quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Movimento e causalidade: da ousia aristotélica ao duplo laço fenomenológico




(vídeo)


 A ousia: compreender o movimento dos vivos como auto-móveis
A ousia e o tempo
O duplo laço: compreender o movimento dos auto-móveis inertes
A tese deste texto: o motivo do duplo laço, no contexto fenomenológico das ciências contemporâneas, é proposto para substituir o par ousia / acidentes da Physica de Aristóteles
Os duplos laços dos animais são mais complexos do que os das máquinas
Duplos laços duma tribo
Os duplos laços da linguagem
Duplo laço: tudo é indeterminado em seu movimento
P. S. Duplo laço e big Bang
2º P. S.



1. A diferença maior entre as ciências gregas e as europeias reside em que as primeiras foram formuladas por Aristóteles a partir da definição que Sócrates inventara e que as nossas foram formuladas no século XVII a partir da invenção do laboratório, de que o primeiro relato que temos duma experimentação é o de Galileu no Discurso sobre duas novas ciências. Esta diferença explica sem dúvida a exclusão consequente do aristotelismo do pensamento europeu, pelo menos a partir de Descartes, mas ela contém igualmente uma incompreensão de monta no que diz respeito às próprias concepções de movimento e de causalidade que estão no coração da Mecânica de Newton. É disto que vai ser aqui questão.
2. Quer a definição quer o laboratório arrancam o fenómeno a definir ou analisar do seu contexto, dos seus ‘acidentes’, como condição de conhecimento geral, de essências num caso, de leis do movimento no outro. Mas os Europeus estenderam o conhecimento ganho no laboratório ao que se passa fora dele, na dita ‘realidade’, compreendendo esta segundo um determinismo que é postulado pelas experiências (fragmentárias) levadas a cabo – causa e efeito – que é o que justifica o conhecimento adquirido aos olhos dos cientistas, sem se darem conta, nem os filósofos das ciências que eu saiba, de que esta extensão para o contexto fora do laboratório pode ser ilegítima, na medida em que se não avaliar a redução desse contexto operada pelo próprio laboratório, nem se tenha em conta a integralidade do movimento do fenómeno em questão. Sabe-se que a lei da gravidade se verifica no vazio laboratorial, onde uma pena de ave cai ao mesmo tempo que uma bolinha de chumbo, mas é imprevisível na atmosfera, onde joga a resistência do ar. Os ditos “efeitos secundários” dos medicamentos, assim como as poluições que devastam o planeta, são justamente efeitos nos contextos que o laboratório não analisou. A questão, que tratei noutro congresso recente, é ‘porque é que as ciências precisam de laboratório?’[1] A definição da escola socrática, no seu momento platónico, também reduz o contexto definido, como mostram as suas Formas ideais celestes, mas embora a Idade Média tenha parcialmente platonizado Aristóteles, a diferença entre a sua maneira de definir e a de Platão é crucial: o que o Estagirita define não é uma ‘coisa’ mas um movimento de coisas. É por isso que se pode vê-lo a definir, na Physica, quatro sentidos da ousia (substância / essência) e quatro sentidos correlativos de aition (causa ou motivo). Isto é, arrancando embora ao contexto o que é definido, isso só é feito após se ter observado no contexto como é que ele se move.
3. Enquanto que o uso de matemática e de instrumentos de medição no laboratório restringe o movimento a analisar ao deslocamento no espaço e no tempo, o olhar de Aristóteles sobre o contexto admite uma muito maior latitude da noção de movimento, distinguindo vários tipos: por um lado as gerações e as corrupções, por outro as mudanças, a sa­ber, alteração das qualidades, crescimento ou diminuição da quantidade, deslocamento segundo o lugar. A Physica de Aristóteles é com efeito uma filosofia geral do ente enquanto capaz de movimento[2] e do que o causa, que definiu os motivos que as suas várias ‘ciências’ aplicaram à diversidade dos entes, vivos ou fabricados, políticos ou poéticos (como a tragédia[3]), já que o que provocou o seu grande espanto, o que está na base dessa Physica e da sua concepção da ousia, foi o haver coisas que crescem (em grego, phuô, donde phusis), que têm o movimento por elas próprias (kath’autôn), que são por si móveis, auto-móveis. Tendo durado praticamente dois milénios, pode-se dizer que a Physica foi uma Filosofia com Ciências que lhes forneceu os motivos com que elas puderam pensar os fenómenos de que se ocupavam. Tratar-se-á aqui de chamar Aristóteles a avaliar algumas descobertas mais importantes das ciências actuais, a partir duma análise fenomenológica que conta com Husserl, Heidegger e Derrida e com a dimensão filosófica das principais descobertas das ciências do século XX[4], procurando reconsiderar estes dois motivos clássicos do pensamento que os Gregos nos deram, o movimento e a causalidade, tentando tematizar a relação teórica das nossas ciências ao contexto fora do laboratório, recorrendo aqui às categorias de Aristóteles, indagando do seu eventual cabimento heurístico e dos seus limites[5].

