PROPOSTA DE UM ARGUMENTO (1998)
A questão: filosofia, ciências e relativismo
As cenas da Biologia e da Linguística estrutural
Retiros, regras, aleatório: o exemplo do automóvel
Mecanismos de autonomia com heteronomia apagada
A verdade dos usos quotidianos
Breve história da verdade ocidental: os Gregos
Breve história da verdade ocidental: os Europeus
Acabamento e ultrapassagem da metafísica
Uma verdade relativa mas estável no futuro
1. Trata-se aqui do resumo dum novo argumento que me pareceu ter encontrado. após ter escrito o essencial da I parte dum longo trabalho (Le jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida). sobre uma das questões mais difíceis e intelectualmente mais mortíferas, a da verdade entre relatividade e relativismo (repetindo alguns dos pontos do Manifesto, no outro blogue). Este argumento supõe a demonstração da convergência entre algumas descobertas científicas do século XX e a fieira fenomenológica Husserl, Heidegger, Derrida, contemporânea dessas descobertas. A primeira parte da exposição debruçar-se-á sobre a vertente das ciências, sendo a biologia e a linguística estrutural retidas como exemplos, a segundo colocará a concepção da verdade como alêtheia de Heidegger no contexto da história ocidental da verdade. Para a levar a bem, terei inevitavelmente que supôr por vezes desenvolvimentos desses dois textos que não poderei sequer resumir, terei também que aludir a questões que não conheço muito bem, que nunca trabalhei em detalhe: se me quiserem questionar sobre elas além das trivialidades que qualquer pessoa culta saiba dizer, rapidamente terei que levantar a bandeira branca da rendição. Benevolência vos peço pois, a de quem é capaz de compreender a importância filosófica da questão ainda que tenha objecções fortes a pôr à perspectiva como será tratada.
A questão: filosofia, ciências e relativismo
2. Tentarei pois colocar aqui a questão - decisiva nos tempos que correm, quiçá, entre as outras todas - da relatividade e do relativismo. Há quem confunda as duas noções indevidamente, já que a primeira, reclamada explicitamente pela Física, a ciência mais anti-relativista, é o horizonte incontornável do pensamento contemporâneo, que desde o século XIX nos vem e Nietzsche anunciou sob a forma da morte de Deus, do desabar do absoluto; a relatividade é o princípio - paradoxal, pois que ele se enuncia assim: já não há princípios - da cultura que descobriu que toda a realidade, não apenas humana, mas a da vida e do próprio universo físico, é radicalmente evolutiva e histórica, ou seja que toda a realidade é movimento, é temporal. Em termos da filosofia tradicional: toda a realidade é contingente, é acidental. Quanto ao relativismo, ele não é mais do que a leitura preguiçosa e apressada da relatividade, já que se faz ainda no paradigma do absoluto negado: se tudo é relativo, se não há mais princípios nem fundamentos escapando à história e ao aleatório, então tudo se vale, sejamos tolerantes para as opiniões uns dos outros, deixemo-nos de teorias ou ideologias e das suas divisões, que tão horríveis carnificinas produziram no século que ora finda, sejamos pragmáticos e solidários que as tarefas são tantas e tão urgentes, para citar a versão mais generosa, a de R. Rorty. O relativismo é o cepticismo, e o que assim se reclama é o fim da filosofia, que também já foi proclamada, com outros fins ou mortes, da história ou do homem. Relatividade e não relativismo: como assim?
