domingo, 1 de novembro de 2015

Determinação e desconstrução



1. Determinação, juntamente com delimitação e definição: são três termos das línguas latinas que tendo uma etimologia equivalente – de terminus, limes, finis, respectivamente, os três dizendo ‘fronteira’ –, mas com diferenças; delimitação ficou mais perto da fronteira da raiz comum, definição tecnicizou-se em precisão pelo seu uso filosófico, enquanto que determinação ganhou um sentido causal que as outras duas não têm, como é claro por exemplo na palavra ‘determinismo’ ou na expressão ‘uma pessoa determinada’. Donde lhe veio esta diferença? Não sei, busquei em dicionários, de português (Houaiss), de latim (Gaffiot), de filosofia (Lalande), nenhum se ocupa dessa diferença. Acontece que a palavra ‘determinação’ (que Derrida, desconstrutor, confessou uma vez que detestava) me parece útil para dizer a diferença entre duas operações decisivas da história do pensamento ocidental, a definição e o laboratório científico. Este consiste em construir ‘condições de determinação’ para as experimentações a fazer nele, incluindo os dois sentidos da palavra, aquele que ela tem em comum com definição e delimitação – estabelecer limites, fronteira com o seu fora – e o de causalidade, que lhe é próprio: os limites do laboratório implicam guardar apenas um efeito de causalidade ‘determinado’, aquele que há que analisar, que justifica o conhecimento que traz o laboratório. Assim, nas análises de movimentos e forças, há que eliminar os efeitos contrários de atritos e resistência do ar, para se assegurar quanto possível uma só ‘determinação’ a jogar no fenómeno medido. ‘Quanto possível’: por exemplo, a lei de Boyle e Mariotte, que relaciona volumes, pressões e temperaturas de gases, é chamada “lei dos gases perfeitos” porque nenhum gás consegue corresponder exactamente à fórmula da lei, a condição de determinação não é conseguida completamente com nenhum deles.

2. O dicionário de latim indica como um dos sentidos de ‘determinar’ o de ‘regular’, introduzir regras (exemplo meu: um chefe que determina as regras no domínio que coordena), e o filosófico a certa altura fala no uso psicológico do termo, alguém determinar-se ou decidir-se, decisão sendo uma consequência da definição, que de-cide incluir um só sentido, aquele que é definido, e deixar de fora os outros sentidos polissémicos da palavra definida. Ora, alguém determinar-se ou decidir-se (a fazer qualquer coisa) implica uma delimitação, uma determinação pois, mas também um efeito consequente, uma causalidade: uma regra diz ambas as coisas, delimita o que fazer dentre vários possíveis. Seria pois talvez este sentido psicológico que se terá afirmado com a invenção do laboratório e gerado o termo determinação como causalidade, depois regra ou lei científica; só um especialista de filosofia medieval poderá dizer a pré-história do termo nas disputas e especulações que anteciparam a Europa por vir.

3. Então, inesperadamente determinação aproxima-se de regulação. Esta, na fenomenologia que tenho elaborado com Husserl, Heidegger e Derrida como leitores das principais descobertas científicas do século deles, diz que as regras científicas não são a ser pensadas de maneira determinista, segundo a substancialidade metafísica do aristotelismo medieval – causa como efeito duma substância sobre outra substância, uma bola de bilhar que choca com outra e a põe em movimento – mas como regras recebidas da cena de circulação no aparelho regulador do móbil que atende às circunstâncias do tráfego dos outros móveis: as regras jogam em contextos aleatórios, tenho insistido frequentemente nesta tese, a qual responde justamente à definição gramatológica de jogo, “unidade do acaso e da necessidade num cálculo sem fim” (texto “La différance” das Margens. Da Filosofia, de Derrida, p. 9 da ed. fr.). Se for verdade que tanto rochas, oceanos e atmosferas como plantas e animais, sociedades humanas e seus usos e textos, máquinas e por aí fora, se for verdade que todos estes ‘entes’ de que as ciências analisam as regras são duplamente enlaçados, duplos laços que incluem regulação ao acessório da respectiva cena, se justamente não há nenhum determinismo na face da terra nem nos seus interiores, percebe-se que se justifica a repulsa da palavra ‘determinação’ por Derrida: ela diz o contrário do jogo, mas diz também que o seu equivalente fora do laboratório – ‘regulação’ – permite um passo além da desconstrução que a prolonga como reconstrução, a qual faz justiça à exigência da desconstrução – tudo é jogo – mas lhe acrescenta um novo patamar de racionalidade não metafísico, fenomenológico, gramatológico.
4. Foi esta parte de aleatório em tudo o que se usa, diz e faz que moveu os Antigos para o conhecimento, os socráticos tendo inventado a definição e os europeus clássicos o laboratório científico, as duas grandes etapas da construção do que chamamos razão. Mas é por esta razão se ter excedido fora dos seus argumentos e dos seus laboratórios, excessos como poluição e como crises económicas e financeiras, além de outras, que guerras sempre as houve mas as armas da razão tecnológica são mortíferas de forma obscena, foram estes excessos maléficos da construção moderna que necessitaram da desconstrução. Coube-me a modesta e ambiciosa demais aventura fenomenológica de vislumbrar uma necessária reconstrução que permita compreender, não as coisas em seus trajectos mas as suas possibilidades, segundo as regras dos jogos a que são dadas: é, por exemplo simples, o que podemos conhecer dum dado automóvel.
5. Seguir-se-á alguma coisa? 

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