A ousia: compreender o movimento dos vivos como auto-móveis
4. Submetida ao devir, a phusis tem nela todavia ciclos temporais, quer dizer que ela muda segundo repetições, razão pela qual Aristóteles poderá encontrar um saber a respeito desse movimento. O motivo da ousia está no centro deste estudo sobre o devir físico: se uma coisa muda, algo nela terá que garantir que continua a ser o mesmo ente e algo que permita compreender a mudança, trate-se dum ser vivo, por exemplo o ovo de que nasce um pintainho, ou duma estátua feita de bronze. É preciso, por um lado, 1) um mesmo “sub-jeito” ou “sub-estrato” (hupokeimenon) que seja garante da uni­dade e da in­dividualidade do ente antes e depois duma mudan­ça; do ponto de vista deste princípio, a ousia é dita hulê[6]: o que deste ovo permanece neste pintainho (outros ovos darão outros pintainhos), o bronze antes e depois da escultura. Por outro lado, a mudança im­plica dois con­trários: 2) um que dá um eidos se­gundo o logos, uma ‘especificidade’ que per­mitirá nomear, ou mesmo definir o ente (o pintaínho e a está­tua tais como se ‘vêem’), 3) o outro que é a sua ausência ou privação (sterêsis) antes da mudança (o ‘não-pintainho’ no ovo, a informidade do bronze). Sterêsis di­ria portanto a ousia ‘antes’ do movimento, o ir-se embora do (outro) eidos cessante, enquanto que eidos di­ria o novo rosto da ousia – o que é ‘visto’ do ente e permite nomeá-lo, o que lhe é específico, por de­finição da sua espécie (galos e gali­nhas, estátuas) – que conseguiu o movi­mento, a mudança, e que subsistirá estavelmente enquanto mor­phê, esta dizendo tal ente, individualizado nos seus acidentes (este pintainho, esta estátua).
5. Estes dois tipos de exemplos são distinguidos nitidamente no início do livro II da Physica (192b8-23): os entes que o são “por na­ture­za”, cujo movimento se faz por “eles mesmos” (kath’autôn) – são os animais e as plantas, as suas partes e os quatro ele­mentos – e to­dos os outros, nomeadamente os objectos técnicos, cuja mudança é devida a outros, mudam “por acidente” (kata sum­bebêkos). Esta distinção é capital, porque a phusis de­fine-se justamente por ter o movimento e o re­pouso por si mesma, ser o princípio dela e a ‘causa’ (aition), que se traduzirá talvez melhor por ‘motivo’[7]. Desenvolvido no livro II, ‘causa’ é dita também em sentidos diferentes, e nomeadamente segundo os princípios deslindados anteriormente: em vez de quatro causas, a causa em quatro senti­dos. O primeiro, o “a partir donde” (donde o ente vem), no qual ele é ­gerado principialmente (o bronze donde a estátua), é dito causa segundo a hulê; o segundo é dito segundo a especifi­cidade, eidos, o logos (a definição); a terceira maneira de dizer a causa, que reenvia ao “primeiro princípio da mudança ou do repouso” (aquele que tomou uma de­ci­são ou o pai duma criança)[8] e que merece melhor o nome de ‘causa’, é ki­noun (o mo­vente ou motor); enfim, a causa em-vista-da-qual, segundo o telos (a meta, o fim, o cabo), como um passeio em vista da saúde. É nas coisas produzidas pela arte (technê) dos humanos que é mais fácil discernir estes quatro sentidos (respecti­va­mente: o bronze informe, uma imagem esculpida, a arte do escul­tor, a estátua a ser colocada em tal lugar para ser admirada), enquanto que para os vivos os motivos eidos e telos parecem mais ou menos coincidir.  Por outro lado, a ‘causa’ como motor in­troduz uma ex­te­rioridade problemática na con­cepção do movimento dos vivos, que é definido como im­a­nente ou por phusis.
6. Para com­preender como se faz a passagem dum eidos que desaparece a um outro no mesmo ente, Aristóteles tem que acres­centar a esta quádrupla doação causal um outro par de motivos: duna­mis[9], o ente enquanto podendo tornar-se tal, capaz de mudar para tal, e entele­cheia, o vir ao cabo (telos) dessa possibilidade, a qual ente­le­cheia é dita por três vezes ser o movimento[10]. Logo de seguida (201b5-15), o exemplo do acto de construção duma casa é dito ener­geia (em-obra, ergon, efectua­do), matiz de sentido em relação a en­tele­cheia. Ora, no prin­cípio do mesmo parágrafo, diz-se que “ser movido acontece a”, o verbo ‘acontecer’ (sum­bainei) sendo a raiz de “acidente” (sumbebêkos): há ac­identes porque há movimento imprevisí­vel, portanto todos os entes sublunares os têm, mas os que exis­tem pela arte dos humanos são inteira­mente por aciden­te, ao in­vés dos entes por phusis, aos quais o movimento é ima­nente, kath’auto. Está aqui o que toca no es­sencial da física aristotélica: ela busca com­preender o movimento dos vivos e é isso que a inér­cia de Galileu e de Newton exclui­rá, por sua vez por razões es­sen­ciais à física deles.

A ousia e o tempo
7. Que a ousia se diga em vários sentidos, implica que este pensador que tanto se serviu da definição inventada por Só­crates o tenha feito todavia de maneira muito matizada (em relação aos seus herdeiros ocidentais), aqui mais pela circunscrição da polis­semia num leque de quatro sentidos e não pela sua exclusão: ele deu de ousia uma espé­cie de definição em constelação polissémica, segundo as di­versas maneiras em que ela se aproxima de tal ou tal outro motivo, sem ter sentido necessidade de multiplicar os termos para estas dis­tinções[11]. Isso é notável no livro das Categorias. Estas obrigaram-no a marcar bem a distinção entre dois dos sentidos de ousia, tendo ele todavia guardado a mesma palavra: a astúcia consistiu em, por um lado, adjecti­var a ousia como primeira no sentido do ente individual, a ousia como hulê-mor­phê, digamos (“este homem ou este cava­lo”) e, por outro lado, adjecti­var como segundas as espécies (eidê) e os gé­ne­ros (genei) “nos quais as ousiai tomadas no sentido primeiro estão contidas” (Categorias, 5, 2a10-16). O género e a espécie (ou diferença es­pecífi­ca) sendo as duas componentes da definição do eidos, esta ousia se­gunda corresponde claramente ao que os latinos tra­duzi­ram por ‘essência’, enquanto que a primeira corres­ponde à latina ‘substância’. No grego corrente, ousia designava as terras, os rebanhos, a residência, o que numa casa era transmitido em herança, de geração em geração: era portan­to o que permanecia o ‘mesmo’ da casa, enquanto as gerações mudavam. Foi sem dúvida por isso que Aristóteles a tecnicizou para dizer a ‘substância’ (o que permanece o mesmo dum animal ou dum humano no decurso das suas vidas) ou a essência (o que ele tem em comum com os da sua espécie, assim definidos tal como ele).
8. Que a tradução de ousia se tenha imposto no mundo latino em dois nomes – substância e essência – não deixou de ter consequências na compreensão do lugar do tempo no pensamento do Estagirita. Duplamente. Por um lado, o tempo diz respeito ao devir, ao movimento, de que ele é o número[12]; a ousia, ao mesmo tempo substância e essência, implica portanto o tempo por ela mesma, es­sencialmente, é caso para di­zer, visto que ela é pensamento da gera­ção – da vinda de cada ente à presença, ou seja ao tempo presente aonde ela durará até à sua corrupção, ao seu desaparecimento – e também pensamento da mudança: alteração, crescimento e dimi­nuição, deslocamento, tudo motivos essen­cialmente temporais. Ora, foi justamente a temporalidade que impediu Platão de a pensar, fazendo dela um Eidos eterno, uma essência fora-do-tempo, que a definição e o texto gnosiológico tinham arrancado ao seu contexto empírico. Por outro lado, é no acidente – categoria particular dum sujeito, que ele tem mas poderia não ter[13], que, sendo um atributo estável de tal ente, lhe pro­vém de algo que lhe ‘sucedeu’, como o seu próprio nome in­dica – que será marcada a condição temporal da ousia-substância a que tal acidente aconteceu. Ora, estes aci­dentes que as narrativas e os discursos con­tam, sempre singulares, são subtraídos por eles mesmos ao conhecimento filosófico ou científi­co, segundo os princípios ou as causas: eles rele­vam do contexto que a defi­nição largou. O motivo do acidente é assim a articulação possível – instituída por Aristóteles – do texto gnosiológico das essências intemporais às narrativas e aos dis­cursos dos acontecimentos: se os acidentes são acidentais, não há todavia ousia sublunar sem acidentes, a acidentalidade enquanto tal é-lhe es­sen­cial. Há pois em Aristóteles após Platão retorno às coisas, mas tais como elas foram definidas na sua capacidade de movimento. Mas este retorno apagar-se-á em parte na tradi­ção latina, onde, quer como substância oposta a acidentes, quer sobremaneira como essência, a ousia se tornará intemporal, cúmplice do eidos de Platão[14].