3. O cepticismo ou relativismo, cujas formas também historicamente variam, sabemos que foi sempre uma espécie de aguilhão do pensamento filosófico, mormente nas suas duas épocas de ouro, se dizer se pode, a da Atenas dos séculos V e IV e a da Europa clássica dos séculos XVII e XVIII. Comparemos essas duas gestas filosóficas. Havia séculos já de literatura na Grécia, de inscrição oral primeiro, escrita depois, prolongando os mitos religiosos mas acrescentando-lhes outros relativos a antepassados (Homero, claro, Hesíodo, outros poetas). Por outro lado, a encenação teatral do destino trágico de muitas casas nobres de antanho e a acentuação progressiva do ponto de vista ético criaram uma distância 'crítica' em relação à tradição das grandes linhagens e ao sagrado que se lhe articulava, ao mesmo tempo que o brilho literário dessas tragédias valorizava a obra poética como cultura, como produção 'actual', como novidade que vale, como 'modernidade', em suma. A multiplicação de manuscritos em prosa[1] e a generalização da leitura entre os jovens cidadãos criou as condições do desenvolvimento das escolas (dos sofistas) e da cultura, com a tendência a uma como que rivalidade entre os textos, nomeadamente para saber quais privilegiar na educação da juventude. Qualquer texto sendo, por definição, uma maneira singular e elíptica de seleccionar na herança da tradição, e portanto de tornar esta heterogénea, esta multiplicação acelerada de manuscritos teve como consequência um debate agudo, com pontos de vista irredutíveis, propício assim ao que se chama relativismo, já que a heterogeneidade das selecções torna a cultura estruturalmente relativa. Foi uma problemática assim que deu origem à escola socrática de Filosofia. Em três tempos, eu resumiria. a) Sócrates conduz a crítica do saber recebido, tradicional ou sofista, em nome da sua ignorância, que ele radicalmente opõe à pretensa vacuidade dos múltiplos pontos de vista que tinha encontrado. b) Valendo-se dos seus conhecimentos em geometria, Platão ultrapassa este 'cepticismo' fundando a verdade dos entes nas Formas ou Ideias eternas, às quais a Geometria e a Astronomia lhe fornecem o modelo; desvaloriza, deste ponto de vista da compreensão do todo, o saber tradicional, dizendo respeito à physis, ao 'sensível', ao que nasce, cresce e morre, ao que assim muda constantemente. c) Aristóteles, enfim, inverte esta posição, apoia-se no conhecimento (quase experimental, pelo menos de observação) das ousiai, das substâncias-essências desses entes vivos, para criticar quer o 'cepticismo' (de Sócrates) quer (o ‘dogmatismo’ de) as Ideias de Platão.
4. A filosofia da Europa clássica repete estes gestos da ateniense. Também a cultura está em ruptura com a dominância teológica tradicional: multiplicidade crescente dos livros com a invenção da imprensa, cepticismo vindo do cisma da Cristandade, desautorização dos livros dos Antigos, mormente escolásticos, que ignoravam totalmente os novos mundos que se vão conhecendo, divulgação da inversão copérnico-galilaica do cosmos. Em seguida, neste contexto, os três tempos. Os dois primeiros em Descartes: a) dúvida metódica, lembrando a ignorância fictícia de Sócrates, b) fundamento da certeza no Deus eterno que produz em nós ideias inatas, as quais têm cumplicidade com a geometria, como em Platão; c) Kant, por seu lado, repete Aristóteles: crítica do cepticismo (Hume) e do dogmatismo (Leibniz) pela valorização da experiência sensível, mas esta apoiada não na biologia, mas na nova Física de Newton. d) Mas houve depois um quarto tempo, inédito nos Gregos clássicos (correspondendo talvez à constituição patrística da teologia cristã, em que textos narrativo-históricos são trabalhados por conceitos gnosiológicos gregos, ou em todo o caso ao tomismo medieval) e que é justamente aquele em que emerge num sistema filosófico completo a relatividade moderna: trata-se da integração por Hegel da história (das civilizações) - até aí reino do aleatório, do particular, do contingente, do acidental, do acontecimento - no projecto do saber herdado. E a maneira como esse primeiro sistema filosófico abarcando o relativo é coroado por um saber absoluto, mostra, mau grado seu, sob forma de denegação (será Nietzsche quem o revelará), o paradoxo constitutivo de todo o projecto da filosofia ocidental: ela fundava a verdade absoluta (que não é a mesma aliás em 'pagãos' politeistas e em cristãos monoteistas) em textos escritos por tal ou tal pensador em tal ou tal época, isto é, a verdade absoluta fundava-se em textos históricos, singulares, contingentes, culturais, relativos em suma.
5. É sobre este paradoxo - que permite o paradoxo aludido acima, de um 'princípio da relatividade' sem contradição nos termos, desde que ele seja entendido como um princípio histórico, que recebemos na cultura elaborada pelos nossos antepassados e que nós herdámos, cultura histórica a que é essencial a dimensão filosófica e suas problemáticas absolutas - é sobre este paradoxo que havemos de reflectir. Ele está, por assim dizer, no âmago das questões heideggerianas, do Ser e Tempo de 1927 - o motivo da finitude, por exemplo - à conferência Tempo e Ser de 1962 - o projecto de história do ser do II Heidegger -, como nas de Derrida que o prolongou e forçou além de uma certa clausura - por exemplo, a que levou o Mestre de Friburgo a negar pensamento às ciências. Ora, a geometria e a astronomia em Platão, Descartes e Newton, a zoologia e a botânica em Aristóteles e a física de Newton em Kant tiveram um papel não dissociável da filosofia no combate ao relativismo, o qual em Aristóteles e Kant foi também combate por uma certa relatividade[2]. Donde que haja também que ter em conta as principais descobertas dalgumas das ciências do século que ora finda. Não se estranhará que a elas recorra: as ciências são mais resistentes do que a filosofia ao relativismo.
