O que é isso de
ontoteologia?
1.
Terei que o dizer rapidamente, porque não é óbvio que se saiba, tal como Mr.
Jourdain não sabia que fazia prosa. Desenhada por Heidegger a partir da sua posição
de ser no mundo, a ontoteologia é toda a filosofia ocidental desde
Platão e Aristóteles, isto é, toda a filosofia que foi aberta (e que bem não
foi!) pela invenção da definição por Sócrates e sua escola.
Ela arranca o que é definido ao seu contexto, ao seu mundo, destacando-lhe o
seu eidos, a sua essência, mas também o
definidor é arrancado enquanto conhecedor de tais definidos, definido como alma, e
na Europa pós-cartesiana como sujeito ou consciência, a
que, por via da segunda grande invenção ocidental, a do laboratório
científico, se veio opor o objecto,
por assim dizer, objecção ao paradigma do sujeito que procura conhecer. ‘Onto’
é poir o predomínio filosófico do ‘ente’. E porquê ‘teo’? Vem do gesto platónico
da definição do ‘eidos’ celeste e imutável que a ‘alma’ conheceu aquando da sua
estadia fora do corpo: esta primeira ontoteologia consiste na relação entre o Eidos
celeste definido e as coisas terrestres correspondentes, relação essa inscrita
na diferença entre o Céu e a Terra. O gesto da Physica de
Aristóteles, de trazer as essências às respectivas coisas, a ousia
sendo, primária, a ‘substância’ da dita coisa e, secundária, a sua ‘essência’,
anulou essa diferença abissal nas ousiai assim arrancadas ao
seu mundo, mas a maneira como a filosofia platónica de Orígenes, na Alexandria
dos inícios do século III, se apoderou do discurso cristão, colocou-a de novo,
criando uma figura divina feita da mistura de duas figuras celestes – o Deus
autárcico grego (primeiro o do Timeu, depois o Um neoplatónico
e mais tarde o Primeiro Motor aristotélico) e o Deus hebraico – criando-se
assim uma figura ignorada dos Gregos, a de um Deus que conhece cada humano,
cada passarinho, cada flor do campo: a ontoteologia será doravante plasmada
nessa relação entre o Criador e a sua criatura.
Agostinho, Occam, Lutero, Descartes, Leibniz, são dos pensadores mais
importantes na colocação da estrutura cristã Deus / alma,
que Hume e o newtoniano Kant desfizeram substituindo esta pelo sujeito virado
para o mundo, sujeito / objecto que prevaleceu até hoje,
sempre em torno da operação filosófica da definição e da experimentação
científica em laboratório: assim se reformulou a ontoteologia em termos de
filosofia do conhecimento. Em resumo, esta consistiu sempre, com grande
variabilidade de posições segundo os pensadores e as épocas, na não
consideração do movimento, e portanto do tempo, nem do contexto,
no privilégio da relação ‘vertical’ das essências e conceitos sobreposta à consideração
‘horizontal’ do movimento da natureza e do da história[1].
Ora esta começa a afirmar-se ao longo do século XIX em que várias ciências –
paleontologia e biologia, linguística, economia, história, filologia dos textos
antigos – colocam a evolução e a história no seu coração, donde que, já antes
da essencial temporalidade do ser no mundo heideggeriano, a
alteração maior deste paradigma metafísico tenha sido devida a Marx, herege de
Hegel, depois havendo Darwin, Nietzsche e Freud, como trabalhando todos – mais
ou menos, que nestas coisas nunca nada é de vez – já em boa parte nas bordas
dessa tão tenaz metafísica que, antes de podermos dar por isso, a todos nos
impregnou nas diversas disciplinas do liceu, tanto científicas como literárias
ou mesmo filosóficas.
2.
Se pois Freud lhe transgrediu os limites, como tentarei sugerir através dos
motivos que aqui nos convocam, foi todavia usando conceitos ontoteológicos,
mormente centrado no de ‘consciência’, visível naquilo a que Rickman
chamou uma “one-body psychology”[2],
expressão que esclarece de maneira muito clara que não é só a noção de
‘consciência’ que está em causa, com a ‘alma’ no substrato, mas também a de
‘corpo’, que a muita gente parece mais ‘materialista’ do que ‘alma’, mas que na
tradição joga em oposição a ela, o que significa (Derrida explicou-me isso na
primeira vez em que pude conversar com ele, há quase trinta anos) que quando
falamos em ‘corpo’, a ‘alma’ também vem, que ambos foram arrancados do mundo
pela definição e não se largam. O que é muito claro que é a lacuna maior do
paradigma da neurologia, como tentei sugerir numa leitura do excelente livro de
A. Damásio, O livro da Consciência em português, excelência
que justamente pede que se acrescente o ‘mundo’ como contexto ao ‘cérebro’ que
ele descreve minuciosamente tendo em conta a evolução anatómica desde os
protozoários; sendo também uma one-body neurology, deverá alargar o seu domínio
de descrição de maneira a ter em conta o que se aprendeu,
isto é, ter em conta que o cérebro é um órgão simultaneamente biológico e
social. Se lhe faço alusão aqui, é para poder daqui a pouco beneficiar do que
os neurólogos nos ensinaram (além de Damásio, Changeux e Vincent nomeadamente):
com efeito, os motivos de ‘afecto, pulsão e inconsciente’ reenviam em parte ao
motivo biológico das hormonas e dos neurotransmissores, estes quimicamente
equivalentes àquelas mas jogando no sistema das sinapses neuronais em dimensão
mínima, química que intervém nos efeitos dos grafos
(J.-P. Changeux, O homem neuronal) que a aprendizagem
inscreve nesse sistema, grafos que relevam assim da tribo aonde se nasceu e
cresceu. Ora, sucede que o neurólogo está limitado laboratorialmente no acesso
a estes grafos, já que, como Damásio sublinhou esplendidamente no seu livro, do
que se ‘passa’, se ‘faz’ ou ‘acontece’ nos neurónios só o próprio sabe,
dor, impressão ou consciência de: é a este acesso exclusivo ao que se efectua
nos neurónios enquanto sua função biológica essencial, a sua internalidade, se
dizer se pode, que o autor chama mente. O neurólogo dela
não sabe senão o que o seu paciente
lhe disser, engane-se ou não, ou mesmo enganando-o. Já M. Jouvet (O sono e o
sonho) o tinha esclarecido sem se dar conta: nas suas
investigações sobre os sonhos, tinha sempre que acordar o paciente e perguntar-lhe
se estava a sonhar, e se sim, a sonhar o quê. Ora, os sonhos são a matéria de
eleição da psicanálise freudiana e se esta procurou explicar o que entendia no
divã recorrendo a termos evocando energias nomeadamente (estes que aqui nos reúnem
fazem parte deles), também teve que arrepiar caminho – entre o Esboço de psicologia científica e
a Interpretação dos sonhos, entre 1895 e 1899 – e
renunciar a ligar o que de neurologia se ia sabendo ao que estava investigando.
