1. Determinação, juntamente com delimitação e
definição: são três termos das línguas latinas que tendo uma etimologia
equivalente – de terminus, limes, finis, respectivamente, os três dizendo
‘fronteira’ –, mas com diferenças; delimitação ficou mais perto da fronteira da
raiz comum, definição tecnicizou-se em precisão pelo seu uso filosófico,
enquanto que determinação ganhou um sentido causal que as outras duas não têm,
como é claro por exemplo na palavra ‘determinismo’ ou na expressão ‘uma pessoa
determinada’. Donde lhe veio esta diferença? Não sei, busquei em dicionários,
de português (Houaiss), de latim (Gaffiot), de filosofia (Lalande), nenhum se
ocupa dessa diferença. Acontece que a palavra ‘determinação’ (que Derrida, desconstrutor,
confessou uma vez que detestava) me parece útil para dizer a diferença entre
duas operações decisivas da história do pensamento ocidental, a definição e o
laboratório científico. Este consiste em construir ‘condições de determinação’
para as experimentações a fazer nele, incluindo os dois sentidos da palavra,
aquele que ela tem em comum com definição e delimitação – estabelecer limites,
fronteira com o seu fora – e o de causalidade, que lhe é próprio: os limites do
laboratório implicam guardar apenas um efeito de causalidade ‘determinado’,
aquele que há que analisar, que justifica o conhecimento que traz o
laboratório. Assim, nas análises de movimentos e forças, há que eliminar os
efeitos contrários de atritos e resistência do ar, para se assegurar quanto possível
uma só ‘determinação’ a jogar no fenómeno medido. ‘Quanto possível’: por
exemplo, a lei de Boyle e Mariotte, que relaciona volumes, pressões e
temperaturas de gases, é chamada “lei dos gases perfeitos” porque nenhum gás
consegue corresponder exactamente à fórmula da lei, a condição de determinação
não é conseguida completamente com nenhum deles.
2. O dicionário de latim indica como um dos
sentidos de ‘determinar’ o de ‘regular’, introduzir regras (exemplo meu: um
chefe que determina as regras no domínio que coordena), e o filosófico a certa
altura fala no uso psicológico do termo, alguém determinar-se ou decidir-se,
decisão sendo uma consequência da definição, que de-cide incluir um só sentido,
aquele que é definido, e deixar de fora os outros sentidos polissémicos da
palavra definida. Ora, alguém determinar-se ou decidir-se (a fazer qualquer
coisa) implica uma delimitação, uma determinação pois, mas também um efeito
consequente, uma causalidade: uma regra diz ambas as coisas, delimita o que fazer dentre vários possíveis. Seria
pois talvez este sentido psicológico que se terá afirmado com a invenção do
laboratório e gerado o termo determinação como causalidade, depois regra ou lei
científica; só um especialista de filosofia medieval poderá dizer a
pré-história do termo nas disputas e especulações que anteciparam a Europa por
vir.
3. Então, inesperadamente determinação
aproxima-se de regulação. Esta,
na fenomenologia que tenho elaborado com Husserl, Heidegger e Derrida como
leitores das principais descobertas científicas do século deles, diz que as
regras científicas não são a ser pensadas de maneira determinista, segundo a
substancialidade metafísica do aristotelismo medieval – causa como efeito duma
substância sobre outra substância, uma bola de bilhar que choca com outra e a
põe em movimento – mas como regras recebidas da cena de circulação no aparelho
regulador do móbil que atende às circunstâncias do tráfego dos outros móveis: as
regras jogam em contextos aleatórios, tenho insistido frequentemente nesta tese, a qual responde justamente à
definição gramatológica de jogo, “unidade do acaso e da necessidade num cálculo sem fim” (texto “La
différance” das Margens. Da Filosofia, de Derrida, p. 9 da ed. fr.). Se for verdade que tanto rochas, oceanos e
atmosferas como plantas e animais, sociedades humanas e seus usos e textos,
máquinas e por aí fora, se for verdade que todos estes ‘entes’ de que as
ciências analisam as regras são duplamente enlaçados, duplos laços que incluem
regulação ao acessório da respectiva cena, se justamente não há nenhum
determinismo na face da terra nem nos seus interiores, percebe-se que se
justifica a repulsa da palavra ‘determinação’ por Derrida: ela diz o contrário
do jogo, mas diz também que o seu equivalente fora do laboratório – ‘regulação’
– permite um passo além da desconstrução que a prolonga como reconstrução, a qual faz justiça à exigência da desconstrução
– tudo é jogo – mas lhe acrescenta um novo patamar de racionalidade não metafísico,
fenomenológico, gramatológico.
4. Foi esta parte de aleatório em tudo o que se
usa, diz e faz que moveu os Antigos para o conhecimento, os socráticos tendo
inventado a definição e os europeus clássicos o laboratório científico, as duas
grandes etapas da construção do que chamamos razão. Mas é por esta razão se ter excedido fora dos
seus argumentos e dos seus laboratórios, excessos como poluição e como crises
económicas e financeiras, além de outras, que guerras sempre as houve mas as
armas da razão tecnológica são mortíferas de forma obscena, foram estes
excessos maléficos da construção moderna que necessitaram da desconstrução.
Coube-me a modesta e ambiciosa demais aventura fenomenológica de vislumbrar uma
necessária reconstrução que permita compreender, não as coisas em seus
trajectos mas as suas possibilidades, segundo as regras dos jogos a que são dadas:
é, por exemplo simples, o que podemos conhecer dum dado automóvel.
5. Seguir-se-á alguma coisa?
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