O duplo laço: compreender o movimento dos auto-móveis inertes
9. Todos os vivos somos auto-móveis, sujeitos de reprodução, crescemos entre nascimento e morte, foi o que Aristóteles pensou; mas não são assim as máquinas a que chamamos ‘automóveis’, certamente devido ao espanto que provocaram quando apareceram no início do século passado em contraste flagrante com coches e carroças puxados a cavalos. Embora andem com velocidades muito maiores do que as dos nossos melhores corredores, eles são inertes, feitos pelos humanos, acidentalmente, em terminologia aristotélica. Sendo um objecto de engenharia que supõe várias regiões da física e da química, poremos a questão de saber como é que, do ponto de vista do laboratório, um automóvel – um inerte que se move – é pensado teoricamente. Ou é pensado apenas empiricamente? A dúvida põe-se, já que na Física dos Europeus, em vez dos vivos que se movem, encontramos bolas de bilhar inertes que chocam uma com a outra, a que se move transmite movimento à que está parada. As coisas no laboratório de Galileu e Newton são inertes: paradas ou em movimento uniforme, só alteram essa situação por intervenção duma força exterior que a acelere ou atrase. A quádrupla causalidade aristotélica deixa de ter cabimento, os Europeus guardarão apenas essa força exterior como causa motora, ou eficiente. Ela é invocada nas experiências laboratoriais, físicas ou químicas, que testam as diversas peças dum automóvel, mas como compreender o movimento deste, que tem entre as suas peças internas algumas que permitem travar ou acelerar? Como é que a teoria global do automóvel enquanto conjunto de peças destinado ao tráfego das estradas é pensada pelos engenheiros? Há aqui um desafio: suponho que essa teoria permanece empírica. Sem a poder desenvolver aqui, proponho uma abordagem fenomenológica que conta com Husserl, Heidegger e Derrida e com as principais descobertas das ciências do século XX (citação § 4). A resposta tem que ser procurada antes de mais na cena do tráfego, no que ela pede como manobras do movimento: acelerar e travar, virar à direita ou à esquerda, tendo em conta o aleatório do caminho a percorrer e dos outros carros ao redor. Obviamente que o desenho e o cálculo das peças do carro é feito sempre em função desta lei do tráfego. E como se faz para ele andar? Aí, há um certo conjunto de peças que dá força para o movimento, feito de cilindro e êmbolo, gasolina e vela de ignição, conjunto de peças esse que tem que ser retirado de todo o resto das peças de regulação do movimento, já que a explosão é perigosa, só obedece à lei termodinâmica[15] dos gases (entre volume, pressão e temperatura). Este conjunto é blindado em seu retiro, ele merece bem o seu nome de motor de explosão, pondo o problema de a sua lei ser incompatível com a lei do tráfego a que obedece o resto do carro, aquilo que se pode chamar o seu aparelho.
10. Teremos então uma definição de automóvel[16] como concebido segundo duas leis incompatíveis e inconciliáveis, uma, termodinâmica, que rege o motor e corresponde à causa cinética aristotélica, a que causa o movimento, mas lhe é interna, auto-, embora com combustível alimentado do exterior, e a outra que rege o aparelho e corresponde à causa final aristotélica, a que destina o carro na cena em vista da sua direcção ou sentido. Dir-se-á que esta não é uma lei da Física; é com efeito uma lei sociológica, mas donde provém a teoria que engloba todas as experimentações de peças do carro segundo as leis da Física e da Química[17]. Quanto aos outros dois sentidos da causalidade aristotélica, a material corresponde às matérias primas de que são feitas as peças do carro e a formal ao conjunto que é a própria invenção dos engenheiros, actualizando-se constantemente em novos modelos com o tempo.
11. Ora bem, os dois conjuntos de peças (duas partes do carro) que distinguimos, o motor e o aparelho de que o carro é construído, são concebidos, em sua autonomia relativa (retiro do motor), como dois laços (ou ligações) de peças antagónicos mas sem que nenhum deles tenha qualquer verosimilhança sozinho, só foram pensados teoricamente e só existem um com o outro, formando um só duplo laço: as duas leis incompatíveis também são indissociáveis na unidade que é ‘um’ automóvel circulando na rua. Ora, o que se passa com a ‘causalidade’ do aparelho é a conjugação das regras dele estudadas laboratorialmente com o aleatório da circulação, o que será uma lei geral dos aparelhos de circulação: obnubilados pela causa / efeito do laboratório que herdaram da filosofia com a definição, os cientistas não conseguem dar-se conta de que, de maneira geral, onde há regras, elas respondem a situações aleatórias.

A tese deste texto: o motivo do duplo laço, no contexto fenomenológico das ciências contemporâneas, é proposto para substituir o par ousia / acidentes da Physica de Aristóteles
12. O que significa que é um motivo que se repetirá em cada grande região científica, segundo o tipo de movimentos que se fazem nas respectivas cenas, que os laboratórios repetem de forma circunscrita. O que serão então, em cada caso, os ‘elementos’ que são enlaçados, que são ligados, à maneira das ‘peças’ dum automóvel? Na cena da gravitação, a da história astrofísica e do planeta terra, são como diremos em post-scriptum (§§ 27-30), primeiro laço, os dos protões e neutrões do núcleo atómico pelas forças nucleares[18], segundo laço, os graves sólidos, líquidos e gases que formam os astros ligados pelas forças da gravidade; na cena da alimentação, a dos animais da evolução biológica[19], primeiro laço, o das células ligadas (em órgãos) pela circulação do sangue que as alimenta, segundo laço, neuronal, ligando órgãos dos sentidos, cérebro e músculos no sistema da mobilidade; na cena da habitação, a da história das sociedades humanas, primeiro laço, o dos vários usos duma unidade social (incluídos os humanos que assim usam) ligados em paradigmas, segundo laço, politico, o dessas unidades locais em sociedades maiores ou menores e seus regimes de troca e de ordem; na cena da inscrição, nos limites da história do saber ocidental, são as palavras feitas de letras alfabéticas em frases ligadas por códigos textuais[20]. Em cada uma destas regiões é sempre o mesmo tipo de ‘coisa’, fortemente repetitiva, que ocupa o lugar do que é retirado por via da lei incompatível com a da cena: respectivamente o núcleo dos átomos, o ADN das células, o paradigma dos usos de unidades locais humanas privadas, as letras do alfabeto. Embora de forma muito limitada no que diz respeito à Física e à Química e com muitas diferenças nos outros da ordem do singular, cada duplo laço segundo as leis da cena respectiva garante ‘um’ composto, um mecanismo autónomo em sua unidade e temporalidade, em seu “ser e tempo” (na linguagem de Heidegger, que redescobriu Aristóteles para o nosso tempo): o que se pode chamar um mecanismo de autonomia com heteronomia apagada.

