1. “A memória vem do mundo” é o título do capítulo
sobre a memória entre Changeux e Damásio em Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida (2º volume), o que sugere imediatamente a
concepção heideggeriana do humano como ser no mundo, o que chocava inevitavelmente com o empirismo
(filosófico) da neurologia reinante e portanto dos dois autores que me
permitiram articular o que escrevi: ficava suspenso sobre a grande dificuldade
da abordagem neurológica da memória. Apenas o motivo de grafo de Changeux podia ser encarado como lugar dela,
mas parecia-me que se tratava dum motivo ‘teórico’ que os instrumentos
laboratoriais não poderiam discernir, já que eles detectavam o ‘fluxo nervoso’
que passava por esses grafos, mas sem poderem, julgava, discernir a diferença
entre o fluxo nervoso actual e o grafo que ele percorre. Eis senão quando a
leitura dum texto sobre a intoxicação da Internet que torna incapaz de ler um
livro de seguida[1] assinala o livro do prémio Nobel de medicina de
2000 Eric Kandel [2] como trazendo
inovação neurológica capital sobre a questão, relacionando estreitamnte memória
e aprendizagem na mesma questão laboratorial. O texto é deslumbrante, quer no
que inova em relação à memória e à aprendizagem, quer na maneira como intercala
a história das descobertas da neurologia desde Cajal e Freud na sua própria
história de investigador e das suas equipas com quem trabalhou e que evoca
calorosamente, desde que, miúdo de 9 anos duma família de judeus vienenses, foi
obrigado a emigrar para os Estados Unidos, tendo começado por ser médico e
querer ser psicanalista, até à descrição das cerimónias do P. Nobel. Tendo
compreendido que a Áustria, ao contrario da Alemanha, não fizera um “exame de
consciência” sobre o seu passado nazi desde a anexão por Hitler, quando lhe
propuseram homenageá-lo como nascido em Viena que obtivera o Nobel, propôs que
essa homenagem fosse um simpósio intitulado “a resposta da Áustria ao
nacional-socialismo: implicações no ensino das ciências e das humanidades”, que
fizesse luz sobre essa época de trevas do pais, do horror que a criança de 9
anos viu desabar sobre a sua cabeça. Mesmo para um Nobel, é preciso coragem!
2. A primeira distinção importante testada
experimentalmente no bicharoco foi entre memória de curto prazo e de longo
prazo, a segunda correspondendo a uma aprendizagem que permanece: esta
correlação entre aprendizagem e memória foi o que motivou o autor inicialmente
e atravessa todo o livro de maneira iluminadora, é ao que se aprende duradouramente
que chamamos memória. Foi assim
que ele procedeu em torno da aquisição dum reflexo condicionado, à maneira de
Pavlov, por um molusco marítimo, a aplísia (lesma do mar, no Brasil): um dado
‘acontecimento externo’ – um toque forte na sua cauda ou apenas um som
previamente condicionado que o anuncia – sempre que se repita desencadeia uma
retracção da brânquia da lesma e eventualmente a emissão de tinta. A meu ver a
grande novidade do seu livro: o mecanismo desta aprendizagem que perdura
longamente implica a síntese duma proteína comandada por genes, cuja expressão
é previamente desencadeada por uma molécula que parte da sinapse que foi
afectada por um ‘acontecimento externo’ (um toque forte na cauda da lesma), a
proteína sintetizada tendo como consequência dar origem a uma nova sinapse (ou
mais) na mesma ligação entre dois neurónios. Ora, isto parece-me corresponder à formação dum grafo (Changeux)[3]
e significa uma solução extremamente elegante da velha questão entre o inato e
o adquirido: os genes dos neurónios acordam-se com a aprendizagem do que vem de
fora, sem que os genes ‘saibam’ do que se trata, sem saberem aquilo que é ‘aprendido’ (pode ser uma língua qualquer
do planeta!), já que eles não fazem mais aqui do que o que fazem em qualquer
outra célula do organismo, sintetizar proteínas através um ARNm; sucede aliás
que algumas das moléculas que jogam aqui têm, diz Kandel, um papel equivalente
em células não neuronais[4].