6. Proponho-me sugerir aqui a fecundidade possível do pensamento de Heidegger-Derrida - agrafados por um traço de união - que cultivo há muitos anos como o pensamento mais interessante que neste século houve. Retirada do contexto do seminário apresentado sobre a articulação, por via da fenomenologia, dos domínios das várias ciências de que a linguagem é pelo menos uma parte, este texto terá, como seu primeiro tempo, que recapitular a exposição das cenas dessas diversas ciências.
As cenas da Biologia e da Linguística estrutural
7. Comecemos pelas descobertas biológicas da genética e da neurologia e tentemos reflectir sobre o que elas implicam, quer quanto à respectiva articulação, quer quanto ao funcionamento dos vivos e dos humanos. Seja uma espécie qualquer de mamíferos: enquanto dados pela natureza (physis ou Terra, em termos heideggerianos), eles reproduzem-se. Quer dizer que o casal de um macho e de uma fêmea deve gerar duplos, machos e fêmeas, que sejam por um lado os mesmos (são da mesma espécie) e que não sejam por outro lado idênticos (são outros indivíduos). Quer dizer também que os recém-nascidos deverão ser alimentados e protegidos, deverão habitar um território ecológico propício, até aprenderem a fazê-lo autonomamente. Segundo o ensino da biologia, para estes dois tipos de reprodução - da espécie e dos indivíduos - a physis-Terra joga da mesma maneira: a mesmidade da espécie e do conjunto organizado dos comportamentos dos indivíduos é assegurada pelo programa genético. Este no entanto - ao contrário do que, a crermos nos jornais, parecem pensar muitos biólogos - não pode determinar tais comportamentos de forma estrita, pois que cada indivíduo deverá agir segundo o aleatório das presas a caçar, das fugas para não ser presa dos outros, etc. A mesmidade tem pois que jogar essencialmente com a possibilidade de alteração devida ao outro, ao ambiente em geral, mas sem perder a mesmidade da espécie: o programa genético deve regular o jogo químico do metabolismo (que varia nas células consoante os tecidos especializados e corresponde ao aleatório do que se comeu, dos teores atmosféricos, etc.) e resguardar-se da transformação química das suas moléculas, permanecer retirado (diria Heidegger, que aqui se força, do ser ao ente), o que se faz por esse admirável mecanismo da duplicação duma parte do ADN em ARN mensageiro, este operando a síntese química requerida e degradando-se em seguida, aquele guardado como mesmo para a próxima vez.
8. Fazendo um trajecto rápido pela anatomia do nosso mamífero, facilmente se veria como toda ela está orientada para assegurar o metabolismo de cada célula: a circulação do sangue leva oxigénio e nutrientes até cada uma delas, enquanto que os aparelhos digestivo e respiratório se ocupam de recarregar o sangue; os músculos, patas, boca, cérebro e seus órgão de percepção, aguilhoados pelo jogo hormonal (este sendo accionado por via genética, em função de qualquer alteração do equilíbrio homeostático do sangue), devem reagir no território para encontrarem o que comer, beber, respirar. Ora, o nosso mamífero não poderá, nem caçar nem fugir a quem o cace se não tiver algo desse seu território inscrito duravelmente nas sinapses do seu cérebro, segundo os grafos do neurólogo Changeux. E também esses grafos, memória como resultado do que se chama aprendizagem, são regrados para que acções aleatórias sejam possíveis, comportamentos regrados a partir dos órgãos da percepção até aos ossos e músculos da motilidade atravessando o duplo cérebro, o emocional herdado dos peixes e o neo-cortex das aves e mamíferos, mais extenso em nós humanos, tudo isso implicando memória e aprendizagem que hormonas (e seus genes) impulsionam. O que tem como consequência necessária que nada do que, sendo comportamento, implique algum conhecimento do território ecológico e das suas situações aleatórias, possa ser determinado geneticamente: as regras destes comportamentos, no caso dos humanos, não são mais do que os usos sociais, uns mais gerais, outros mais especializados, que em nós são inscritos de forma a que nos tornemos mais ou menos hábeis neles, de forma a que os nossos comportamentos se façam espontaneamente, a partir de dentro, como nossos, embora de fora originados pela aprendizagem.