Os duplos laços dos animais são mais complexos do que os das máquinas
13. Com efeito, o fenómeno do auto-crescimento dos vivos, que fascinou Aristóteles e que a Biologia molecular nos revelou na segunda metade do século que passou, só é susceptível de convir à definição que demos de duplo laço fenomenológico, se este for descrito, no que aos animais diz respeito, a três níveis que se desenvolvem uns a partir dos outros: o das células, o sistema da alimentação delas pelo sangue (carregado pelos aparelhos digestivo e respiratório) e o sistema da mobilidade, implicando a caça e a defesa de ser caçado. (Incorro assim o risco de penetrar em paradigmas científicos, dando atenção ao que, lendo a literatura de divulgação, neles permanece de entrave filosófico, como se verá, sabendo sempre discernir que ao laboratório a entrada nos é vedada.) O nível da célula exibe claramente o retiro do ADN no núcleo como condição da sua preservação de ser degradado nas transformações químicas do metabolismo, como sucede ao ARN mensageiro que o repete na sintetização das proteínas[21].
14. Ao nível geral do organismo dum mamífero, por exemplo, a comparação com a máquina automóvel complica-se com o fenómeno da alimentação e crescimento que a máquina ignora (o que o motor da máquina pede de alimentação é apenas energia, força). O crescimento implica que, no vivo que começa por ser uma única célula seminal, a alimentação, além de energia, terá de ser também de moléculas de carbono que tornem possível a duplicação de células propícias ao crescimento, mas também a substituição de proteínas que se deteriorem devido à fragilidade da sua complexidade. De forma simplificada, o sistema dos vários órgãos de alimentação (digestivos, respiratórios, circulatórios) é enlaçado pela circulação do sangue que leva nutrientes e oxigénio a cada célula. Para que haja comida, este sistema tem que servir de ‘motor’, através de hormonas da fome, dar movimento ao sistema da mobilidade para que este cace e tenha iniciativas de movimento na cena ecológica em que vive: o sistema neuronal cerebral, enlaçando os diversos órgãos de percepção com os músculos dos movimentos responde, como ‘aparelho’, ao motor hormonal que assim o pulsiona à acção na cena ecológica onde ele foi gerado e se alimenta, a que pois pertence, ser no mundo (em termos de Heidegger, mas indo além dele). O sistema da alimentação faz duplo laço com o da mobilidade, este ‘aparelho’ na cena aleatória, aquele ‘motor’ retirado aquém da pele, já que tanto o ADN como as hormonas, ‘endócrinas’, são ‘cegos’ para a cena: provocando fome, não determinam o menu que depende do aleatório da cena[22]. Quais as duas leis que regem este duplo laço? A do ‘motor’ parece ser clara, tem a ver com conseguir-se a sua auto-reprodução, a de todos os órgãos em suas células. E a do ‘aparelho’? Como na cena do tráfego, trata-se de que todos os animais têm que se auto-reproduzir e isso passa, para os carnívoros, por comer herbívoros como para estes por comer plantas, as quais recebem por fotossíntese as moléculas de carbono, glicose, necessárias às células de todos os vivos. Esta lei pode ser chamada lei da selva e é indissociável da lei de auto-reprodução de cada vivo, a qual é obviamente incompatível com ela, sob pena de vida ou de morte. 
15. E a que corresponderão os outros dois sentidos da causalidade aristotélica? O da materialidade é aonde reside a especificidade do movimento dos vivos enquanto crescimento: a sua ‘matéria’ ser constituída pelo seu próprio movimento de alimentação, mas este sendo de predação sobre a ‘matéria’ de outros vivos, empenhando pois a finalidade do sistema da mobilidade, é a partir dos ‘outros’ que se faz o kath’autôn da phusis: a hulê constrói-se elaborando o vindo de fora (kath’etherôn!) para se fazer kath’autôn o seu eidos, o que Aristóteles não pôde saber; ‘constrói-se elaborando’, isso faz-se segundo a acidentalidade, o aleatório dos outros comidos. A causalidade segundo a forma corresponde ao conjunto dum vivo, duma planta e suas flores, dum animal vertebrado ou não, ao que deles se vê e cheira e mexe fora do laboratório, nas cenas das selvas. É a dimensão do animal que joga em cheio face ao outro grande sistema dos vivos, o da sexualidade e suas hormonas de atracção[23], onde nos humanos se desenvolveu todo o gosto da beleza dos corpos e dos seus gestos, de dança e de amor, das artes que os reproduzem e cantam. 

Duplos laços duma tribo
16. Limitemos aqui a análise dos duplos laços sociais a uma tribo simples, composta do laço que formam as diversas unidades de residência local, regido por uma instância de regulação política, à maneira de conselhos de anciãos ou equivalente. Cada uma dessas unidades sociais por sua vez enlaça os seus habitantes segundo as regras do paradigma dos usos quotidianos (equivalente em todas) que se aprendem dos mais velhos e implicam as tarefas de alimentação e protecção de mamíferos que inventaram a culinária e outras técnicas de habitação. Difíceis de inventar mas mais ou menos fáceis de aprender, esses usos são inscritos no sistema de mobilidade (o que Changeux chamou grafos cerebrais) pela aprendizagem que torna cada um hábil no seu executar espontâneo. Este laço interno à unidade local terá a ver com o interdito do incesto que reserva para a exogamia as raparigas, o sistema de parentesco assim instituído sendo o eixo do laço político entre todas as unidades tornadas solidárias por uma aliança que funcionará mormente em situações colectivas, iniciações, festas, funerais, caças ou pescas, e sobretudo guerras com outras tribos. Sendo possível prosseguir as linhas das transformações históricas resultantes da invenção da agricultura e da criação do gado, dos artesanatos e da escrita, limitemo-nos aqui ao mais simples duplo laço social, o que rege a vida quotidiana das unidades locais e ao que rege o conjunto segundo as regras do parentesco.
17. Quais são as duas leis que regem estes duplos laços sociais? A que rege o paradigma das unidades é simultaneamente ecológica, depende da abundância de fauna e flora da região, dos trabalhos de caça e colheita, e organizativa de forma autónoma, a ‘privacidade’ de cada unidade sendo condição de trabalho sem ter toda a multidão da tribo às costas. A auto-reprodução de cada uma implica que todas assegurem, à maneira dum ‘motor’, a auto-reprodução da tribo, sendo que o aleatório de guerras ou outras urgências implique a regulação do conjunto para garantir todos e cada um, já que só sobrevivem em conjunto, as duas leis são indissociáveis. Quanto à sua inconciabilidade, basta saber das constantes rivalidades entre unidades, como aliás dentro de cada unidade – ‘quem pode mais?’ – para se ver como as regras da privacidade são uma defesa elementar contra a balbúrdia generalizada. Sucedendo à lei da selva que desenvolveu músculos e astúcias, as sociedades humanas parecem ser regidas pelo que há que chamar lei da guerra.
18. Qual é a causalidade material aqui? Ela é dupla: por um lado, as inscrições técnicas que são as próprias residências e seus utensílios, por outro, os grafos que se inscrevem em cada indígena. Quanto à causalidade segundo a forma, ela manifesta-se na ornamentação das casas e dos corpos que a sublinham e procuram que seja melhor do que a dos vizinhos. E colectivamente nas danças e festas.

