segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Memória em fenomenologia neurológica



1. “A memória vem do mundo” é o título do capítulo sobre a memória entre Changeux e Damásio em Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida (2º volume), o que sugere imediatamente a concepção heideggeriana do humano como ser no mundo, o que chocava inevitavelmente com o empirismo (filosófico) da neurologia reinante e portanto dos dois autores que me permitiram articular o que escrevi: ficava suspenso sobre a grande dificuldade da abordagem neurológica da memória. Apenas o motivo de grafo de Changeux podia ser encarado como lugar dela, mas parecia-me que se tratava dum motivo ‘teórico’ que os instrumentos laboratoriais não poderiam discernir, já que eles detectavam o ‘fluxo nervoso’ que passava por esses grafos, mas sem poderem, julgava, discernir a diferença entre o fluxo nervoso actual e o grafo que ele percorre. Eis senão quando a leitura dum texto sobre a intoxicação da Internet que torna incapaz de ler um livro de seguida[1] assinala o livro do prémio Nobel de medicina de 2000 Eric Kandel [2] como trazendo inovação neurológica capital sobre a questão, relacionando estreitamnte memória e aprendizagem na mesma questão laboratorial. O texto é deslumbrante, quer no que inova em relação à memória e à aprendizagem, quer na maneira como intercala a história das descobertas da neurologia desde Cajal e Freud na sua própria história de investigador e das suas equipas com quem trabalhou e que evoca calorosamente, desde que, miúdo de 9 anos duma família de judeus vienenses, foi obrigado a emigrar para os Estados Unidos, tendo começado por ser médico e querer ser psicanalista, até à descrição das cerimónias do P. Nobel. Tendo compreendido que a Áustria, ao contrario da Alemanha, não fizera um “exame de consciência” sobre o seu passado nazi desde a anexão por Hitler, quando lhe propuseram homenageá-lo como nascido em Viena que obtivera o Nobel, propôs que essa homenagem fosse um simpósio intitulado “a resposta da Áustria ao nacional-socialismo: implicações no ensino das ciências e das humanidades”, que fizesse luz sobre essa época de trevas do pais, do horror que a criança de 9 anos viu desabar sobre a sua cabeça. Mesmo para um Nobel, é preciso coragem!
2. A primeira distinção importante testada experimentalmente no bicharoco foi entre memória de curto prazo e de longo prazo, a segunda correspondendo a uma aprendizagem que permanece: esta correlação entre aprendizagem e memória foi o que motivou o autor inicialmente e atravessa todo o livro de maneira iluminadora, é ao que se aprende duradouramente que chamamos memória. Foi assim que ele procedeu em torno da aquisição dum reflexo condicionado, à maneira de Pavlov, por um molusco marítimo, a aplísia (lesma do mar, no Brasil): um dado ‘acontecimento externo’ – um toque forte na sua cauda ou apenas um som previamente condicionado que o anuncia – sempre que se repita desencadeia uma retracção da brânquia da lesma e eventualmente a emissão de tinta. A meu ver a grande novidade do seu livro: o mecanismo desta aprendizagem que perdura longamente implica a síntese duma proteína comandada por genes, cuja expressão é previamente desencadeada por uma molécula que parte da sinapse que foi afectada por um ‘acontecimento externo’ (um toque forte na cauda da lesma), a proteína sintetizada tendo como consequência dar origem a uma nova sinapse (ou mais) na mesma ligação entre dois neurónios. Ora, isto parece-me corresponder à formação dum grafo (Changeux)[3] e significa uma solução extremamente elegante da velha questão entre o inato e o adquirido: os genes dos neurónios acordam-se com a aprendizagem do que vem de fora, sem que os genes ‘saibam’ do que se trata, sem saberem aquilo que é ‘aprendido’ (pode ser uma língua qualquer do planeta!), já que eles não fazem mais aqui do que o que fazem em qualquer outra célula do organismo, sintetizar proteínas através um ARNm; sucede aliás que algumas das moléculas que jogam aqui têm, diz Kandel, um papel equivalente em células não neuronais[4]. O que confirma que, confinados ao núcleo da célula, retirados, os genes são cegos em relação ao mundo exterior da cena ecológica ou do mundo, a sua acção, salvos casos especiais, limita-se à própria célula, o que significa que não tem sentido pretender que eles ‘determinam’ a aprendizagem.
