, dir-se-á em português. Comportamentos esses que se repetem em relação a tal tipo de entes em usos quotidianos mormente, domésticos ou profissionais, mas também em relação a outros humanos da tribo, as quais relações também pedem abertura que os deixe ser, desvelo em sentido mais apropriado até. O motivo de repetição aproxima este comportamento do motivo da possibilidade do ser no mundo (Ser e Tempo), a qual tanto é do Dasein como do mundo, como aqui se vê melhor, já que o retiro tanto se joga na doação (pelo mundo, o ente em totalidade da tribo) como no Dasein. E é onde a questão da aprendizagem me parece indispensável em sua temporalidade, necessária menos ao ente, se se trata dum utensílio à mão, do que ao que aprende a utilizá-lo por ensaios e tentativas orientadas por quem já saiba, e que também se retirará quando a habilidade do comportamento esteja adquirida como espontaneidade do Dasein. Aprender a conduzir um automóvel, por exemplo, leva algumas semanas em geral, tempo para o aprendiz saber tornar-se, em seus gestos em situações aleatórias, na peça piloto do carro, que este faça parte doravante das suas possibilidades. Isto é, o Dasein alterou-se nas suas possibilidades e não apenas nas semanas em que aprendeu, já que toda a sua prática futura de condução melhorar-lhe-á essa habilidade, a sua possibilidade. O mesmo exemplo se pode aduzir, com muito mais tempo, para a aprendizagem da fala e as transformações que virão ao Dasein com os estudos que fará, as especializações, a cultura humana, espiritual e artística, e por aí fora. Nestes dois exemplos, é essencial o deixar ser o ente, o carro na estrada, a língua da tribo e aqueles com quem se fala, que se ouve. E esse deixar ser implica a inscrição no Dasein da lei da verdade, quer a da condução automóvel, quer a da linguagem e da relação com os outros: é essa lei  que implica que se aprenda de mestres, de quem já sabe, que se trate de doação com retiro de quem a faz, que sabe muito mais do que o que aprende mas tem que o deixar ser, deixar aprender à medida da sua ignorância. 



O filósofo brasileiro de origem croata Zeljko Laporic assistiu a seminários de Heidegger e numa entrevista conta como o viu, extraordinário.

“Nos seminários sobre o Heráclito (1966/67), eu estava diante de um homem totalmente tomado, não sobrava dele nada que não fosse iluminado por aquilo que ele dizia e como ele o dizia. Ele era aquele que falava aquelas coisas. Havia nele uma extrema concentração; toda figura dele, no dizer, no estar presente, era filosofia. Isso eu nunca havia visto antes em outras figuras brilhantes, em Henrich ou em Gadamer. Este era um homem de espírito que cuidava das palavras. Heidegger, ainda aos 77 anos era homem vigoroso, totalmente diferente: era filosofando que ele existia. Isto pode ser em vários aspectos um defeito. Seja como for, diferentemente de Heidegger, eu mesmo nunca me identifiquei com nenhuma carreira filosófica, nem mesmo com a carreira acadêmica, nem mesmo com a atividade de ser filósofo. Sempre achei que, qualquer coisa que você faça, não deixa de haver em você algo que sobra. Tem sempre uma sobra. Sempre havia sobras em mim, mesmo quando me entregava a algo, sem reservas. Em Heidegger, não. Mesmo assim, a centralidade da filosofia na vida e na figura dele me marcou, confirmando meu ímpeto inicial de que a Filosofia é algo sem o qual não posso andar por ai.”







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