O que confirma que, confinados ao núcleo da célula, retirados, os genes são cegos em relação ao mundo exterior
da cena ecológica ou do mundo, a sua acção, salvos casos especiais, limita-se à
própria célula, o que significa que não tem sentido pretender que eles
‘determinam’ a aprendizagem.
3. Sendo assim, a criação de novas sinapses entre
neurónios com intervenção genética supõe a existência já de circuitos neuronais
com sinapses, visto que a experiência da aprendizagem, segundo Kandel,
acrescenta novas sinapses às pré-existentes, parecendo pressupor a intervenção
de genes na efectuação das antigas, sem dúvida que a partir do embrião e dos
seus primeiros neurónios e eventualmente dizendo respeito ao mínimo de rede
neuronal necessária a qualquer cria animal largada na cena da vida. Isto é,
parece altamente provável que uma rede neuronal inata no neo-cortex, prévia a
qualquer experiência de aprendizagem, por difícil que seja de o comprovar
experimentalmente: ela deve corresponder ao mapa das regiões de Brodmann[5],
correlacionadas com as diversas funções corticais (somatosensorial, motor, visual,
auditivo, Broca e Wernicke, etc) que articulam nomeadamente as áreas de
recepção perceptiva e as vias posteriores até às regiões comuns (onde a
linguagem se insere no hemisfério esquerdo) com os nervos comandando a
actividade muscular, permitindo que a aprendizagem crie eixos ligando visão e
mãos, audição e fonação, e por aí fora. Pode-se imaginar a ‘economia’ da evolução
usando os mesmos mecanismos de criar sinapses desde os primeiros neurónios (o
autor não se interroga sobre a ‘evolução’ anterior da sua cobaia). Ora, Kandel
pensa que o que estudou na aplísia foi apenas “memória implícita”, já que se
tratava do tipo de reflexos estudados por Pavlov e pelos behavioristas que o
seguiram, pensa que nós também temos essa memória de rotina, a andar a pé ou de
bicicleta ou a tocar um instrumento musical, memória de “habituações” de que
não temos consciência. Curiosamente, esta sua concepção parece ignorar o que
ele próprio aprendeu com a memória de longo prazo da lesma do mar, a
aprendizagem desta: para se adquirir essas rotinas, que começam por não existir
é necessário aprendê-las, a guiar bicicleta ou automóvel, a tocar piano ou treinar
futebol, por tentativas conscientes antes de se tornarem rotina. Como se pode
deduzir das experiências de Benjamin Libet, citadas por J. Eccles no seu livro
(indecentemente chamado) The Self and its brain, nós perdemos a memória da roupa que temos
vestida ou dos sapatos calçados, ainda quando apertando ao princípio, como
esquecemos uma dor de dentes quando nos acontece algo de importante, feliz ou
trágico (Belo, 2007, 3. 26). Isto é, a diferença entre memória implícita e
explícita é adquirida, é esta que, por mecanismos que fazem intervir a atenção,
dá origem àquela[6]. Ora, na
memória explícita dos ratos de laboratório, Kandel faz intervir a ‘atenção’ no
mecanismo que exprime o gene que vai comandar a nova sinapse (p. 319). Esta
observação parece-me implicar algo que A. Damásio ilustra em O Livro da Consciência, a saber que os neurónios são saber para o animal ou para o humano, o saber de si a
que só ele tem acesso, a sua ‘mente’: esta memória implícita seria a habituação
dos neurónios mais antigos ao saber que eles oferecem, desde que nada os
estimule de novo, o que aliás parece fornecer plausibilidade neurológica à
psicanálise, que tanto interessou Kandel.
Com efeito, pode-se propor
como hipótese de trabalho que o desdobramento do neocortex nas aves e mamíferos
como matéria neuronal da aprendizagem tenha como efeito que, à medida que esta se
desenvolve, as primeiríssimas experiências do feto e do bebé sejam recobertas
pelos comportamentos usuais de autonomia, andar, mexer e falar nomeadamente;
então entende-se facilmente que, quando se já sabe dizer ‘eu’ e formular frases
adequadas, se não consiga já ter memória de quando ainda se não falava, quando
o que se sentia e fazia não correspondia a comportamentos, sem outros neurónios
motores do que os do choro da fome e do contentamento desta saciada. Como atrás
se aventou, esta passagem do 'ser no seio materno 'ao 'ser no mundo da unidade
social' corresponderá à implicitação da memória que houve até então, ao que
Freud chamou inconsciente. Ficará por saber como é que este processo se torna ‘recalcamento’,
dinamização pulsional e deslocamento, sublimação, para os novos comportamentos autónomos e
respectivos prazeres de quem cresce e aparece.