Os duplos laços da linguagem
19. A linguagem, uso social duplamente articulado que – juntamente com outros usos, diversos segundo as geografias e os períodos da história, a que ela fornece receitas que permitem aprendê-los – faz parte das ‘moléculas sociais’ que constituem os paradigmas das unidades sociais como ‘células’ duma sociedade. A linguagem oral, estudada pela Linguística estrutural iniciada por Ferdinand de Saussure, será o quarto exemplo fenomenológico. Foi André Martinet quem propôs a dupla articulação como inerente à linguagem oral (e ao alfabeto)[24], entendendo logo que ela se adequava admiravelmente à biologia dos humanos, quer ao seu sistema de fonação, quer ao sistema cerebral. Com efeito, as nossas gargantas não são capazes de fazer de forma suficientemente distinta mais do que algumas dezenas de sons elementares, os que catalogamos entre vogais e seus acentos, consoantes, ditongos, fonemas orais ou letras escritas: donde que esses elementos não possam servir para designar o que quer que seja, sob pena de se esgotarem num ápice. O truque então foi o de retirá-los da comunicação e compor com eles palavras para se dizer receitas, contar mitos e outras histórias, conversar indefinidamente com alguns milhares de palavras que facilmente decoramos nos nossos cérebros. As palavras são assim duplamente enlaçadas, ligando fonemas e letras para se constituírem e sendo ligadas em frases de discursos e de textos para terem sentidos concretos, segundo o aleatório da cena, de habitação ou de inscrição, do que há que dizer ou escrever, como qualquer conversa ilustra, nunca se sabe o que o outro vai dizer e a que haverá que responder.
20. A linguagem é pois um uso, variável com os povos, que se aprende de outros indígenas, como se de uma alimentação se tratasse mas ao invés das predações, já que para criar redes de relação comunitária, embora susceptíveis de zangas e conflitos. A causalidade em sentido motor é dita pelo termo ‘pressão’, quer quando se fala de ‘expressão’, a voz que é ex-pressa, pressionada para fora, para outrem ouvir, quer de ‘impressão’, como os nossos dedos com caneta e tinta ou no teclado das letras e dos números, pressionando um material que se preste à leitura. Esta causalidade motora joga-se assim como voz, laço de sons entre garganta e boca e ouvidos do outro, como letra num laço de riscos entre mãos que escrevem e olhos que lêem. Mas ela obviamente que não é suficiente, já que um estrangeiro nem compreende o que é dito nas frases que ouve nem o que vê em linhas escritas, crendo embora que aquilo tem ‘sentido’, não o capta. Este releva então do outro laço, o do discurso (texto), cujo sentido é o que quem fala ou escreve propõe comunicar, a sua finalidade, seja resposta dada, seja questão posta a outros. Enquanto que as regras da fonologia regem a constituição das palavras, as relações diferenciais dos fonemas entre eles nas vozes motoras das falas, enquanto que as regras da sintaxe, morfologia e semântica[25] regem o jogo das diferenças entre palavras na frase e no discurso (ou texto). Quem fala é como que o piloto que governa a direcção das frases que vai dizendo e as relações entre elas, segundo o aleatório das conversas, devendo essa direcção obedecer à lei da verdade tribal que é inerente a qualquer língua como condição de entendimento entre os interlocutores, que modula por exemplo os verbos relativos ao ‘saber’ entre ignorância, dúvida, erro, certeza, e por aí fora, que admite ficções mas não mentiras, a não ser que estas ganhem a aparência de verdade. Esta lei da verdade tribal é correlativa da lei de aliança gerada pelo sistema do parentesco, sem a qual nenhuma sociedade sobreviveria.
21. Questão curiosa aqui, que Aristóteles terá ignorado, presumo, é a da causalidade material das falas ou dos escritos: será o ar em frequências sonoras ou o papel em que se escreve e onde o escrito perdura? Os sons e os riscos? Sabe-se que de Saussure recusou que os fonemas e as palavras consistissem nos sons que as vozes dizem e que por isso mesmo diferem de falante em falante com a empiricidade das respectivas vozes; para ele, a ciência linguística não retém como pertencendo à língua senão as diferenças entre esses sons, ‘significantes’ (diferenças entre fonemas) e ‘signifiés’ (diferenças entre palavras das frases). Mas propus sem esta hesitação que os sons da voz sejam o ‘motor’ da fala: a causalidade de tipo material distingue-se entre sons e significantes, sendo que estes – diferenças entre os sons – não são ‘materiais? Curiosa questão que nunca se me pusera, há mais de trinta anos que trabalho sobre estas questões e que foi a problemática aristotélica quem me levantou. A resposta está em ambas, na indissociabilidade entre a fala e a língua. A causalidade material das falas, que as línguas não a têm fora daquelas, será então a indissociabilidade entre os sons da voz e os fonemas significantes da língua nas frases de palavras feitas. E a causalidade formal (do eidos) será o sentido global do discurso (significantes e significados indissociáveis) em sua maior ou menor verdade e beleza, mais claro por certo nos grandes textos de ficção e de pensamento. Crucial como é a questão da causalidade em Aristóteles, como aliás a gramática que dele se forjou utilizou as categorias dele – os ‘substantivos’ e as ‘substâncias’ – em correlação entre a palavra e o que ela designa, percebe-se como foi necessária a Saussure uma inteligência de ruptura com essa gramática e com a filosofia que ela transporta (exclusão do nomenclaturismo pelo Curso de Linguística Geral).
22. O duplo laço da linguagem é então o que une fonemas em palavras na voz de cada falante e o que une as palavras em sequências de frases  de discursos (textos), o que dá força de falar e o que dirige a fala como pensamento. Dois laços que são indissociáveis, como condição de os falantes se entenderem na mesma língua, formam pois um só e duplo laço, voz e pensamento do discurso, mas também inconciliáveis, como condição da liberdade de cada falante ao exprimir-se, que pode rebelar-se de muitas maneiras contra a lei de auto-reprodução da sua língua, mentindo por exemplo trivial e, por exemplo nobre, fazendo poemas, inventando metáforas e outras figuras poéticas e retóricas não acolhidas pela língua e pela cultura, escrevendo ficções e pensando coisas novas com as palavras dos outros (Manuel Gusmão). Mas não só; cada um de nós que aprende a falar no dia a dia fá-lo sempre à sua maneira que cria idiossincrasias que se estabilizam num estilo inédito, só possível pela inconciliabilidade das duas leis, pela resistência oferecida aos próprios mestres que nos ensinam, pela aprendizagem da palavra crítica. Este enigma entre uma lei social e uma lei individual indissociáveis e inconciliáveis constitui a essência da nossa liberdade e habilidade, a nossa sociabilidade intrínseca.