3. Sendo assim, a criação de novas sinapses entre neurónios com intervenção genética supõe a existência já de circuitos neuronais com sinapses, visto que a experiência da aprendizagem, segundo Kandel, acrescenta novas sinapses às pré-existentes, parecendo pressupor a intervenção de genes na efectuação das antigas, sem dúvida que a partir do embrião e dos seus primeiros neurónios e eventualmente dizendo respeito ao mínimo de rede neuronal necessária a qualquer cria animal largada na cena da vida. Isto é, parece altamente provável que uma rede neuronal inata no neo-cortex, prévia a qualquer experiência de aprendizagem, por difícil que seja de o comprovar experimentalmente: ela deve corresponder ao mapa das regiões de Brodmann[5], correlacionadas com as diversas funções corticais (somatosensorial, motor, visual, auditivo, Broca e Wernicke, etc) que articulam nomeadamente as áreas de recepção perceptiva e as vias posteriores até às regiões comuns (onde a linguagem se insere no hemisfério esquerdo) com os nervos comandando a actividade muscular, permitindo que a aprendizagem crie eixos ligando visão e mãos, audição e fonação, e por aí fora. Pode-se imaginar a ‘economia’ da evolução usando os mesmos mecanismos de criar sinapses desde os primeiros neurónios (o autor não se interroga sobre a ‘evolução’ anterior da sua cobaia). Ora, Kandel pensa que o que estudou na aplísia foi apenas “memória implícita”, já que se tratava do tipo de reflexos estudados por Pavlov e pelos behavioristas que o seguiram, pensa que nós também temos essa memória de rotina, a andar a pé ou de bicicleta ou a tocar um instrumento musical, memória de “habituações” de que não temos consciência. Curiosamente, esta sua concepção parece ignorar o que ele próprio aprendeu com a memória de longo prazo da lesma do mar, a aprendizagem desta: para se adquirir essas rotinas, que começam por não existir é necessário aprendê-las, a guiar bicicleta ou automóvel, a tocar piano ou treinar futebol, por tentativas conscientes antes de se tornarem rotina. Como se pode deduzir das experiências de Benjamin Libet, citadas por J. Eccles no seu livro (indecentemente chamado) The Self and its brain, nós perdemos a memória da roupa que temos vestida ou dos sapatos calçados, ainda quando apertando ao princípio, como esquecemos uma dor de dentes quando nos acontece algo de importante, feliz ou trágico (Belo, 2007, 3. 26). Isto é, a diferença entre memória implícita e explícita é adquirida, é esta que, por mecanismos que fazem intervir a atenção, dá origem àquela[6]. Ora, na memória explícita dos ratos de laboratório, Kandel faz intervir a ‘atenção’ no mecanismo que exprime o gene que vai comandar a nova sinapse (p. 319). Esta observação parece-me implicar algo que A. Damásio ilustra em O Livro da Consciência, a saber que os neurónios são saber para o animal ou para o humano, o saber de si a que só ele tem acesso, a sua ‘mente’: esta memória implícita seria a habituação dos neurónios mais antigos ao saber que eles oferecem, desde que nada os estimule de novo, o que aliás parece fornecer plausibilidade neurológica à psicanálise, que tanto interessou Kandel. Com efeito, pode-se propor como hipótese de trabalho que o desdobramento do neocortex nas aves e mamíferos como matéria neuronal da aprendizagem tenha como efeito que, à medida que esta se desenvolve, as primeiríssimas experiências do feto e do bebé sejam recobertas pelos comportamentos usuais de autonomia, andar, mexer e falar nomeadamente; então entende-se facilmente que, quando se já sabe dizer ‘eu’ e formular frases adequadas, se não consiga já ter memória de quando ainda se não falava, quando o que se sentia e fazia não correspondia a comportamentos, sem outros neurónios motores do que os do choro da fome e do contentamento desta saciada. Como atrás se aventou, esta passagem do 'ser no seio materno 'ao 'ser no mundo da unidade social' corresponderá à implicitação da memória que houve até então, ao que Freud chamou inconsciente. Ficará por saber como é que este processo se torna ‘recalcamento’, dinamização pulsional e deslocamento, sublimação, para os novos comportamentos autónomos e respectivos prazeres de quem cresce e aparece.