Do ponto de vista das respectivas metodologias, neurologia e psicanálise são
irredutíveis, como o laboratório daquela o é ao divã desta e vice-versa.
3. Seja uma lista de exemplos
filosóficos e científicos de predomínios ontoteológicos, como o da definida
essência sobre o contexto donde foi retirada. O ente predomina sobre o Ser que
o dá (seja a phusis, o mundo, o social); o planeta sobre o campo das forças da gravidade; o indivíduo, vegetal ou animal,
sobre a sua espécie, esta sobre o seu género, o indivíduo biológico sobre a lei
da selva, o cérebro biológico dos humanos sobre a tribo que o instituiu,
inscrevendo nele os seus usos; o indivíduo humano sobre a sua família e
sociedade (que não existe, dizia M. Thatcher); a palavra sobre a frase, esta
sobre o texto (de que é parte), este sobre o contexto que o produziu e de que
se destacou. Como se a configuração Deus / alma / definição fosse o pólo solar,
monoteísta, que ilumina cada ente, o elucida, esquecendo o campo ‘terrestre’
que o dá, o que Heidegger chamará Ereignis no final da sua obra: o
‘vertical’ predominando sobre o ‘horizontal’.
4.
Em vez do motivo do afecto, seja a seguinte citação
de J. Derrida: “a auto-afectação é uma estrutura universal da experiência.
Qualquer vivo é capaz de auto-afectação. E só um ser capaz de se auto-afectar,
pode deixar-se afectar pelo outro em geral. [...] Esta possibilidade – outro
nome da ‘vida’ – é uma estrutura geral articulada pela história da vida e dando
lugar a operações complexas e hierarquizadas” (De la Grammatologie,
Minuit, 1967, p. 236). Só
válida para os animais e não para as plantas, esta capacidade do ser vivo
permite caracterizar os neurónios como as células que sofrem e fazem
‘afectação’ umas sobre as outras, formando uma grande rede de auto-afectação, e
também de hetero-afectação por outros vivos na cena ecológica,
como presas possíveis, predadores de que se foge, eventuais aliados.
Auto-afectação é indissociável de hetero-afectação, a consciência de si em
geral indissociável de o humano ser no mundo com outrem. Uma breve lista de
afectos[3]
assinala-o bem: começando pela angústia, “uma experiência de desmoronamento
radical das escoras subjectivas” (p. 163), continua-se com o amor, ódio,
ignorância, fúria / ciúme e inveja, depressão / luto e tristeza, alegria e
mania, culpa / temor e piedade, entre outros. E, citando Lacan, "não
devemos tomá-lo (o afecto) como substantivo, mas sim fazê-lo passar ao
verbo" (p. 234), auto-afectar-se ou ser auto-afectado e ser
hetero-afectado; o que implica a indissociabilidade entre a passividade
das duas últimas formas verbais e a actividade da
primeira. Ora é esta indissociabilidade – entre ‘ser-se
afectado’ e ‘afectar’ – que a ontoteologia dissocia,
entre o que se recebe do Outro, da tribo, e o que se lhe
responde.
5.
Tentarei articular a descoberta psicanalítica com questões elementares de
biologia e antropologia, que nos servirão de ‘contexto’, por assim dizer, ao
que em Freud segue a interpretação dos discursos no divã. Um mamífero é
composto de quatro sistemas: a) o da circulação do sangue que vai a todas as
células do organismo fornecer moléculas de nutrientes e de oxigénio para o seu
metabolismo incessante; b) o do sistema digestivo e respiratório que carrega o
sangue com essas moléculas[4];
c) o do sistema de mobilidade, órgãos perceptivos, cérebro neuronal e músculos
de locomoção, que busca na cena ecológica o que comer e beber para essa
digestão, além de procurar escapar a ser presa de outros; d) o sistema sexual,
que busca a reprodução da espécie e não do indivíduo como os outros três, mas
que nos mamíferos se veio inscrever parcialmente na anatomia feminina de forma
inovadora, com periodicidade comandada pelo cio das fêmeas que desapareceu nas
humanas, permanecendo as suas pulsões susceptíveis de irromper a qualquer
momento. Tentar-se-á agora sugerir como é que estes quatro sistemas jogam na
longa passagem do feto humano, ser no ventre
materno, ao adulto, ser no mundo da sua tribo. No feto,
apenas o primeiro sistema funciona, o sangue dele sendo carregado directamente
pelo sangue da mãe através do cordão umbilical: pode-se pensar que se trata do
tempo mais propício ao domínio do que Freud chamou o princípio do prazer.