9. O jogo da alteração, quer na sexualidade, quer na alimentação, quer na aprendizagem, é assim estrutural à reprodução do mesmo: o que eu como, é o outro vivo (animal ou vegetal) que se torna em mim mesmo; como isto é verdade desde as primeiras células, cada animal é 'feito', substancialmente se se quiser, isto é em todas as suas células e moléculas, de outros entes vivos de outras espécies (além da água). Ora, também os usos que dos outros aprendo e se tornam meus, implicam que eu seja feito ‘useiro’, se se me permite o neologismo, 'agente' desses usos, com um talento singular, pelo próprio processo de aprendizagem. A linguagem é um desses usos e bem especial entre os outros, já que permite que estes também se reproduzam através de receitas com que a linguagem permite dizê-los/pensá-los. Seja um poeta por exemplo. Manuel Gusmão dizia há tempos que ele não dispõe, para fazer o seu poema, senão das palavras dos outros: a linguagem é esse mecanismo fabuloso vindo totalmente de fora, duma muito ancestral tradição, que permite o talento singular, irrepetível, duma Sophia Mello Breyner, dum Herberto Helder. Ora, é possível mostrar, mas não aqui e agora (Epistemologia do sentido, F. Gulbenkian, 1991), como a Linguística de inspiração saussuriana pôs a luz, nos trabalhos dum A. Martinet, por exemplo, como dupla articulação da linguagem, ou dum M. Gross, como propriedades sintáctico-semânticas dos verbos das frases das nossas espontaneidades, que dizemos quase automaticamente segundo regras que são de todos os da mesma língua, é possível mostrar como essas descobertas linguísticas se podem articular com as da neurologia, para compreender por exemplo as afasias de Broca e as de Wernicke.
Retiros, regras, aleatório: o exemplo do automóvel
10. Tendo sido obrigado a deixar de fora as ciências das sociedades e a psicanálise[3] - além da física e da química, cujos mecanismos são outros e aqui porventura menos significativos -, eu diria que estas várias ciências nos deram a conhecer o que se pode chamar mecanismos de autonomia, de que um automóvel poderá ser, até certo ponto, um paradigma: o seu motor e aparelho são regrados até à minúcia, teórica e experimental, segundo as leis de várias regiões da física (mecânica, termodinâmica, electricidade, etc.) e da química (carburantes, óleos, etc.), para produzirem um trabalho que é essencialmente aleatório. Um automóvel só serve na medida em que tudo nele é comandado pela lei do tráfego, da circulação, andar mais depressa ou devagar, travar ou recuar, virar à esquerda ou à direita, etc., em cada instante se podendo apresentar uma situação que implique a alteração da conduta seguida nesse momento, o aleatório sendo assim tanto o dos interesses circulatórios do piloto do carro como o dos outros carros que com ele circulam. Se pensarmos quantas e tão diferentes instituições especializadas existem nas sociedades modernas para tornar viável esta circulação (empresas de engenharia de estradas, pontes e túneis, fábricas e stands de automóvel, oficinas de reparação, refinarias de petróleo e bombas de gasolina, código da estrada, polícias e tribunais, empresas de crédito e de seguros, escolas de condução automóvel, que mais sei eu), poderíamos verificar como essa enorme diversidade obedece a uma mesma grande lei: a da circulação do tráfego segundo um aleatório essencial; se olharmos um pouco para os carros que passam em tal avenida e imaginarmos os zigue-zagues da vida de cada um que ali vai e a relativa ordem da circulação que no momento vai seguindo, como se todos fossem para o mesmo caminho regulados por um horário colectivista, não dará para perceber que o que aqui chamo mecanismo de autonomia é um assombro de perfeição imperfeita?[4]
11. Ora esta lei do tráfego, estruturalmente aleatório e de muitos, comanda também a própria construção do automóvel, em todos os seus detalhes mecânicos e até de simples conforto. Excepto num ponto: a explosão de gasolina que dá o movimento, o motor, como se diz, obedece por sua vez a uma lei da termodinâmica dos gazes, a qual é incompatível com a lei do tráfego, que ninguém pode andar a provocar explosões de gasolina no meio da estrada. Jogando aqui com o pensamento de Derrida, a différance de duas forças antagónicas ou o double bind entre duas leis inconciliáveis, o automóvel (e antes a máquina a vapor de Watt) é a fabulosa descoberta da maneira de conciliar a lei da termodinâmica com a lei do tráfego: o motor tem que ser retirado (e agora é Heidegger que estou citando, de maneira oblíqua), hermeticamente fechado, blindado, fortemente repetitivo - o seu efeito limita-se a fazer rodar um eixo, como aliás também fazem, de outra maneira e segundo outras leis da física, os motores eléctricos, invenção genial do belga Gramme (1869) -, enquanto que o resto do carro, chamamos-lhe aparelho, é pensado para as manobras de circulação adequada ao tráfego de que falámos acima.