4. É certo que Kandel não escapa ao empirismo ontoteológico do paradigma actual da biologia e neurologia, já que este faz parte da própria estrutura do laboratório científico: com efeito, comandado embora por uma “hipótese teórica”, o gesto que retira tal fenómeno de vivos da sua cena ecológica e lhe descobre uma experimentação adequada a encontrarem-se relações de tipo causa / efeito em cada fragmento experimental dá facilmente o ar de ser ‘empírico’, de não merecer consideração ‘teórica’ nele mesmo. Ora, é justamente neste gesto de retirar o fenómeno a experimentar (tais neurónios e suas sinapses ou tais moléculas) do seu contexto vital (a aplísia no mar) que consiste o reducionismo de que Kandel se reclama com alguma frequência, que ele pensa em termos de redução de concepções anímicas ou espirituais. Com efeito, o laboratório também reduz as concepções filosóficas de alma, espírito ou mesmo do conjunto de actividades ou comportamentos humanos, os quais são excluídos da experimentação laboratorial[7]. Apenas um dado fenómeno (o toque na cauda neste exemplo) é tido em conta como condição da compreensão das reacções bioquímicas geradas por ele, que levam à retracção da brânquia e emissão de tinta no caso da memória longa: qualquer ciência procede assim, esta redução equivale no laboratório à definição em filosofia, que também arranca o que é definido ao seu contexto na chamada realidade. É aliás esta redução que permite transpor para os humanos análises de mecanismos bioquímicos com invertebrados – como a lesma do mar ou a drosofila (mosca da fruta) ou até com bactérias sem núcleo.
5. Mas é quando no final da experimentação se faz o gesto simétrico do inicial, o de integrar o novo conhecimento conseguido na teoria (neuro)biológica do paradigma, que deveria aliás integrá-lo no contexto ecológico donde o fenómeno foi retirado para experimentação, é então que a difícil questão epistemológica se põe, o que será muito mais óbvio aliás quando, a certa altura da sua carreira, Kandel começa a fazer experimentações com ratinhos e a pôr directamente as questões sobre a memória dos humanos. Observe-se em abono da verdade que ele próprio assinala no seu último capítulo (p. 424) que apenas fez neurociência celular e molecular, que haverá um dia que ligar à “neurociência cognitiva”, que levanta problemas muito mais complicados. Mas esta, a meu ver, não dá importância suficiente à evolução, que implica que o cérebro dos humanos, muito próximo do dos primatas, foi feito para caçar e não ser caçado, não para pensar (para isso inventou-se depois a linguagem) nem para calcular (inventaram-se os números). Os limites ontoteológicos da neurologia manifestam-se melhor quando se trata de ratinhos, do seu cérebro muito mais complexo, devendo-se imaginar experiências sobre eles que impliquem manifestações neuronais analisáveis de forma crítica. Agora são várias zonas do cérebro que entram em acção, podendo-se, é certo, testar em casos pontuais o funcionamento bioquímico equivalente ao da lesma do mar, mas acrescentando-se a dificuldade de ‘reduzir’ o comportamento testado a ‘um só’ comportamento, isolado de outros do ser no mundo heideggeriano (que eu estendo aos ratinhos também), com o seu duplo cérebro – o paleo-cortex dos peixes, que tem relação mais directa com a regulação da homeostasia do sangue, e o neo-cortex desenvolvido em aves, mamíferos e certos répteis – mais adequado justamente a aprendizagens de estratégias mais complexas. Durante todo o tempo em que se tratava de contar e teorizar as descobertas com a lesma do mar, a minha leitura seguiu sem obstáculos significativos, mas a terminologia kandeliana torna-se claramente inadequada (fenomenologicamente) quando se passa para a complexidade do cérebro dos ratinhos e dos humanos, quando a questão da aprendizagem ganha relevo nas experimentações com os ditos ratinhos que têm que reagir descobrindo saídas para situações inéditas em labirintos, mais complicadas do que um choque mais forte na cauda. É quando as noções rotineiras de ‘informação’ e de ‘representação’, a substituírem a de ‘estímulo’, a memória como ‘stock’ de informações, etc., se revelam desastrosas para compreender a complexidade do que está em jogo. A questão