Com o corte do dito cordão no parto, os sistemas digestivo e respiratório
entram imediatamente em funções, introduzindo-se um ritmo de oscilação entre a
dor da fome e o prazer da sua saciedade, sem que o bebé possa fazer outra coisa
do que chorar, impotência que durará o tempo suficiente para a organização da
economia pulsional, nomeadamente durante o período de latência a que porá fim a
puberdade, assinalando a entrada do sistema sexual. Este longo período, que vai
desde o desmame e das primeiras autonomias, de andar, mexer e falar, é o da
estruturação do sistema da mobilidade pela aprendizagem dos usos tribais, que
farão entrar lentamente a criança no paradigma dos outros, retirando-a do seio
materno dos primeiros tempos e reelaborando o domínio do princípio do prazer
que terá que compor cada vez mais com o princípio da realidade,
cuja lei paterna lhe é imposta progressivamente. Arrancado ao
prazer do seio materno pela dor que implicam as tentativas de qualquer
aprendizagem, esta necessitará de estriturar a energia, no que será sem dúvida
o início do processo de recalcamento e de sublimação:
poder-se-á encontrar o índice desta na aquisição da habilidade espontânea do
novo uso, onde princípio de prazer e da realidade revelam um novo tipo de
ritmos entre eles, em que a passividade da aprendizagem
exibe o aprendido que se inscreveu como actividade
energeticamente fecundada, sublimada. Em jogos, em fala, em corridas e outras
habilidades.
6.
Seja o processo da aprendizagem dos usos da tribo ao longo do crescimento e
mesmo ao longo de toda a vida. Aprender é obviamente receber de quem nos ensina
o que não sabemos, é pois uma passividade, mas o que assim se recebe de outrem
‘prende’-nos enquanto capazes doravante de fazer activamente o que se aprendeu,
o que dantes se não sabia. O que vem torna activo o que era passivo, o que
chamamos no calão filosófico europeu ‘sujeito’ é instituído como tal pelo que
se aprende, como aliás as etimologias sugerem: os chamados ‘objectos’ fazem
ob-jecção, são obstáculos aos que a recebem
como sub-jecção. Há aqui obviamente mais do que apenas ‘afectação’ da cria
mamífera que se vai sendo instituída como filho/a dos humanos. A aprendizagem
da linguagem é ainda mais patente, já que por ela, o/a in-fans, o/a que ainda
não tem fala, ganha a sua voz que lhe permite fazer o seu discurso
com as mesmas regras linguísticas, por vezes bem retorcidas, com que falam os
que lhe ensinam e lhe corrigem os desvios. Coisa esta de grande espanto, se se
tem em conta que é segundo essas regras linguísticas que se pensa no seu foro
interior, que se resolve e decide, se esconde a indecisão ou a angústia, os
segredos mais íntimos: nesta passividade face ao tribal que dá a actividade
mais pessoal, neste ‘eu’ que de ‘tus’ se gera, reside o enigma
maior da condição humana, raiz do que chamamos e apreciamos acima de tudo como liberdade,
que é assim possível colocar fora da oposição alma / corpo ou sujeito /
objecto. É este enigma, tanto para o próprio paciente como para o psicanalista,
que é indagado por ambos nas sessões laboratoriais do divã.
A teoria das pulsões à
luz da antropologia
6. Uma maneira de dizer o que Freud nos ensinou : como é que
é possível a aprendizagem, de tal maneira que nós façamos
espontaneamente uma data de coisas socialmente necessárias e que as
façamos à maneira da nossa tribo ? Como é que a nossa tribo
nos fez para nós agirmos assim, livremente, por nós
mesmos, sem nos sentirmos obrigados ? Se partirmos das pulsões de origem
hormonal – impulsos mais ou menos fortes, desestabilizadores, que nos sucedem
de vez em quando –, como é que elas se estabilizam, de maneira a não ficarmos
seus joguetes, por um lado, e por outro a aproveitar a sua energia para outros
fins, acima da biologia, mais ‘sublimes’ ? Como é que há sublimação, que
das regras da língua tribal faz o ‘nosso’ pensamento, lubrificado
pulsionalmente por prazer e dor ?[5]
Que ciência haverá para estas questões além da psicanálise ? A difícil
questão é a de saber articular o que de Freud aprendemos com uma antropologia
tribal elementar, de maneira por um lado a evitarmos o dualismo e respectivas
representações na descrição evocativa e por outro a compreendermos também que
esse dualismo tenha vingado tão fortemente na nossa tradição[6].
O que aqui farei tem sem dúvida o motivo do ser no mundo
como pressuposto mas também a consideração da linguagem[7]:
a psicanálise como uma semiótica experimental do discurso neurótico em relação à energia sexual
humana no seu laço à lei social, tem em conta também algumas correlações possíveis dos
motivos freudianos com a neurologia, como por exemplo ‘pulsão’ com o hormonal.