Duplo laço: tudo é indeterminado em seu movimento
23. O que é que nos ensina esta comparação com a concepção aristotélica do movimento, que a modernidade europeia considerou caduca? Que se tratou nesta duma miopia sobre os entes vivos nomeadamente, sobre a sua posição nas cenas da dita realidade, miopia essa que resultou do deslumbramento provocado pelas descobertas permitidas pela invenção do laboratório, por seu lado positivo, mas também, negativamente, pela incapacidade logocêntrica (Derrida) de compreender a necessidade desse laboratório para reduzir o contexto dos fenómenos analisados. Ora foi nesse contexto que as análises fenomenológicas aqui esboçadas se fizeram. Ou seja, os cientistas tomaram o que se passava no laboratório como ‘conhecido cientificamente’, transponível sem mais na realidade extra-laboratorial: em terminologia aristotélica, reduziram-lhe a acidentalidade para reter apenas o essencial no laboratório e que esse essencial seria universalmente válido lá fora em qualquer contexto[26]. Sucede no entanto que as operações de laboratório são sempre fragmentárias, há que as multiplicar segundo aspectos vários e depois compor esses fragmentos numa ‘unidade’, para poder chegar a teorias relativas aos entes de tal espécie (graves, vivos, discursos, máquinas), como aqui se tentou mostrar fenomenologicamente.
24. Dado que todos esses entes são susceptíveis de movimento (ou de serem movidos), o que é que se mostrou no que diz respeito à causalidade desse movimento? Que este exige um duplo registo entre ‘motor’ – repetitivo e interno, retirado da cena de movimentação que ele ignora e a que dá a força (e a substância) de se mover – e ‘aparelho’, que se adequa ao aleatório dessa cena, segundo as regras que os cientistas descobrem. Grande novidade que parece ainda por saber, as ciências tornaram possível conhecer as regras do que se chama habitualmente ‘realidade’, ‘ambiente’, conhecer as cenas de circulação dos entes segundo os quatro grande níveis que enunciámos acima (§ 12), sem que os cientistas pareçam dar-se conta de que todo o alcance dessas regras é função das circunstâncias aleatórias das cenas da dita realidade, sem dúvida porque obnubilados pela causalidade de tipo cinético que rege a experimentação laboratorial. Este ‘aleatório’ mais não é do que aquilo que, desde Aristóteles, se pensou como acidental, que esta fenomenologia, filosofia com ciências, mostra agora ser algo a que respondem as regras dos aparelhos de cada tipo de ente: tal como no automóvel, as regras que as ciências descobrem visam essencialmente as situações aleatórias da cena (e é por isso que este motivo deve substituir o genérico e inerte ‘realidade’, ‘ambiente’). Cada ente é um mecanismo autónomo[27] sujeito a duas leis, uma que dá força aos seus movimentos (e substância), outra que lhe confere sentido, direcção, finalidade.
25. É a definição de Aristóteles que é assim tornada caduca, a sua oposição entre essência ou substância e acidentes (que nós continuamos a usar muitas vezes), ou seja a oposição entre o ser e o tempo e entre ser e mundo (contexto exterior). Percebe-se que Heidegger passou por aqui. Como se disse, a definição arranca o fenómeno definido ao seu contexto, deixa a estes os ‘acidentes’ por conhecer e define apenas o que assim isolou: eis que se justifica que o pensamento ocidental tenha sempre privilegiado o ‘dentro’ sobre o ‘fora’, a interioridade sobre a exterioridade, o ser sobre o seu contexto. Até à viragem iniciada por Ser e Tempo. Ora, o duplo laço é a caracterização do ente que se move como ligado por duas leis, uma que – rege o ‘motor’ – lhe dá o movimento vindo de ‘dentro’ e a outra que – rege o ‘aparelho’ – dita as regras do ‘fora’ que o deu e onde ele circulará. Dentro e fora são articulados indissociavelmente sem se conciliarem no entanto[28], em eco à reclamação de Derrida na sua De la Grammatologie (1967). Mas ao caducar, Aristóteles não se rende, porque permite restituir contra o determinismo laboratorial a indeterminação de todos os entes terrestres (sublunares) do menos complexo ao mais complexo[29], desde a inércia dos graves[30], passando pela autonomia de plantas e invertebrados, até ao enigma dos vertebrados, sobretudo os bem mais complexos humanos em suas sociedades, a que reservamos o nome de liberdade. Quanto à matéria e forma de Aristóteles, poder-se-ia dizer de forma geral que as artes inscrevem diferenças (não ‘formas’) em matérias de empréstimo, como dizia Alain da pintura[31], e os ofícios e engenharias inscrevem formas em matérias primas. A aprendizagem consiste em inscrever os usos como grafos sinápticos nos neurónios dos cérebros aprendizes, tornando-os hábeis. Quanto aos vivos, na sua geração parece ser o citoplasma do óvulo da fêmea a ‘matéria’ em que os genes combinados da fêmea e do macho são inscritos. Enfim, os usos, técnicos e leis, serão o que inscreve uma sociedade como tal, como habitação sobre a Terra.
26. É possível que os cientistas, tão mobilizados por trabalhos de investigação ultra especializados, em equipas e por vezes com equipamentos muito pesados, não tenham interesse por estas questões, tanto mais que fazem intervir um filósofo da chamada Antiguidade de que se julgam desembaraçados pela chamada Modernidade, é possível que não as entendessem sequer, ainda que tivessem vagar. Mas aos filósofos que se interessam por ciências, o recurso ao Estagirita poderia ser o aliciante para o que faz o prémio desta disciplina do saber, o alargamento da compreensão das coisas: a dificuldade de leitura dos meus textos de filosofia com ciências, consiste por um lado no facto de que os leitores não conhecem as diversas ciências que aí intervêm, quanto muito uma ou duas e que, quando conhecem uma ou outra, é segundo o epistema greco-europeu em que se privilegia o interior (a substância, a ousia) sobre o exterior, o ‘ambiente’ (os acidentes). O problema da Biologia (e das ciências europeias em geral) é ela estar presa à determinação que caracteriza o laboratório mas que vem já da definição e do privilégio que lhe é inerente entre o definido e o contexto donde ele é arrancado, da essência / substância sobre os acidentes, do dentro sobre o fora. Ora, no laboratório só se fazem análises bioquímicas entre moléculas, que é onde a determinação decide correlações regulares entre essas moléculas, caso por caso, fragmentariamente. Para ajuntar esses fragmentos em teorias ter-se-á que considerar, sem laboratório todavia, a maneira como os vários órgãos agem na anatomia do organismo, tendo em conta os dois sistemas da auto-reprodução, o da nutrição e o da mobilidade, que o sistema cerebral coordena (além do sistema da sexualidade, relativo à reprodução da espécie). Ora, o determinismo aqui claudica, como a análise fenomenológica mostra recorrendo ao ciclo bioquímico do carbono para demonstrar a lógica da lei da selva, mas desde as grandes descobertas da biologia molecular, nos anos 50 e 60, que se viu os genes encarregados duma função determinista sobre ‘aspectos’ variados do organismo (os mais cómicos sendo o gene da inteligência e o da homossexualidade). O duplo laço desconstrói este privilégio do dentro / fora, substância / contexto vindo da definição, esta oposição entre o organismo e o ambiente, entre o ente vivo e a cena que o dá e deixa ser, o gera e alimenta.