é que, sem se dar por isso, decide-se pela ‘interioridade’ (com representações) do organismo (e sua mente) face à ‘exterioridade’ da cena (donde virão informações) na teorização sobre a experimentação laboratorial. Ora, o que há que ‘aprender’ é algo que se vai impor violentamente ao rato, não como uma ‘informação’ dada, mas como um choque sofrido e uma questão que o constrangem, o obrigam a buscas e decisões: uma actividade da cena é recebida (passividade) pelo animal e vira nele actividade de ‘resposta’ à actividade inicial da experimentação. Não é o ‘cérebro’, ou o ratinho, que se ‘representa’ algo, é a brutalidade da experimentação que se lhe impõe e obriga a buscar soluções, e é isso que se inscreve cerebralmente – grava-se um grafo, por via de novas sinapses –, o que tem como incidência o que se poderia chamar um passivar-que-torna-activo (aliás já jogando nas experimentações com a lesma do mar): a memória vem do mundo. O experimentador como que esquece a sua intervenção ‘brutal’ e considera apenas o ratinho (ou a lesma) que, no laboratório, está ‘fora’ do seu mundo ecológico a que a sua anatomia está adequada: como se o ratinho fosse apenas sujeito do verbo ‘aprender’ e este não implicasse ‘prender’ o ratinho (complemento directo). Ou seja, a cena ecológica não é um ‘ambiente exterior’ que se acciona experimentalmente: ela faz activamente no ratinho, ‘prende-o’ forçando-o a aprender, o que consiste  em defender-se dessa actividade. Este é um primeiro ponto. Em seguida, o que assim se grava como passivar-que-torna-activo (grafo) não se faz apenas numa sinapse mas em várias, num processo quer espacial (muitos neurónios) quer em sequência temporal (como várias frases numa conversa), e joga-se em relação a memórias e aprendizagens anteriores, e é o segundo ponto.
6. A primeira questão pode ser aclarada a partir da referida proposta de Damásio sobre a ‘mente’ como o saber de si da rede neuronal, que permite a qualquer animal ser afectado e reagir em consequência, passivar-que-torna-activo. O que é brilhante nessa proposta, é ser a chave extremamente simples, até aqui ignorada por razões filosóficas, da questão neurológica da consciência, de que um capítulo final de Kandel dá conta, citando as tentativas (em vão, acho eu) de Crick e de Edelman, a crença de que haja ainda algum mecanismo do cérebro para deslindar neurologicamente. Ora, em vez disso, creio que o neurologista português responde com bom senso a uma questão que se diria meta-neurológica: para que serve a rede neuronal, ou melhor, como pode ela cumprir as inúmeras funções que essa rede tem em qualquer animal, que não as plantas? Parece óbvio que, estas não se movendo, lhes bastam as trocas com o sol na fotossíntese e com o solo e seus minerais nas raízes; nos animais, a deslocação sendo condição de alimentação, é toda a anatomia da mobilidade – órgãos perceptivos, rede neuronal e músculos do esqueleto e focinho – que é necessária para ela, como ser no mundo que as plantas não são, desta maneira, pelo menos. Ora, toda a argumentação neurologista (incluindo aliás o próprio Damásio) pressupõe a concepção autopoiética de Varela e Maturano, a primazia do plano genético sobre o conjunto da anatomia, em última análise o privilégio da ‘interioridade biológica’ sobre a cena ecológica em que se busca caçar e evitar ser caçado, cena que é dita sintomaticamente com o termo biologicamente neutro de “ambiente”. No contexto deste paradigma (ontoteológico) tradicional, as experimentações bioquímicas descobrem mecanismos em torno dos neurónios e suas sinapses sem procurarem saber da sua integração na anatomia do sistema da mobilidade que tem que caçar e evitar ser caçado. A proposta de Damásio é genial e de bom senso: os neurónios, em seus fenómenos bioquímicos incríveis, servem para o animal saber o que lhe acontece, quer em exigências de alimentação, de fome ou sede, quer em consideração do mundo em que é;  ora, a esse saber só ele tem acesso, Damásio insiste nisso várias vezes e é um ponto decisivo da definição de rede sináptica de neurónios que cobre todo o corpo e recebe percepções do que o envolve: a “mente”, por assim dizer a ‘internalidade neuronal’ da rede (a lesma do mar também tem mente, como o mosquito