7. Não sendo necessário recordar a teoria freudiana das pulsões, é
importante sublinhar como a distinção, na primeira tópica, entre dois tipos de
pulsão, umas de autoconservação, como a fome ou a sede, e as outras ditas
sexuais, insistia em que estas na época infantil se escoravam naquelas. Digamos
que o bébé que acaba de nascer não é senão um ventre-pele,
um ventre cuja pele banhou no calor do líquido amniótico, que sem dúvida não gostou
nada da expulsão, que sente a pulsão de fome (dor) e chora, o seio da mãe
trazendo-lhe a saciedade (prazer). Isto repete-se durante meses, este ritmo
inscreve-se nele. O desmame será um novo golpe, após o do parto : ele
re-marca neste ‘ventre-pele’ uma zona de prazer oral,
ligada à sucção do seio materno, ao gesto e ao sabor, que, na próxima chamada
de fome repetirá o seu prazer chuchando o dedo, sem seio nem gesto da mãe
portanto, mas que não é possível senão pela ligação à sua marca, que o desmame,
que é um uso antropológico, acentuou. De maneira semelhante, meses mais tarde,
uma zona de prazer anal será re-marcada pela higiene de
defecação, pelo uso social de reter os excrementos, em tensão até ao momento do
alívio. O ventre-pele é assim duplamente remarcado, em cima e em baixo, a
criança é incitada a pôr-se de pé e a falar, para o que terá que aprender a
jogar com dois esfincteres, os músculos em anel da glote e do ânus (Fonagy), a
inscrever assim a sua fala nos dois extremos do tubo digestivo, nessas duas
zonas erógenas remarcadas. Ganha um princípio de verticalidade, de autonomia.
Ele não se vê, são os outros que lhe servem de espelho (Lacan) e que produzem
nele as ‘imago’ que lhe servirão de identificação[8],
produção da sua imagem de si a partir da amálgama das imagens dos que o
rodeiam. O Ego seria um conjunto de imagens de outrem (gente retirada), como os
seus sonhos testemunham, e que fala.
8. Como é que isto sucede ? A sucção do seio e o seu prazer,
depois da boca ter chorado muito, é uma cena simultaneamente fantasmática e
real, indiscernivelmente biológica e antropológica, já diferente em relação ao
ventre-pele. É o desmame, remarcando mais duramente e suscitando, numa espécie
de resistência, a sucção do dedo, que impõe o deslocamento para o dedo ou a chucha do ‘fantasma’
de prazer (fantasma : a boca no seio materno) aquando da abolição do gesto
‘real’ da mãe de dar o seio. O que a repetição deste gesto tinha ligado (como
zona erógena) é desligado (substituição pelo alimento com colher) : o dedo
ou a chucha em suplemento do seio permanecem ligados fantasmaticamente a este,
agora sem a dependência da mãe, no que diz respeito ao prazer (a dependência
continuando, é claro, no que diz respeito à satisfação das pulsões de fome e
sede). Foi assim aberto um outro lugar para as pulsões, que as pode tornar
fantasmáticas, isto é, sem fonte orgânica e não precisando de outrem para se
aliviar, cujo prazer poderá vir a deslocar-se, do dedo a outros
gestos, o de falar, o de beijar…, com o que a escoragem anti-dualista das
pulsões eróticas sobre as de auto-reprodução se desfez. “Pulsões parciais”, diz
Freud, como estas, e outras sem dúvida também, serão retomadas na puberdade
pelas pulsões genitais, com fonte orgânica mas pluralidade de desejos ‘sem
órgão’ e com alvos diversos de que farão o seu manancial, enxertando-se neles
“après-coup” (Nachträglichkeit) de tal maneira que, nos
sonhos e nas associações de ideias no divã psicanalítico, a sexualidade genital
(ou outra talvez) dir-se-á como sendo infantil, arcaica. Foi nisso que, com
efeito, ela se tornou tardiamente, “après-coup”.
“A irredutibilidade do ‘atrasadamente’ (à-retardement) é sem dúvida a
descoberta de Freud”, escreveu Derrida[9]. É
o motivo da regressão : vai-se e vem-se no nosso
passado, como nos sonhos. O que foi outrora abolido, recalcado
nos termos de Freud, atrai o que, posterior, se aproxima demais e como que lhe
faz ocupar um lugar aberto muito tempo antes, o ‘posterior’ vem-se colocar em posição
arcaica. Para o profano que eu sou, é o ponto da grande sedução, senão inveja,
do psicanalista, que saiba apanhar a boleia do sonho e ir, com o paciente, a
esse passado que nunca foi presente, ajudar a desfazer os nós que doem, como se
fosse um cirurgião do psiquismo. O ‘après-coup’, o atrasadamente, é esta
maneira extraordinária de construir um edifício oscilante que, à medida que
cresce em altura e ganha peso, reforça em simultâneo os seus inicialmente modestos
fundamentos arcaicos. À maneira duma árvore, digamos, cujos
tronco subterrâneo e suas raízes se vão enterrando à medida que o tronco do ar
e seus ramos sobem para o alto céu. Sublimação ou entropia para as alturas,
possibilidade inaudita de regressão para o arcaico, eis a grande amplidão da nossa
condição oscilante.