4. É certo que Kandel não escapa ao empirismo
ontoteológico do paradigma actual da biologia e neurologia, já que este faz
parte da própria estrutura do laboratório científico: com efeito, comandado
embora por uma “hipótese teórica”, o gesto que retira tal fenómeno de vivos da
sua cena ecológica e lhe descobre uma experimentação adequada a encontrarem-se
relações de tipo causa / efeito em cada fragmento experimental dá facilmente o
ar de ser ‘empírico’, de não merecer consideração ‘teórica’ nele mesmo. Ora, é
justamente neste gesto de retirar o fenómeno a experimentar (tais neurónios e
suas sinapses ou tais moléculas) do seu contexto vital (a aplísia no mar) que
consiste o reducionismo de que
Kandel se reclama com alguma frequência, que ele pensa em termos de redução de
concepções anímicas ou espirituais. Com efeito, o laboratório também reduz as concepções filosóficas de alma, espírito ou
mesmo do conjunto de actividades ou comportamentos humanos, os quais são
excluídos da experimentação laboratorial[7].
Apenas um dado fenómeno (o toque na cauda neste exemplo) é tido em conta como
condição da compreensão das reacções bioquímicas geradas por ele, que levam à
retracção da brânquia e emissão de tinta no caso da memória longa: qualquer ciência
procede assim, esta redução equivale no laboratório à definição em filosofia,
que também arranca o que é definido ao seu contexto na chamada realidade. É
aliás esta redução que permite transpor para os humanos análises de mecanismos
bioquímicos com invertebrados – como a lesma do mar ou a drosofila (mosca da
fruta) ou até com bactérias sem núcleo.
5. Mas é quando no final da experimentação se faz
o gesto simétrico do inicial, o de integrar o novo conhecimento conseguido na
teoria (neuro)biológica do paradigma, que deveria aliás integrá-lo no contexto
ecológico donde o fenómeno foi retirado para experimentação, é então que a
difícil questão epistemológica se põe, o que será muito mais óbvio aliás
quando, a certa altura da sua carreira, Kandel começa a fazer experimentações
com ratinhos e a pôr directamente as questões sobre a memória dos humanos.
Observe-se em abono da verdade que ele próprio assinala no seu último capítulo
(p. 424) que apenas fez neurociência celular e molecular, que haverá um dia que
ligar à “neurociência cognitiva”, que levanta problemas muito mais complicados.
Mas esta, a meu ver, não dá importância suficiente à evolução, que implica que
o cérebro dos humanos, muito próximo do dos primatas, foi feito para caçar e
não ser caçado, não para pensar (para isso inventou-se depois a linguagem) nem
para calcular (inventaram-se os números). Os limites ontoteológicos da
neurologia manifestam-se melhor quando se trata de ratinhos, do seu cérebro
muito mais complexo, devendo-se imaginar experiências sobre eles que impliquem
manifestações neuronais analisáveis de forma crítica. Agora são várias zonas do
cérebro que entram em acção, podendo-se, é certo, testar em casos pontuais o
funcionamento bioquímico equivalente ao da lesma do mar, mas acrescentando-se a
dificuldade de ‘reduzir’ o comportamento testado a ‘um só’ comportamento, isolado
de outros do ser no mundo
heideggeriano (que eu estendo aos ratinhos também), com o seu duplo cérebro – o
paleo-cortex dos peixes, que tem relação mais directa com a regulação da
homeostasia do sangue, e o neo-cortex desenvolvido em aves, mamíferos e certos
répteis – mais adequado justamente a aprendizagens de estratégias mais
complexas. Durante todo o tempo em que se tratava de contar e teorizar as
descobertas com a lesma do mar, a minha leitura seguiu sem obstáculos
significativos, mas a terminologia kandeliana torna-se claramente inadequada
(fenomenologicamente) quando se passa para a complexidade do cérebro dos
ratinhos e dos humanos, quando a questão da aprendizagem ganha relevo nas
experimentações com os ditos ratinhos que têm que reagir descobrindo saídas
para situações inéditas em labirintos, mais complicadas do que um choque mais
forte na cauda. É quando as noções rotineiras de ‘informação’ e de
‘representação’, a substituírem a de ‘estímulo’, a memória como ‘stock’ de
informações, etc., se revelam desastrosas para compreender a complexidade do
que está em jogo. A questão é que, sem se dar por isso, decide-se pela
‘interioridade’ (com representações) do organismo (e sua mente) face à