que sabe fugir antes que uma palmada o esmague). Afectados, os neurónios agem: o seu ‘saber’ é um passivar-que-torna-activo, ‘con-sciência’, saber (-scire) de si com outrem (con-), capaz de agir em consequência, porque aprendeu de outrem, no mundo[8]. Como é que Kandel permite entender esta teoria freudo-derridiana? O que é que ‘resiste’ à aprendizagem de longo prazo? A produção de novas sinapses, abrindo novos grafos que novos fluxos nervosos podem percorrer. Freud exigia da memória retenção e virgindade face a uma nova investida vinda de fora: a retenção é efectuada pelas novas sinapses fazendo grafo, é uma passividade (o choque na cauda recebido) que se tornou ... o quê? Não só ‘actividade’ sem mais, mas capacidade durável de receber (passividade: virgindade, nudez) novas investidas e de lhes reactivar respostas novas. Um grafo, uma série sináptica, seria um ‘gravado capaz de reagir’, o que chamei passivar-que-torna-activo: o que com reacção é recebido dos ouvidos, por exemplo humano da língua, inscreve-se como grafos (as regras da língua, palavras e suas conexões sintácticas) que desembocarão em fonação muscular como voz activa que responde outra coisa do que aquilo que ouviu. O que escapa aos neurologistas, tanto a Damásio quanto a Kandel, é esta iniciativa da cena, dos outros animais (e plantas), que faz aprender e, de tão forte, memorizar. O que Kandel conta das suas experimentações mostra isto constantemente, é o paradigma filosófico (ontoteológico) que o não deixa entender o que ele faz excelentemente. Isto é, são os neurónios em suas sinapses que são gravados, afectados de fora assim, são eles, enquanto ‘mente’, que respondem, sem que haja nenhuma diferença entre neurónio e mente, excepto a do acesso metodológico (celebre-se o triunfo do torturado sobre o carrasco!). Na filosofia tradicional das faculdades da alma andou-se lá perto, distinguiu-se a memória da imaginação, aquela receptiva, esta activa. Kandel permite dar-lhes unidade: memória é tanto imaginação como imaginação é memória, uma mesma maneira que é tão diferente caso por caso. Enigma dos vivos complexos. E como a imaginação implica a consciência também, esta rede oscilante de neurónios é experimentada ‘internalmente’ por cada um como ‘eu’, em suas oscilações entre atenção e relaxação, ‘rêverie’ e sono, sono e sonho, onde alguns dos que nos ‘ensinaram’ mostram-se mais ou menos disfarçados como estando ‘retirados’ na nossa maior intimidade, aonde a nossa memória acordada não chega. O que parce mais difícil de aceitar pela tradição cartesiana do “eu sou” porque “penso”: o ‘eu – mental-neuronal que se diz na língua da tribo – é uma inscrição tribal nos neurónios, grafos que só a mente reconhece.
7. Quanto à segunda questão: esta “mente” não é pois uma soma de neurónios, já que cada um deles tem um bom milhar de sinapses com outros, é já ele próprio uma rede numa rede imensa que se foi fazendo por aprendizagens sucessivas que abriram caminhos na selva de sinapses inata, trilharam grafos, mas – na leitura que Derrida fez do Esboço duma psicologia clínica de Freud – esses trilhados abertos só o são, força e sentido simultaneamente, enquanto diferença para os outros já trilhados, diferença quer espacial quer temporal, sequencial[9]. Falar, por exemplo, implica indissociavelmente a área de Wernicke, que escolhe nomes e verbos, e a de Broca, que os liga sintáctica e morfologicamente. Ver implica tanto a área 17 (de Brodmann) ligada directamente à retina como as áreas vizinhas (18 a 21) que a interpretam, reconhecendo o que se viu: cores, formas[10], porventura perspectiva. Por outro lado, basta pensar no fenómeno de leitura dum livro policial para se perceber que, a memória do já lido sendo necessária para se entender o que se está a ler e que só se prossegue a leitura em vista do ‘suspense’ do que falta ler, o jogo da rede neuronal desta leitura tanto é essencialmente espacial como temporal: só entendo o que leio com retenção do que já passou e abertura ao porvir. Em conclusão deste ponto: o ‘eu’ não tem substância, não é isto ou aquilo, antes uma rede espácio-temporal de sinapses que, com o que do mundo aprendeu, se dá a si mesma como a ‘mente’ dessa rede e que oscila entre atenção e sono.