9. Recapitulemos. O ventre-pele ganhou um peito – a respiração do
bébé que se assenta, que gatinha, que se põe de pé, que começa a falar e é
auto-afectado por essa voz ganhando consciência de si –, uma cabeça que vê para
manipular coisas, andar e procurar os seus alvos, o ventre-pele foi posto /
pôs-se de pé. Mas permanece um anãozinho diante de gigantes, que têm com eles a
força e a autoridade : o pulsional no entanto levá-lo-á a opor-se-lhes, a
dizer-lhes ‘não quero’, ‘quero isto’, a fugir-lhes e a esconder-se, a
dissimular-se e a descobrir astúcias pertinentes, razão que emerge lentamente
com a arte de compor discursos. Se olharmos do lado da antropologia do sistema
familiar, é a integração progressiva nele (andar, mexer, falar) que arranca a
criança ao seu comércio primitivo com a mãe, de quem começou por ser um órgão a
mais no útero : esta integração repete, mais lentamente, a primeira
separação, a do parto, esta palavra nossa dizendo o que se aparta
de ser ‘parte’ e aparece. Crescer é aparecer,
deixar de ser parte de, fazer prova de pertinência e de competência. Em
terminologia heideggeriana, vai deixando de ser um ser-no-seio-da-mãe para vir
a ser um ser-no-mundo, a aprender-lhe os usos, cada um que aprende o tornando
outro, com a autonomia da habilidade e do talento, e mais se separando da mãe
de origem, ganhando o nome que lhe deram como seu nome próprio. É este
processo inexorável de deslocamento antropológico que interdita o incesto, que
instaura a lei social. É ele que produz o dito recalcamento, lentamente, não
duma só vez, que irá ganhando força, como, dizia atrás, a árvore que cresce e
com ela o tronco subterrâneo. Alguns incidentes familiares deste processo
prestam-se a uma configuração edipiana, as suas marcas remarcar-se-ão por
outros acontecimentos – sobredeterminações, dizia Freud, que tornam possível a
regressão –, voltarão nos ditos e não ditos no divã, com o ar dum passado
penosamente vivido. Dito de outra maneira : este processo de aprendizagem
implica dele mesmo, enigmaticamente, o esquecimento (quase) absoluto daqueles
de quem se aprende, de que não ficam senão vestígios oníricos : é este
esquecimento que a consciência em análise ressente como um recalcamento muito
doloroso, como se fora arrancado a ferros[10].
10. Não há pulsão ‘pura’ – a pureza sendo ‘interior’ na tradição
filosófica europeia –, marcada na sua definição por aquilo que Freud chamou,
desajeitadamente aliás, ‘objecto’, instância irredutivelmente ‘exterior’. As
pulsões sucedem-se através da memória das dores / prazeres anteriores, pedem
sempre já a satisfação que só virá mais tarde : dor, pede a repetição da
sequência (dor)-satisfação que a apague. Ora, de cada vez que a dor é assim
aliviada como prazer pela intervenção do outro (pessoa, gesto, coisa, ‘o
objecto’ de Freud), este inscreve-se, é ligado à memória dos que já tinham
aliviado; a próxima pulsão terá pois um outro a mais no caminho que ela repete,
a repetição será modificada por um acrescento, com as condensações e
deslocamentos correlativos. Este processo de repetição é assim singularizante,
uma vez que altera o mesmo, fá-lo tornar-se sempre outro, segundo o que
Derrida chamou iterabilidade. É este deslocamento que pede a
repetição e impede que ela seja estrita, é ele que a altera :
a condensação liga os ‘objectos’ outros, o deslocamento desliga-os mas guardando-os
ligados em retiro, fantasmaticamente. A dor e o seu prazer diferido, a
realidade e o fantasma erótico, inscrevem diferenças (fora / dentro) sem as
dissociar : a inscrição retém,
reserva, memoriza, liga, e difere, desliga, desloca,
relança, dinamiza. “Délier ce qui avait été fortement lié, tressé, c’est
détresser, angoisser” (desligar o que tinha sido fortemente ligado,
trançado, é destrançar, provocar ‘détresse’, angustiar)[11]. A
pulsão segundo Freud deseja a sua anulação como tensão ou dor, quer voltar ao
seu ponto zero, à sua morte ; a diferança do prazer impede este retorno
mortal, deslocando-o para outro gesto ou coisa : cada retorno é obrigado a
um ‘detorno’, a um desvio, deslocamento, outra destinação : impedir a
morte, relançar a vida, é isso a repetição, a iterabilidade. Mas, como é o
efeito do outro que impede e relança, que difere o mesmo, ele impede tanto a
submissão total do interior ao outro exterior quanto a coincidência pura do interior
consigo mesmo ; a pureza, tanto interior como exterior, seria sempre a morte,
degeneração autista num caso, alienação total no outro.