‘exterioridade’ da cena (donde virão informações) na teorização sobre a
experimentação laboratorial. Ora, o que há que ‘aprender’ é algo que se vai
impor violentamente ao rato, não como uma ‘informação’ dada, mas como um choque
sofrido e uma questão que o constrangem, o obrigam a buscas e decisões: uma
actividade da cena é recebida (passividade) pelo animal e vira nele actividade
de ‘resposta’ à actividade inicial da experimentação. Não é o ‘cérebro’, ou o
ratinho, que se ‘representa’ algo, é a brutalidade da experimentação que se lhe
impõe e obriga a buscar
soluções, e é isso que se inscreve cerebralmente – grava-se um grafo, por via de novas sinapses –, o que tem como incidência o que se poderia
chamar um passivar-que-torna-activo (aliás já jogando nas experimentações com a
lesma do mar): a memória vem do mundo. O experimentador como que esquece a sua
intervenção ‘brutal’ e considera apenas o ratinho (ou a lesma) que, no laboratório,
está ‘fora’ do seu mundo ecológico a que a sua anatomia está adequada: como se
o ratinho fosse apenas sujeito do verbo ‘aprender’ e este não implicasse ‘prender’ o ratinho (complemento
directo).
Ou seja, a cena ecológica não é
um ‘ambiente exterior’ que se acciona experimentalmente: ela faz activamente no ratinho, ‘prende-o’ forçando-o a aprender, o
que consiste em defender-se dessa actividade.
Este é um primeiro
ponto. Em seguida, o que assim se grava como passivar-que-torna-activo (grafo)
não se faz apenas numa sinapse mas em várias, num processo quer espacial
(muitos neurónios) quer em sequência temporal (como várias frases numa
conversa), e joga-se em relação a memórias e aprendizagens anteriores, e é o
segundo ponto.
6. A primeira questão pode ser aclarada a partir
da referida proposta de Damásio sobre a ‘mente’ como o saber de si da rede
neuronal, que permite a qualquer animal ser afectado e reagir em consequência,
passivar-que-torna-activo. O que é brilhante nessa proposta, é ser a chave
extremamente simples, até aqui ignorada por razões filosóficas, da questão
neurológica da consciência, de que um capítulo final de Kandel dá conta,
citando as tentativas (em vão, acho eu) de Crick e de Edelman, a crença de que
haja ainda algum mecanismo do cérebro para deslindar neurologicamente. Ora, em
vez disso, creio que o neurologista português responde com bom senso a uma
questão que se diria meta-neurológica: para que serve a rede neuronal, ou
melhor, como pode ela cumprir as inúmeras funções que essa rede tem em qualquer
animal, que não as plantas? Parece óbvio que, estas não se movendo, lhes bastam
as trocas com o sol na fotossíntese e com o solo e seus minerais nas raízes;
nos animais, a deslocação sendo condição de alimentação, é toda a anatomia da
mobilidade – órgãos perceptivos, rede neuronal e músculos do esqueleto e
focinho – que é necessária para ela, como ser no mundo que as plantas não são, desta maneira, pelo
menos. Ora, toda a argumentação neurologista (incluindo aliás o próprio
Damásio) pressupõe a concepção autopoiética de Varela e Maturano, a primazia
do plano genético sobre o conjunto da anatomia, em última análise o privilégio da ‘interioridade
biológica’ sobre a cena ecológica em que se busca caçar e evitar ser caçado,
cena que é dita sintomaticamente com o termo biologicamente neutro de
“ambiente”. No contexto deste paradigma (ontoteológico) tradicional, as
experimentações bioquímicas descobrem mecanismos em torno dos neurónios e suas
sinapses sem procurarem saber da sua integração na anatomia do sistema da
mobilidade que tem que caçar e evitar ser caçado. A proposta de Damásio é
genial e de bom senso: os neurónios, em seus fenómenos bioquímicos incríveis,
servem para o animal saber o
que lhe acontece, quer em exigências de alimentação, de fome ou sede, quer em
consideração do mundo em que é;
ora, a esse saber só ele
tem acesso, Damásio insiste nisso várias
vezes e é um ponto decisivo da definição de rede sináptica de neurónios que
cobre todo o corpo e recebe percepções do que o envolve: a “mente”, por assim dizer a
‘internalidade neuronal’ da rede (a lesma do mar também tem mente, como o
mosquito que sabe fugir antes que uma palmada o esmague). Afectados, os neurónios
agem: o seu ‘saber’ é um passivar-que-torna-activo, ‘con-sciência’, saber
(-scire) de si com outrem (con-), capaz de agir em consequência, porque
aprendeu de outrem, no mundo[8].