8. Encontra-se aqui uma maneira de compreender o motivo de “memória implícita” de Kandel como o de “inconsciente” de Freud: a rede neuronal vivendo constantemente no turbilhão do ser no mundo, tem que fazer economia de grafos acesos, ou capazes de se acenderem em tal ou tal situação, e de forma geral retendo-os em rotina nuns casos (habituação que cala a memória em sua latência) ou recalcando as suas possíveis reacções dolorosas noutros. O desejo filosófico ou neurológico duma ‘unidade’ de consciência, cuja crítica, se bem me lembro, já vem de Hume, tem que se compor com uma rede que não está – não pode estar tão extensa é – nunca totalmente exposta a si: a memória é por definição latente, capaz de dar sentido a algo que sucede, mas sem estar habitualmente presente, ninguém podendo ter presente a si em simultâneo tudo aquilo que sabe, seria esmagado. A unidade do nosso saber de nós em cada momento é portanto muito limitada, vai àquilo a que damos atenção, à corrente de pensamentos e imaginações que nos atravessam incessantemente quando acordados, susceptível de mudar permanentemente sem que tal implique fragmentação de si: parece provável que só haja ‘unidade’ de consciência em rede, sem nenhuma zona cerebral especialmente ‘unitária’, como quereria Crick do claustrum (p. 386). É chocante a ignorância da linguagem na literatura neurologista no que à consciência diz respeito, consequência extrema da redução experimental quando se trata de colocar hipóteses teóricas, como se, à boa maneira da tradição europeia, a variedade de línguas fosse razão para as considerar acidentais, face à razão ou ao pensamento (índice de ontoteologia). Aliás , como atrás se evocou, é mais do que provável que a aprendizagem da língua tenha uma incidência muito forte no esquecimento quase total da memória de antes dos 3 ou 4 anos, Lacan tendo proposto, a partir de certos discursos psicóticos e do seu “estádio do espelho”, que antes dessa aquisição da linguagem o corpo era ‘despedaçado’ (morcelé, em pedaços), não unificado, a unificação subsequente sendo nele do nível do que chamou ‘imaginário’.
9. Menos chocante, porque também assim psicólogos, sociólogos, filósofos e outros “cognitivistas da representação”, mas igualmente estéril na busca de resposta a esta questão da consciência humana e sua unidade, é o facto de o que se chama “ambiente” exterior aos humanos ser uma colecção caótica de coisas sem coerência ecológica, de que se encontram listas empíricas, teoricamente desorganizadas, em que se podem encontrar factos, acontecimentos, objectos, coisas, pessoas, situações, acções, relações, processos, estruturas, indivíduos colectivos, instituições, ou até estados mentais. Ora, do ponto de vista de Le Jeu des Sciences, o que permite entender a lógica dos comportamentos de cada humano é de nível antropológico, do paradigma dos usos da sua unidade de habitação: são esses usos que se aprendem e se inscrevem como grafos cerebrais como condição de, fazendo-os, se ser habitante da unidade social em que se nasce e cresce, de se ser no mundo da sua tribo. Esse paradigma, com variantes segundo os dias e as estações do ano, assegura antes de mais a alimentação e a segurança de cada um, todos contribuindo consoante idades e capacidades para esse efeito. É certo que esses paradigmas variaram ao longo das histórias sociais e hoje conhecem especializações profissionais muito diferenciadas, não impede que eles podem ser estudados em suas lógicas antropológicas e linguísticas, e porventura oferecerem exemplos de ‘aprendizagens’ susceptíveis de interessar os neurologistas. Cada unidade social, família, turma de liceu, oficina de fábrica ou escritório, tem a sua ‘unidade’ que marca cada um dos seus elementos em seus fazeres, mas cada um