11. Diga-se de outra maneira. O bébé não tem interioridade ainda,
começa por ser uma cena com a mãe, torna-se depois uma cena com os outros no
sistema familiar a que é ligado. O processo evocado é o duma desligação
progressiva, de pequenos passos para a autonomia mas em que esta é doação dos
outros – aprendizagem – que se apagam mas sem separação total, porque o que se
desliga permanece ligado – de forma retirada, apagada, inconsciente – como
atestam os fantasmas dos sonhos. A desligação da mãe é feita pela entrada a
pouco e pouco no sistema dos usos familiares (e escolares), no mundo
heideggeriano, segundo o duplo movimento de pedir e impedir : incita a
buscar, a aspirar, a querer, por um lado, entrava, impede, interdita, por
outro. Uma vez que é a integração nos usos quotidianos que lhe proíbe o incesto
(a ‘mulher’ a quem ele estava tão ligado, que era ‘tudo’ para ele, no
sistema não é senão a ‘sua mãe’ e de alguns outros, casada com
um terceiro), é aonde ele aprende a tornar-se autónomo fazendo como os outros
mas no seu lugar único, singularizando-se pelo seu talento, a sua idiosincrasia
(palavra grega que diz as pequenas manias de cada um), a maneira que lhe é
própria (idion) de pertencer à mistura (krasia)
com outros (sun), a sua maneira de responder pelo seu nome no sistema de
que é parte. Partindo (para a escola, para o liceu, para o primeiro emprego,
casar-se), tratar-se-á sempre de ganhos de autonomia em relação aos outros
desses diversos sistemas de usos, de desligações que permanecem ligadas de
forma retirada. O que Freud chama Ego, a parte de memória do Id que é
modificada por influência directa do mundo exterior[12], é
constituída pelos vestígios dos outros, condensadas, amalgamadas, por vezes
invertidas, sempre esquecidas : “[…] o carácter do Ego resultaria desses
abandonos sucessivos de objectos sexuais”[13],
dessas desligações dos outros, cujos rastos se tornam fantasmáticos,
sexualizados. As três instâncias, o Id, o Ego e o Super-ego, que Freud retém,
não podem ser ligadas entre si (e elas não são outra coisa senão essas
ligações) senão por permanecerem estruturalmente ligadas, de forma retirada,
esquecida, aos sistemas de usos (familiar, antes de mais), à heteronomia que
lhe deu tornar-se o que ele é. Nomeadamente lhe deu tornar-se alguém capaz de
decidir, capaz de pôr e de opor : por exemplo essencial, alguém em quem
são opostos interior e exterior, que opõe o que eu quero
ao que me resiste ou ameaça, os outros, o mundo, a realidade fora de mim. Contra
a nossa experiência mais espontânea (ontoteológica), esta oposição interior /
exterior é construída, derivada. Esta é uma das lições
fundamentais da psicanálise, que o carácter ontoteológico dos conceitos do
próprio Freud impede frequentemente de perceber : não estou certo,
todavia, de que seja possível sabê-lo por outra via.
Retiro e regulação do
aleatório
12. Seja um último ponto. O jogo de oscilações que nos é estrutural
– que a psicanálise explicitou antes das outras grandes ciências como estrutura
que resulta do Ereignis heideggeriano, da doação dissimulada
de todo e qualquer ente terrestre[14]
–, esta oscilação é pedida pela exigência de retomada energética dos organismos
(sono), mas é perigosa para eles, coloca-lhes problemas de identidade. Por
outro lado, ameaça-os da possibilidade de encontros inesperados com outros, o
que exige que se esteja mais ou menos seguro de si. A ameaça é
pro-vocação : a pulsão do outro, que me diz ‘vem !’, contagia a
instabilidade pulsional do sonho. A teoria do Id-Ego-Superego de Freud busca
dar conta da viabilidade destas oscilações e da necessidade do seu
enquadramento. Por um lado, o recalcamento, nó do Id, exercido pela lei
social, pelo interdito do incesto, retém o excesso de líbido, de energia
sexual, diferindo-a, relançando-a pela promessa dum destino de adulto[15],
que tem que passar pela aprendizagem dos usos tribais, das regras que organizam
os encontros sociais. Regras, interditos, promoção de ideais, parece ser o que
de maneira vaga Freud entendia por Superego, “formado não à imagem dos pais,
escreveu, mas à imagem do Superego deles”[16].
Quanto ao Ego, dir-se-ia que é o que sobra entre ambos, como dizer ?, conjuntos
estruturados de vestígios apagados das imagens dos outros, o que oscila entre
eles: defesas, como se diz, por um lado, fragilidades oferecidas talvez também,
do outro lado. Mais rígidos uns, mais maleáveis outros, ou nos mesmos em outras
idades da vida, como dizer aquilo que é justamente a incrível variabilidade dos
humanos, o que por vezes nos surpreende, nos comove, doutras vezes nos mete
medo ?
13. Digamos assim : há o rame-rame dos dias, toda a gente o tem
nos sistemas de usos em que está inserido, em que se joga ganhando-lhe os ritmos,
os automatismos. Essas oscilações habituais são mais ou menos regradas, mais ou
menos espontâneas, sem que haja que pensar nelas a maior parte do tempo, o
aleatório que nelas há sendo tido em conta sem grande dificuldade : o Id-Ego-Superego
de cada um foi estruturado para isso, singularmente, pelos sistemas de usos
tribais. Pequenas coisas se passam, mais ou menos desapercebidas, que voltarão
de noite, em sonho, acordam velhos desejos enterrados que se ‘realizam’ na cena
onírica. Mas era uma vez. Estes elementos da véspera, como lhes chama Freud,
podem jogar durante o próprio dia sem esperar a noite, abraçarem logo o mundo
arcaico, alumiar uma paixão, ‘realizarem-se na realidade’, na realidade também
arcaica de tal mulher, de tal homem, acontecimento, encontro inesperado. Ou
outra espécie de acontecimento, uma situação de risco social em que haja que
decidir depressa, a leitura dum livro que transtorna. Diante de tais situações,
a estrutura oscilante pode mostrar-se, quer muito fraca, quer muito rígida, e
talvez dê no mesmo, na catástrofe. Ou então haver metamorfose, amor louco, alteração
profissional, conversão de vida, sei lá eu. Pode o id-recalcamento ter sido
aliviado pelo outro, ou reforçado, o supergo reformulado, tornado mais ligeiro,
é para isso que se faz psicanálise, não é ? ou o ego oscilar melhor, ou…
ou… Se a psicanálise tem sentido, por certo que é na medida em que consegue
intervir nestas engrenagens de oscilação que permitem que estejamos abertos ao
acaso sem perda de identidade. Mais ainda, são estas estruturas oscilantes que
nos enviam, nos destinam ao acaso, à possibilidade do desconhecido,
destinam-nos à errância : destinerrância,
escreveu algures Derrida, forjando uma palavra que impede de opor determinação
e indeterminação, destino e liberdade. O duplo retiro, apagamento ou não
consciente (recalcamento e superego), é a condição da regulação do aleatório
entre mim e outrem.