Como é que Kandel permite entender esta teoria freudo-derridiana? O que é que
‘resiste’ à aprendizagem de longo prazo? A produção de novas sinapses, abrindo
novos grafos que novos fluxos nervosos podem percorrer. Freud exigia da memória
retenção e virgindade face a uma nova investida vinda de fora: a retenção é
efectuada pelas novas sinapses fazendo grafo, é uma passividade (o choque na cauda recebido) que se tornou ... o
quê? Não só ‘actividade’ sem mais,
mas capacidade durável de receber (passividade: virgindade, nudez) novas
investidas e de lhes reactivar
respostas novas. Um grafo, uma série sináptica, seria um ‘gravado capaz de
reagir’, o que chamei passivar-que-torna-activo: o que com reacção é recebido dos ouvidos, por exemplo humano da
língua, inscreve-se como grafos (as regras da língua, palavras e suas conexões
sintácticas) que desembocarão em fonação muscular como voz activa que responde
outra coisa do que aquilo que ouviu. O que escapa aos
neurologistas, tanto a Damásio quanto a Kandel, é esta iniciativa da cena, dos outros animais (e plantas), que faz
aprender e, de tão forte, memorizar. O que Kandel conta das suas experimentações
mostra isto constantemente, é o paradigma filosófico (ontoteológico) que o não
deixa entender o que ele faz excelentemente. Isto é, são os neurónios em suas
sinapses que são gravados, afectados de fora assim, são eles, enquanto ‘mente’, que respondem,
sem que haja nenhuma diferença entre neurónio e mente, excepto a do acesso metodológico
(celebre-se o triunfo do torturado sobre o carrasco!). Na filosofia tradicional
das faculdades da alma andou-se lá perto, distinguiu-se a memória da imaginação,
aquela receptiva, esta activa. Kandel permite dar-lhes unidade: memória é tanto
imaginação como imaginação é memória, uma mesma maneira que é tão diferente
caso por caso. Enigma dos vivos complexos. E como a imaginação implica a
consciência também, esta rede oscilante de neurónios é experimentada
‘internalmente’ por cada um como ‘eu’, em suas oscilações entre atenção e
relaxação, ‘rêverie’ e sono, sono e sonho, onde alguns dos que nos ‘ensinaram’
mostram-se mais ou menos disfarçados como estando ‘retirados’ na nossa maior
intimidade, aonde a nossa memória acordada não chega. O que parce mais difícil
de aceitar pela tradição cartesiana do “eu sou” porque “penso”: o ‘eu –
mental-neuronal que se diz na língua da tribo – é uma inscrição tribal nos
neurónios, grafos que só a mente reconhece.
7. Quanto à segunda questão: esta “mente” não é
pois uma soma de neurónios, já que cada um deles tem um bom milhar de sinapses
com outros, é já ele próprio uma rede numa rede imensa que se foi fazendo por aprendizagens sucessivas que abriram caminhos na
selva de sinapses inata, trilharam grafos, mas – na leitura que Derrida fez do Esboço
duma psicologia clínica de Freud
– esses trilhados abertos só o são, força e sentido simultaneamente, enquanto
diferença para os outros já trilhados, diferença quer espacial quer temporal,
sequencial[9].