aprendeu de forma singular e revela maior ou menor habilidade na sua execução, o que significa que, enquanto usos sociais, se repetem nos vários membros, mas singularmente em cada um, segundo o que se poderá chamar o seu estilo – num leque largo que vai dos gestos concretos às relações éticas –, a sua idiosincrasia, a maneira que lhe é própria (idion) de pertencer à mistura (krasia) com outros (sun), a sua maneira de responder pelo seu nome no sistema de que é parte. Ora bem, este estilo (ou talento) seria uma maneira de dizer como são ligados os grafos cerebrais de cada um, poderia dizer a ‘unidade’ da consciência que se quer e que nunca se encontra senão como fragmentos temporais variáveis, segundo os usos concretos que se estão fazendo, os seus lugares, tempos e idades, a complexidade de acontecimentos pondo em relação várias pessoas, e por aí fora. Cada um de nós sabe algo do seu estilo, pelo qual nos identificam também os que connosco convivem.
10. ‘Como são ligados os grafos cerebrais’: esta ligação é o que permite a cada humano circular na sua cena de habitação, como os outros animais na sua cena ecológica. Laço que explica que a nossa anatomia seja marcada pelos usos da nossa tribo (nossa passividade estrutural), que o nosso cérebro seja um órgão simultaneamente biológico e social (nossa actividade singular). Sem corte disciplinar entre sociedade e biologia! Este laço, memória de usos aprendidos e acontecimentos surgidos, é assim uma rede de regras de circulação social, esta implicando constantemente escolhas segundo situações aleatórias, mesmo muitas vezes em usos simples, quando falta material para eles ou a máquina se estraga e pede reparação. Trata-se dum laço regulador de circulação, que precisa dum motor retirado que lhe forneça energia, que faça duplo laço com este estilo singular de ser no mundo.





[1] Nicholas Carr, Internet rend-il bête? Réapprendre à lire et à penser dans un monde fragmenté, Robert Laffon, 2011. O título inglês é The shallows [os superficiais, banais] W.W. Norton & Company, Inc.
[2] In Search of Memory, 2006, Norton (em francês acrescentaram Une nouvelle théorie de l'esprit).
[3] L’homme neuronal, Fayard, 1983. Randel conheceu-o e elogia-o, mas não refere a sua teoria dos grafos.
[4] Intestino, rim e fígado, no caso da molécula AMP cíclico (p. 242). É um dos pontos fortes da teoria da evolução: um mecanismo ‘inventado’ uma vez é aproveitado com frequência para solução de novas questões.
[6] Damásio tem em O erro de Descartes o gráfico dum anel de simulação que implica esta aquisição (p. 202 da edição francesa).
[7] Eccles no livro citado, como o seu título ilustra, mostra claramente como concepções metafísicas, a partir de certo passo, intervêm massivamente na ‘ciência’ (que também mereceu um Nobel, o que mostra que apesar da ideologia houve descobertas científicas aprovadas pelos seus pares).
[8] Segundo o velho Gaffiot, o sentido de ‘conscientia’ em latim é um saber com outros, cúmplices (sem pejorativo). O ‘ap-prender’ será porventura um ‘prender’ que vem ‘de’ (ab-) outrem, criação dum laço recebido. 
[9] É pelo contrário o predomínio (implícito) do neurónio sobre a rede de diferenças que, substancialismo tradicional, implica o determinismo em biologia, como Randel parece ter compreendido: “a memória não repousa nas propriedades das células nervosas enquanto tais mas na natureza das conexões entre neurónios e a sua maneira de tratar a informação sensorial recebida” (p. 164). As conexões duma rede são – foi a lição do estruturalismo –, prévias aos elementos ou termos (substanciais) que elas conectam: Randel nesta citação revela-se próximo deste motivo da diferença.
[10] Changeux, ed. fr., pp. 172-3.

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