Retorno à questão da ontoteologia e da sua
transgressão
14. Voltando à questão dos
parágrafos iniciais. Tal como Damásio encerra a sua descrição do processo
neurológico nos limites ontoteológicos do corpo e do cérebro, procurando
sistematicamente mostrar como o cérebro ‘cria’, a mente, a consciência, o Eu (o
Self), na linha da autopoiésis que o biólogo chileno
Francisco Varela tornou célebre nos anos 80 do século passado e que reconduz,
sem o saber porventura a physica aristotélica dos seres vivos como os que crescem
por si mesmos, kath’auto, também assim Freud e a sua one-body
psychology. Sem dúvida que os mecanismos admiráveis que a biologia
molecular nos revelou nos seus gloriosos anos 50 e 60, do ADN e do ARNm, nos
permitiram enfim compreender o ‘segredo da vida’ após vários séculos de
esforços de admiráveis sábios europeus, ultrapassar enfim o vitalismo herdado
que tanto resistiu, mas fizeram-no mostrando como esses mecanismos são de
alimentação e respiração, isto é, supõem constantemente o acesso de moléculas
vindas de fora, isto é, implicam que não há nas nossas anatomias e fisiologias nada
que não seja de origem heteropoiética. O paradoxo consiste em
que os biólogos pareçam não o entender, ficarem como que a meio caminho do que
descobrem. Ora, a razão desse paradoxo é filosófica, reside na filosofia que
eles receberam no liceu e na universidade nas próprias aulas de biologia,
reside no coração do seu paradigma.
15.
Nunca ouvi dizer, mas as minhas leituras nestes domínios são obviamente muito
limitadas, que haja biólogos permeáveis à descoberta pelo químico belga
Prigogine, Prémio Nobel de 1977, das “estruturas dissipativas” no metabolismo
celular: se o forem, saberão que esse metabolismo, enquanto vivo, implica
produção positiva de entropia (ou neguentropia) e que para tal há necessidade
de uma fonte de alimentação externa. Ora, eu creio que essa entropia positiva
(que contraria a tradicional da termodinâmica de Clausius, que supõe sistemas
fechados) tem algum parentesco com o motivo freudiano da sublimação. Estas alusões
aos limites ontoteológicos de biólogos e neurologistas permitem sublinhar como
Freud, conhecendo os mesmos limites filosóficos e apesar da justeza relativa da
critica de Heidegger contada por Laporic, como Freud foi todavia levado a
transgredir aqui e ali esses limites. Um dos pontos tem a ver com a sua teoria
da sexualidade, que ele não ‘inventou’ mas ‘descobriu’ nas associações livres
dos seus pacientes, quando as suas resistências a dizer –
esquecimentos, lapsos ou outros actos falhados, intervenções súbitas da
consciência vigilante que se auto-censura, silêncios, desmentidos, risos,
choros, negações, etc. – se lhe deram como sintomas energéticos
(diferenças de sentido e diferenças de força indissociavelmente) que assinalam
uma clivagem, uma margem, um limite que não se pode passar, uma fronteira
fractural, digamos, entre o que se diz e o que não chega ao dizer. Além dessa
fronteira encontram-se os nós discursivos escondidos que manifestavam os
sintomas neuróticos que levaram a pedir a terapia. Ora, é nessas repetições
e resistências diversas que a sexualidade se manifesta como sexualidade
censurada, interdita, tingida muitas vezes de agressividade, sexualidade incestuosa e de
ciúmes correlativos : isto é, ela manifesta-se como ligada à lei social.
Censurada, não apenas em relação ao analista, mas antes de mais e sobretudo em
relação à consciência vigilante do sujeito, que se ofusca com aquelas
revelações e não quer crer nelas. O interdito do incesto,
que Lévi-Strauss veio a reconhecer como obrigando à exogamia, à aliança entre
famílias, formando o nó constitutivo do social, é descoberto por Freud como o
que, lei paterna vinda de fora, cria o inconsciente,
isto é, um recalcamento que gera sublimação e é pois a própria dinâmica dos
psiquismos humanos.
16.
O outro ponto de transgressão da one-body psychology ontoteológica, foi aludido
acima, tem a ver com a introdução, sob o feio termo de ‘objecto’, dum elemento
exterior no conceito de pulsão (Trieb).