P. S. Duplo laço e big Bang
27. O motivo de duplo laço foi descoberto em função do movimento dos vivos mas tendo um modelo simplificado, o das máquinas modernas, o que permite uma extensão para a descoberta essencial da Física e Química no século XX, a do átomo e da molécula, interrogando o motivo mesmo de ‘explosão’ que joga no motor que tem esse nome: donde lhe vem a força? A resposta consiste na compreensão da passagem do estado líquido da gasolina ao estado gasoso provocada pela ignição: são desfeitas as forças electromagnéticas que ligam as moléculas do líquido, libertas em forma de gás; o que significa que o estado líquido depende de forças que ligam electrões de moléculas, como o sólido também, isto é as moléculas ligadas num grave (uma rocha, por exemplo). Se interrogarmos as explosões nucleares, que libertam muito maior energia, são agora protões e neutrões dos átomos de urânio que são desligados uns dos outros e se expandem, às forças que os ligam no núcleo atómico os físicos chamando forças nucleares. Então, embora se trate duma questão polémica, é possível dizer que qualquer grave é composto de duplos laços de moléculas: um constitui o núcleo do átomo, o outro consiste no conjunto ligado de electrões, tanto os do átomo como os que ligam átomos em moléculas e estas em graves líquidos ou sólidos. O que é difícil nesta proposta é pretender que o núcleo do átomo seja um ‘motor’ e os electrões um ‘aparelho’, embora o primeiro seja retirado das trocas químicas a que os electrões se sujeitam e das forças da gravidade que jogam na respectiva cena dos astros, esta última retracção parecendo óbvia nos efeitos anti-gravidade das explosões, a expansão energética em que elas consistem.
28. Com todas as cautelas (e ‘pareces’) que se impõem ao leigo, o motivo astrofísico do big Bang parece abrir um tempo de explosão de ‘partículas’ (electrões, protões, neutrões, fotões) que parece desafiar a gravidade, a qual, a crer nos aceleradores de partículas, parece não ter cabimento nessas explosões experimentais. Ora, o motivo do duplo laço só parece dar conta de ‘matéria’ em sentido corrente, de graves sólidos, líquidos ou gasosos, que são ligações duplas de muitos milhões de moléculas. Como dizia Bohr, “o átomo é um ser de laboratório”, só neste é susceptível de observação e manipulação experimental, os aceleradores de partículas também são laboratórios, apesar das suas dimensões, mas não creio que susceptíveis de manipulação laboratorial propriamente dita sobre as partículas que neles explodem, não parecendo possível com os protões, neutrões e electrões à solta ‘recriar’ átomos, já não digo de urânio, mas de hidrogénio ou hélio. Ou seja, não haverá duplos laços num acelerador de partículas como não os terá havido no que sucedeu após o big Bang dos físicos. Se for assim, a questão que se porá é a de saber como é que esses duplos laços se constituíram.
29. A dúvida não é de física (seria apenas ignorância minha e esta é imensa), mas de filosofia ou fenomenologia. E não é sobre o big Bang propriamente dito que, enquanto explosão, pressupõe ligações anteriores que se desfizeram e é compreensível que não se saiba dizer grande coisas sobre esse ‘antes’. Comentei a questão num texto inédito, lendo as célebres lições sobre Física de Feynman em 1961, tendo verificado que ele privilegia sistematicamente os ‘entes’ (graves, átomos, cargas eléctricas) ‘antes’ dos campos de forças, ao contrário do que creio ser a lição da Física: são os campos que ‘constituem’ os entes, embora seja das forças entre os entes que sejam os campos, sem poder pois decidir entre uns e outros. O privilégio dos entes parece-me ser ‘a’ maneira (substancialista) de fazer de toda a Física, desde Newton, cuja mecânica esclarece muitas questões das forças nos movimentos mas não é capaz de compreender a força da gravidade (que Feynman diz continuar a não se saber ainda hoje, mas também não a energia), enquanto que o que a ciência dá a conhecer são “diferenças e proporções” entre medidas (Galileu)[32]. Ora, os duplos laços em Física são uma abordagem fenomenológica dos campos de forças (nucleares, electromagnéticas e gravitacionais). É possível pensar uma enxurrada explosiva de protões, neutrões e electrões à solta sem campos de força entre o big Bang e a constituição dos primeiros átomos (nucleossíntese) de isótopos de hidrogénio, hélio e lítio (ao fim dos primeiros 100 segundos, parece)? Como é que esses campos de forças se constituíram? Nos aceleradores isso pode ser repetido experimentalmente? (vê-se a ignorância do questionador em termos de Física, que não sabe avaliar o papel da temperatura nestes processos).
30. A fenomenologia suscita uma segunda dúvida, agora a respeito da força da gravidade, que julgo que só é conhecida experimentalmente em astros e seus graves. Parece-me surrealista a ideia de haver gravitões em partículas, a própria noção de ‘uma’ partícula ‘ter’ uma força parece-me sintomática do pressuposto de que falei no parágrafo anterior: são entidades de estatuto físico diferente, pelo menos isso é razoavelmente claro na física newtoniana, que analisa movimentos de ‘entes’ inertes sujeitos à causalidade de forças cinéticas, e por esse mesmo privilégio será incapaz de entender a força de gravidade a distância, já que a pensa como as forças cinéticas que tão bem analisou e compreendeu. Um outro sintoma deste problema epistémico da Física é a noção, tanto em Newton como em Einstein, de que o movimento é relativo ao espaço e tempo num, ao espaço-tempo no outro, como se houvesse primeiro o espaço e o tempo e depois os graves, astros, etc., como se não fosse verdade em termos gerais a definição aristotélica de tempo como “o número do movimento”: é em relação a este que ele é medido, tanto nos laboratórios como em astronomia. A hierarquia dos físicos – 1º o espaço tempo, 2º as coisas inertes 3º as forças que as movem – deveria ser invertida – 1º os campos de forças (os duplos laços) 2º as coisas que eles constituem 3º o movimento delas susceptível de ser medido como espaço tempo. Se este parágrafo mostra alguma coerência fenomenológica, há que acrescentar que falta a competência filosófica do autor para ir além de levantar lebres. Também seria preciso ter em conta as “estruturas dissipativas” de Prigogine, a sua descoberta da “produção de entropia”, que aqui ficou silenciada.

2º P. S.
31. Ter começado pela Linguística, foi, além da minha primeira formação em engenharia, condição necessária do que fiz ou poderia ter começado com outra ciência, já que a escrita de Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida começou pela biologia, por exemplo, e também aí se tratou a antropologia de Lévi-Strauss antes da linguística? Não é impossível, mas o que é certo é que quando a questão me ocorreu, me aconteceu, momento bendito de pensamento nos idos de 86, vieram as várias ciências todas juntas –da energia e matéria, da vida, da linguagem, da sociedade e do psiquismo – e sempre assim permaneceram (com Derrida, antes de explicitar a fenomenologia com Heidegger e Husserl), apenas as ciências da sociedade tiveram que levar algumas voltas. Mas todas as outra só puderam vir porque a minha tese de doutoramento tinha sido sobre linguística e a dupla articulação da linguagem (que nunca vi tratada por filósofos).
Comunicação ao Congresso Português de Filosofia, Sociedade Portuguesa de FIlosofia, Lisboa, 5-6 de setembro 2014




