quarta-feira, 11 de junho de 2014

Psicanálise e Antropologia


o corpo sem órgãos  de Deleuze
           

1. A relação da psicanálise à antropologia pode ser estabelecida pela passagem do ser no seio da mãe que é o feto e depois o bebé que mama para o ser no mundo da tribo, isto é, para a aprendizagem progressiva dos usos segundo o paradigma das unidades sociais onde a criança vai crescendo (família e escola na actualidade ocidental). Tal aprendizagem é correlativa da alimentação e da protecção que a criança mamífera precisa enquanto não for capaz de ter a sua parte autónoma no paradigma que garante essas precisões biológicas. Ora, o contacto recente com o motivo do corpo sem órgãos que Deleuze e Guattari propuseram no Anti-Édipo (1972) – motivo que não entendera senão como recusa da relação da psicanálise com a biologia, como o próprio Freud o fez em parte na Interpretação dos sonhos abandonando os ‘neurónios’ cerebrais do Esboço de psicologia clínica e mais acentuadamente Lacan com o motivo do “inconsciente estruturado como uma linguagem” – fez-me voltar a considerá-lo, mas agora usando um truque de leitura que me é frequente diante de motivos filosóficos que procuro trazer a uma perspectiva fenomenológica, que sempre me foi mais familiar: procurar traduzir esses motivos em exemplos (tenho um textozinho sobre isso neste blogue).
 
2. Como traduzir biológica e antropologicamente o corpo sem órgãos? Verificando que no ventre materno o feto é alimentado directamente no seu sangue pelo da mãe através do cordão umbilical que os une, ainda que, como sucede frequentemente, os sangues sejam de tipo diferente, mas nutrientes e oxigénio passam dum ao outro e no feto vão a todas as células sem respiração nem digestão, isto é, sem órgãos: nem boca, nem estômago, intestino e fígado, nem pulmões. Estes órgãos correspondem às necessidades anatómicas da biologia de qualquer humano que durarão toda a vida e são introduzidos com o parto, como se sabe, num processo em que o digestivo é progressivo, começando pelo líquido leite materno antes de vir a mastigar com dentes mais tarde. Mas a dependência desse corpo agora com órgãos em relação a quem lhe garanta alimentação e protecção, as duas necessidades imediatas de qualquer animal, desde os invertebrados, vai continuar no que se poderá chamar um corpo ou um sujeito sem usos, durante todo o tempo, variável segundo as sociedades, de aprendizagem dos usos adultos que lhe permitirão trabalhar, isto é, participar em paradigmas de usos que tenham alimentação e protecção como contrapartidas (salário em sociedades de direito, no nosso caso mais frequentemente). Porquê ‘sujeito’? porque é justamente esse o efeito das aprendizagens dos usos sociais, desde a própria língua, tornar sujeito relativamente autónomo como ser no mundo quem começa por não o ser e se altera como sujeito a cada novo uso que se torna sua habilidade esponânea.
3. O parto traz os órgãos e a aprendizagem traz o mundo. Entre ambos, após o período do ventre de  corpo sem órgãos pleno, um período de latência até ao estádio de adulto, embora com trabalho infantil nas casas rurais de antanho e escolar actualmente, permite que o motivo de corpo sem órgãos como que se prolongue parcialmente no corpo ou sujeito sem usos como tempo de brincadeira, isto é, de jogos sem finalidade fora deles, que valham pelo prazer que dêem, rivalidades incluídas e respectivas malandrices. Jogo além das necessidades de alimentação e de protecção que a respectiva unidade social (família, escola) garante, mas sendo de sublinhar que é lição fundamental do Anti-Édipo que esta tribo, aqueles que as crianças conhecem regularmente, é envolvida por gente de outras tribos, gentes estranhas que se não conhece, de que se desconfia, em círculos que se prolongam até bairrismos, outras cidades, estrangeiros enfim, e a organização capitalista que penetra todas estas unidades sociais: nomeadamente o dinheiro como fetiche dominante, o endurecimento do poder nas relações hierárquicas, a mediocridade mediática.
4. O corpo sem órgãos e sem usos pode-se talvez dizer que perdura como corpo brincalhão que sobrevive sempre aos usos diários e profissionais como um ‘além’ que pede amor e amizade, leituras, artes, actividades cívicas, férias, viagens, que sei eu da lista possível de coisas que relevam do gratuito (ainda que haja dinheiro a gastar), além de entretimentos diversos em que o futebol predomina: divertimento é a palavra que diz de forma geral o que nos desvia dos constrangimentos quotidianos para o diverso que vale por si. Outra palavra que parece ligar-se melhor ao que venha da brincadeira da infância, é a paixão que pode agarrar uma vida profissional inventiva de usos a melhorar, paixão que dispensa divertimentos, como um grande amor. 

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