São quatro elementos que a definem no texto “Pulsões e seus destinos” de 1915:
a) a pressão (Drang), uma tensão que provoca dor e tende a
descarregar-se b) num alvo (Ziel), o que alivia da dor e
provoca prazer; c) a sua fonte (Quelle) somática que é
excitada e d) que se descarrega graças a um objecto (Objekt).
Os dois primeiros, dor e prazer, formam a diferença energética (entrópica)
constitutiva da pulsão, estão na origem dos dois célebres princípios do prazer
e da realidade de 1911, enquanto que a fonte somática correspondendo sem dúvida
à bioquímica das hormonas (J.-D. Vincent, Biologia das paixões)
tem como contraponto algo que a palavra ‘objecto’ denota como exterior,
um órgão fisiológico comandado geneticamente sendo assim correlacionado com
algo de antropológico, de social: o conceito de pulsão escapa pois à oposição
interior / exterior, é-lhe prévia, impede de fechar o psiquismo numa
interioridade solipsista[17],
introduz nele o mundo, como também o interdito do incesto. Ora, é a
exterioridade deste elemento antropológico que vai permitir as identificações
narcísicas e edipianas que instaurarão o Ego. Como fiz alusão acima, contra a
nossa experiência mais espontânea, esta oposição interior / exterior é
construída, derivada. Ao menos nestes dois pontos, Freud abriu caminho ao ser
no mundo heideggeriano.
Colóquio
filosofia e psicanálise, Universidade Nova de Lisboa, 8/11/ 2012
vídeos da comunicação e do debate por Luis Tavares
[1] A definição na Physica aristotélica de ousia enquanto capaz de compreender o movimento dos
vivos representa a excepção, a escapadela à ontoteologia ; todavia, quando
Tomás de Aquino introduz Aristóteles na teologia cristã e por via de
consequência na filosofia europeia, fá-lo esbatendo a Physica, tratando a ousia apenas segundo a Metaphysica, o ‘movimento’ considerado como acidente (E.
Gilson, Le Thomisme, Vrin,
1947, p. 47 n.). Heidegger levou uns 20 anos a recuperar o Aristóteles da
Physica (“Ce qu’est et comment se determine la physis”, Questions II, Gallimard, [1940, 1958], 1968).
[2] Laplanche e Pontalis, Vocabulaire de la
Psychanalyse, P. U. F., 1967, p.
404
[3] Devida a Marcus André Vieira, A ética da
paixão: uma teoria psicanalítica do afeto. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001, segundo uma recensão de Letícia Nobre
in Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica (WWW), com print version ISSN
1516-1498, Ágora (Rio J.) vol.4 no.1 Rio de Janeiro Jan./June 2001
[4] O que se faz respectivamente no intestino e nos
pulmões, os dois órgãos que com o cérebro fazem trocas do exterior e tiveram que
encontrar solução para o mesmo problema anatómico: aumentar ao máximo a
superfície de trocas num volume determinado.
[5] A diferença entre a língua materna que flui já em
crianças pequenas e os fortes sotaques e erros de quem aprendeu uma língua
estrangeira.
[6] O filósofo brasileiro Z. Laporic, “Além do inconsciente:
sobre a desconstrução heideggeriana da psicanálise”, conta a crítica por Heidegger quer da
metapsicologia freudiana, de inspiração kantiana, quer da sua clínica, crítica
essa que aproxima dos textos de Winnicott.
[7] O que não é o caso nem de Freud nem do Heidegger
de Laporic, que põe em questão, como o seu desenho da ontoteologia pede, o
mentalismo das representações na metapsicologia freudiana, sem parecer pensar
que essas representações, surgidas para dar conta de análises clínicas de
discursos de pacientes, são susceptíveis de serem interpretadas doutra forma,
não devem ser pura e simplesmente negadas. Duas leituras fabulosas de textos de
Freud por Derrida, uma citada na nota 7, a outra do “Para além do Princípio do
Prazer” em La Carte postale de Socrate à Freud et au-delà, Flammarion, 1980, não o impedem de escrever no
primeiro desses textos sobre a sua “reticência teórica em utilizar os conceitos
freudianos sem ser entre aspas, que pertencem todos, sem excepção, à história
da metafísica”, já que “um pensamento da diferença ocupa-se menos dos conceitos
do que do discurso” (1967, p. 294).
[10] No Livro da Consciência, Damásio distingue neurónios de consciência (a
esta chamando ‘mente’) de “disposições não conscientes” que foram “educadas”
(p. 332), ou seja redes neuronais sem a sua internalidade mental: sendo contra
a correlação que estabelece entre neurónios e mente, parece que essas
“disposições não conscientes” seriam susceptíveis de terem sido ‘conscientes’
nos primórdios e ‘esquecidas’ posteriormente.
[11] Mercedes Allendesalazar, Thérèse d’Avila, l’image au féminin, Seuil, 2002, citada por T. Joaquim.
[12] 1995, p. 9.
[14] Como tentei sistematizar em Le Jeu des
Sciences avec Heidegger
et Derrida, de que uma parte
deste texto é uma adaptação.
[15] Onde há lei, há promessa: o interdito não pode impedir o retorno à
transgressão, pode apenas obrigá-lo a um desvio.
[16] Suite aux Leçons d'introduction à la
Psychanalyse (1932), citado in
Laplanche et Pontalis, 1967, p. 473.
[17] Como é a alma e a consciência na crítica do velho
Heidegger ao seu mestre Husserl nos seminários de Questions IV.
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