[1] http://filosofiamaisciencias2.blogspot.pt/2013/12/porque-e-que-as-ciencias-precisam-de.html
[2] Enquanto que a sua Metaphysica, literalmente uma Pósphysica, estuda em seguida as categorias  que foram definidas na Physica considerando o ente enquanto ente. “A Physica de Aristóteles é, de forma retirada, e por essa razão nunca suficientemente atravessada pelo pensamento, o livro de fundo da filosofia ocidental” (Heidegger, 1968, p. 183)
[3] A ousia da tragédia é definida no início do capítulo 6 da Poética e comanda todas as análises que se lhe seguem, da tragédia como da epopeia.
[5] Simplificarei a abordagem, que http://filosofiamaisciencias.blogspot.pt/2012/02/version1.html desenvolve mais tecnicamente.
[6] ‘Bosque’, literalmente, ‘madeira de construção’; ‘matéria’ em la­tim e em português.
[7] “A ‘causa’ não é algo que produz um efeito, mas aquilo cuja busca nos dirige para aquilo a partir do qual um ser é dado, [...] um princípio traduzi­do num ponto de vista” (J.-L. Poirier, 1990, p. 19, eu subl.). ‘Motivo’ tem a vantagem de assinalar o movimento (motus).
[8] E não a mãe! A razão parece estar na ignorância dos mecanismos da con­cepção. Uma vez que não se trata de geração espontânea, é preciso um moti­vo segundo a hulê, que Aristóteles (e provavelmente os homens do seu tempo) encontra na analogia (mesmo nome na língua) do esperma macho dos animais com a semente (sperma) donde saem as plantas: ele julga que é esta semente masculina sozinha na ‘terra’ feminina que é a origem dos bebés.
[9] Da família semântica de dunaton, possível: o que se pode, o poder como ser capaz de, a força (dinâmica) de poder­-devir-outro (tradução latina por ‘potência’).
[10] Física, III. 201a10-11, 27-29, 201b4-5.
[11] Ele que diz que “não significar uma coisa única, é não significar nada [...] porque não se pode pensar se não se pensa uma só coisa” (Metafísica, IV, 1006b7-10).
[12] Física, IV, 219b1. Antes de mais do movimento dos astros celestes: “é de algo de contínuo, que o tempo é o número, a saber do movi­mento cir­cular” (Sobre a geração e a corrupção, II, 337a24), isto é, os dias, os an­os, as esta­ções.
[13]  “O que pode ser verdadeiramente dito de qualquer coisa, mas não neces­saria­mente nem habitualmente” (Metafísica, D, 30, 1025a14-15). As nove ‘categorias’ além da ousia são, segundo Aristóteles, as classes de ‘acidentes’ que podem ocorrer.
[14] Gilson dirá que o movimento é para Tomás de Aquino um acidente, em linha com a qualidade (Le thomisme, J. Vrin, 19475, p. 47).
[15] Dinâmica é a parte da Física que estuda as forças.
[16] Extensível a todas as outras máquinas, os motores eléctricos relevando da Electrodinâmica, mas também esses motores são blindados, retirados do contacto com o resto do aparelho. As máquinas diferem entre si, além da dimensão, é claro, sobretudo devido ao aparelho que é relativo ao trabalho que lhe compete
[17] O carro é parte dum uso social: como qualquer outra máquina, articula Física e Química com Antropologia.
[18] Simplifico, já que os duplos laços desdobram-se frequentemente, com electrões por forças electro-magnéticas que perfazem os átomos e as moléculas, quer simples quer compostas.
[19] Não sei de plantas, mas é claro que elas fazem parte, à sua maneira, da evolução.
[20] E em certas ciências os caracteres matemáticos (números, letras e sinais de operações) ligados em problemas. A que se acrescentarão os sons musicais em músicas diversas, as imagens em molduras, em planos de cinema ou televisão, e por aí fora, cuja relação à história do saber ocidental que não sei articular fenomenologicamente.
[21] Mas, tal como com o átomo e molécula aliás, a sua descrição em termos de duplo laço não se presta a identificar o ADN como ‘motor’ de que o metabolismo seria o ‘aparelho’, como se estes dois duplos laços primordiais da matéria, inerte e viva, não pudessem devido a essa sua condição inaugural obedecer à lógica dos compostos mais complexos que eles tornarão possível.
[22] Parece ao leigo em biologia que os biólogos foram levados a pensar a grande descoberta da genética como se se tratasse dum ‘motor’ que tudo explicaria, quando no fundo mais alcance não parecem ter do que o da reformulação das suas próprias proteínas. Ora, também o motor dum automóvel é cego para o tráfego, a cargo do ‘aparelho’, incluindo o condutor como sua peça piloto.
[23] Onde se mostra que é a sexualidade que obriga o animal vivo, o humano, a sair do ‘egoísmo’ da sua auto-reprodução e a virar-se para a/o outra/o, em favor da reprodução da espécie.
[24] Que não às outras ditas impropriamente ‘linguagens’, matemática, músicas, mapas, desenhos, fotos, etc.
[25] Voz e discurso são as duas componentes da fala (parole) na Linguística saussuriana, após L. Hjelmslev (morfologia e sintaxe) e M. Gross (sintaxe e semântica), elas tendem a ser unificadas em paradigmas que variam com as línguas (mesmo tratando-se de línguas da mesma família, como as latinas).
[26] Tratei desta questão numa comunicação ao Congresso Philosophy of Science in the 21st Century – Challenges and Tasks, December 4th to 6th, 2013. Ver em
http://filosofiamaisciencias2.blogspot.pt/2013/12/porque-e-que-as-ciencias-precisam-de.html
[27] Há vários aspectos da análise em termos de duplos laços que não foram aqui tidos em conta, como o da doação apagada e o da entropia prigoginiana.
[28] Pode-se pensar que foi a inconciliação que de-cidiu o corte definitório da indissociabilidade pela de-finição, o que ajuda a compreender a história do pensamento, o alcance da desconstrução.
[29] Que são compostos, o ‘simples’ não existe.
[30] “A inércia de cada grave é o efeito das forças nucleares dos seus átomos: por um lado, ela é a resistência à sua desagregação, o garante da sua impenetrabilidade de grave (desde a chamada “resistência dos materiais”), por outro é a ex-posição às forças gravitacionais e / ou electromagnáticas propícias de transformações químicas. Ora, esta só é possível por causa da resistência, pela inconciliabilidade da inércia com as forças atractivas vindas de outros graves. Mas por outro lado, é das ex-posições de inércias resistentes de todos os graves da cena que é feita a lei heteronómica do campo gravitacional como do electromagnético. Como não há campo (ou cena) senão pelo conjunto das forças entre os seus graves, as duas leis, a do campo e a de cada grave, são indissociáveis” (Belo, 2007, cap. 13, § 76).
[31] Ver http://www.educ.fc.ul.pt/hyper/resources/fbelo.htm, sobre “palavras, números, músicas e imagens”.
[32] É entre ‘diferença’ e ‘substância’ que o problema fenomenológico se põe : pretendo aliás que se é certo que foram Heidegger e Derrida que o explicitaram, foi a Física de Galileu e de Newton que abriu a possibilidade dessa explicitação fenomenológica. Se estas parágrafos ficam em post-scriptum é enquanto reenvio para outro texto em que este problema é colocado: Da Natureza à Técnica, da modernidade antiga à moderna (e.book), além de Belo 2007 e Belo 2009, e o indicado à entrada http://filosofiamaisciencias.blogspot.pt.

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