Falar, por exemplo, implica indissociavelmente a área de Wernicke, que escolhe
nomes e verbos, e a de Broca, que os liga sintáctica e morfologicamente. Ver
implica tanto a área 17 (de Brodmann) ligada directamente à retina como as
áreas vizinhas (18 a 21) que a interpretam, reconhecendo o que se viu: cores,
formas[10],
porventura perspectiva. Por outro lado, basta pensar no fenómeno de leitura dum
livro policial para se perceber que, a memória do já lido sendo necessária para
se entender o que se está a ler e que só se prossegue a leitura em vista do
‘suspense’ do que falta ler, o jogo da rede neuronal desta leitura tanto é essencialmente
espacial como temporal: só entendo o que leio com retenção do que já passou e
abertura ao porvir. Em conclusão deste ponto: o ‘eu’ não tem substância, não é
isto ou aquilo, antes uma rede espácio-temporal de sinapses que, com o que do mundo aprendeu, se dá a si
mesma como a ‘mente’ dessa rede
e que oscila entre atenção e
sono.
8. Encontra-se aqui uma maneira de compreender o
motivo de “memória implícita” de Kandel como o de “inconsciente” de Freud: a
rede neuronal vivendo constantemente no turbilhão do ser no mundo, tem que
fazer economia de grafos acesos, ou capazes de se acenderem em tal ou tal
situação, e de forma geral retendo-os em rotina nuns casos (habituação que cala
a memória em sua latência) ou recalcando as suas possíveis reacções dolorosas
noutros. O desejo filosófico ou neurológico duma ‘unidade’ de consciência, cuja
crítica, se bem me lembro, já vem de Hume, tem que se compor com uma rede que
não está – não pode estar tão extensa é – nunca totalmente exposta a si: a
memória é por definição latente,
capaz de dar sentido a algo que sucede, mas sem estar habitualmente presente,
ninguém podendo ter presente a si em simultâneo tudo aquilo que sabe, seria
esmagado. A unidade do nosso saber de nós em cada momento é portanto muito
limitada, vai àquilo a que damos atenção, à corrente de pensamentos e
imaginações que nos atravessam incessantemente quando acordados, susceptível de
mudar permanentemente sem que tal implique fragmentação de si: parece provável
que só haja ‘unidade’ de consciência em rede, sem nenhuma zona cerebral especialmente
‘unitária’, como quereria Crick do claustrum (p. 386). É chocante a ignorância da linguagem na
literatura neurologista no que à consciência diz respeito, consequência extrema
da redução experimental quando se trata de colocar hipóteses teóricas, como se,
à boa maneira da tradição europeia, a variedade de línguas fosse razão para as
considerar acidentais, face à razão ou ao pensamento (índice de ontoteologia).
Aliás
, como atrás se evocou,
é mais do que provável que a aprendizagem da língua tenha uma incidência
muito forte no esquecimento quase total da memória de antes dos 3 ou 4 anos,
Lacan tendo proposto, a partir de certos discursos psicóticos e do seu “estádio
do espelho”, que antes dessa aquisição da linguagem o corpo era ‘despedaçado’
(morcelé, em pedaços), não unificado, a unificação subsequente sendo nele do
nível do que chamou ‘imaginário’.
9. Menos chocante, porque também assim psicólogos,
sociólogos, filósofos e outros “cognitivistas da representação”, mas igualmente
estéril na busca de resposta a esta questão da consciência humana e sua
unidade, é o facto de o que se chama “ambiente” exterior aos humanos ser uma
colecção caótica de coisas sem coerência ecológica, de que se encontram listas
empíricas, teoricamente desorganizadas, em que se podem encontrar factos,
acontecimentos, objectos, coisas, pessoas, situações, acções, relações, processos,
estruturas, indivíduos colectivos, instituições, ou até estados mentais. Ora,
do ponto de vista de Le Jeu des Sciences, o que permite entender a lógica dos comportamentos de cada humano é de
nível antropológico, do paradigma dos usos da sua unidade de habitação: são esses usos que se aprendem e se inscrevem
como grafos cerebrais como condição de, fazendo-os, se ser habitante da unidade
social em que se nasce e cresce, de se ser no mundo da sua tribo. Esse paradigma, com variantes
segundo os dias e as estações do ano, assegura antes de mais a alimentação e a
segurança de cada um, todos contribuindo consoante idades e capacidades para
esse efeito. É certo que esses paradigmas variaram ao longo das histórias
sociais e hoje conhecem especializações profissionais muito diferenciadas, não
impede que eles podem ser estudados em suas lógicas antropológicas e
linguísticas, e porventura oferecerem exemplos de ‘aprendizagens’ susceptíveis
de interessar os neurologistas. Cada unidade social, família, turma de liceu,
oficina de fábrica ou escritório, tem a sua ‘unidade’ que marca cada um dos
seus elementos em seus fazeres, mas cada um aprendeu de forma singular e revela
maior ou menor habilidade na sua execução, o que significa que, enquanto usos
sociais, se repetem nos vários membros, mas singularmente em cada um, segundo o
que se poderá chamar o seu estilo – num leque largo que vai dos gestos concretos às relações éticas –, a sua
idiosincrasia, a maneira que lhe é própria (idion) de pertencer à mistura (krasia) com outros (sun), a sua maneira de responder pelo seu nome no
sistema de que é parte. Ora bem, este estilo (ou talento) seria uma maneira de
dizer como são ligados os grafos cerebrais de cada um, poderia dizer a ‘unidade’ da consciência que se
quer e que nunca se encontra senão como fragmentos temporais variáveis, segundo
os usos concretos que se estão fazendo, os seus lugares, tempos e idades, a
complexidade de acontecimentos pondo em relação várias pessoas, e por aí fora.
Cada um de nós sabe algo do seu estilo, pelo qual nos identificam também os que
connosco convivem.
10. ‘Como são ligados os grafos cerebrais’: esta ligação é o que permite a cada humano
circular na sua cena de habitação, como os outros animais na sua cena ecológica.
Laço que explica que a nossa anatomia seja marcada pelos usos da nossa tribo
(nossa passividade estrutural), que o nosso cérebro seja um órgão
simultaneamente biológico e social (nossa actividade singular). Sem corte
disciplinar entre sociedade e biologia! Este laço, memória de usos aprendidos e
acontecimentos surgidos, é assim uma rede de regras de circulação social, esta
implicando constantemente escolhas segundo situações aleatórias, mesmo muitas
vezes em usos simples, quando falta material para eles ou a máquina se estraga
e pede reparação. Trata-se dum laço regulador de circulação, que precisa dum
motor retirado que lhe forneça energia, que faça duplo laço com este estilo
singular de ser no mundo.
[1] Nicholas Carr, Internet rend-il bête? Réapprendre à lire et à penser dans un monde
fragmenté,
Robert Laffon, 2011. O título inglês é The shallows [os superficiais, banais] W.W.
Norton & Company, Inc.
[3] L’homme neuronal, Fayard, 1983. Randel conheceu-o e elogia-o, mas
não refere a sua teoria dos grafos.
[4] Intestino, rim e fígado, no caso da molécula AMP cíclico (p. 242). É um dos
pontos fortes da teoria da evolução: um mecanismo ‘inventado’ uma vez é
aproveitado com frequência para solução de novas questões.
[6] Damásio tem em O erro de Descartes o gráfico dum anel de simulação que implica esta
aquisição (p. 202 da edição francesa).
[7] Eccles no
livro citado, como o seu título ilustra, mostra claramente como concepções
metafísicas, a partir de certo passo, intervêm massivamente na ‘ciência’ (que
também mereceu um Nobel, o que mostra que apesar da ideologia houve descobertas
científicas aprovadas pelos seus pares).
[8] Segundo o velho Gaffiot, o sentido de ‘conscientia’ em latim é um saber com
outros, cúmplices (sem pejorativo). O ‘ap-prender’ será porventura um ‘prender’
que vem ‘de’ (ab-) outrem, criação dum laço recebido.
[9] É pelo contrário o predomínio
(implícito) do neurónio sobre a rede de diferenças que, substancialismo tradicional,
implica o determinismo em biologia, como Randel parece ter compreendido: “a
memória não repousa nas propriedades das células nervosas enquanto tais mas na
natureza das conexões entre neurónios e a sua maneira de tratar a informação
sensorial recebida” (p. 164). As conexões duma rede são – foi a lição do
estruturalismo –, prévias aos elementos ou termos (substanciais) que elas
conectam: Randel nesta citação revela-se próximo deste motivo da diferença.
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