Mecanismos de autonomia com heteronomia apagada
12. Podemos então volver às descobertas da biologia e da linguística saussuriana com este modelo (parcialmente) explicativo. Conservado no núcleo, o ADN é retirado das transformações químicas do metabolismo que o transformariam em outras moléculas, mantendo assim a sua identidade em todas as células do organismo (excepto as gâmetas sexuais); o que implica que ele tenha que conter todas as regras necessárias às sínteses de proteínas em cada um dos 200 tipos de tecido celular dum vertebrado e segundo as etapas da embriogénese, maturação e velhice, consoante o aleatório também da alimentação que lhe chega e dos teores do sangue, sobre o equilíbrio do qual o jogo hormonal vigia. Ora, quer o oxigénio quer a alimentação vêm de fora, do ambiente ecológico, onde há que caçar e que fugir de predadores, aleatoriamente, segundo as inscrições ou grafos feitas no cérebro, como já se disse; na evolução dos vertebrados, o olfacto (jogando quimicamente no exterior, à maneira interna das hormonas), cedeu o passo à visão, audição e tacto e suas aprendizagens: o jogo hormonal, que é motor dos comportamentos (a fome, por exemplo), também é retirado do território, e tanto mais quanto o desenvolvimento do neo-cortex. Estritamente retirados do território assim, os genes e as hormonas são cegos em relação a ele (como o cilindro do automóvel o é em relação ao tráfego), não podem pois determinar nenhum comportamento neste, embora seja o jogo genético sobre as hormonas que dá a estas o impulso para esses mesmos comportamentos; donde a dupla cegueira epistemológica desses biólogos, americanos e não só, que vêm para a comunicação social dizer que descobriram o gene da inteligência ou da homossexualidade: dupla cegueira, 1º porque os genes não podem determinar comportamentos que só no tráfego, no território, têm a sua lei, e 2º porque eles julgam saber o que é a inteligência ou a homossexualidade, como se não houvesse milhões de maneiras diferentes, todas singulares, de se ser homossexual e inteligente, como se não houvesse também especialistas desses domínios de que eles não sabem teoricamente nada.
13. Esta digressão permite então chegar às duas leis inconciliáveis das espécies dos animais. Uma é a da autonomia de cada indivíduo, regrada a partir do retiro dos genes e do jogo hormonal, que busca sempre e exclusivamente a sua reprodução (além da da espécie, em épocas de cio), a sua vida, o adiar a sua morte, para isso tendo que comer outros vivos (vegetais ou animais); a outra lei é a do conjunto de todos os outros vivos que procuram o mesmo, já que nenhum animal sobrevive sem ser através do sacrifício de outros vivos: é a lei da vida ('é a vida, o que se há-de fazer'), ou talvez melhor, a lei da selva; espanto dos espantos, esta lei inconciliável com a da reprodução de cada um, não apenas funciona, como o seu funcionamento é o segredo último da evolução, daquilo a que Darwin chamou selecção natural. Tal como a lei do tráfego comanda a engenharia toda dum automóvel, também a anatomia de cada espécie é comandada por esta lei da selva, anatomia feita precisamente para a melhor maneira de caçar e de não ser caçado: tantos milhões de espécies, que imensa panóplia de tão diferentes astúcias, leque sem fim das artes de capturar e de se defender, venenos, garras, mandíbulas e dentes fortes, trombas e cornos, ferrões e teias de aranha, refúgio em tocas ou em cima das árvores, até às asas para voar. Assim como a lei do tráfego comanda a construção do automóvel, também a lei da selva comanda as anatomias que tornam possíveis todos estes truques e astúcias.
14. Falemos agora da linguagem. O que é que é retirado? Os gritos inarticulados dos primatas nossos antepassados, transformados em fonemas, isto é, em sons elementares sem significação nem querer-dizer, imagens de nada - também assim as letras do alfabeto -, retirados pois do campo da significação das coisas e da comunicação directa; com eles, as línguas formam muitos milhares de palavras com as quais comunicamos, através do seu encadeamento em frases fortemente regradas (ninguém escapa às regras da sintaxe e da semântica, elas exercem-se em nós automaticamente, é aliás esse automatismo que se perde quando há ablação da área cerebral de Broca). Essas frases, encadeadas por sua vez em discursos, permitem ainda que os sentidos das palavras mais frequentes conheçam uma certa variabilidade polissémica e se aumente pois o leque de possibilidades do que queremos dizer. Esta dupla articulação (Martinet) é correlativa, por um lado da economia da nossa fonação, que só consegue dizer de forma distinta facilmente entendível algumas dezenas de sons simples, por outro da capacidade de memória cerebral, já que parece que não usamos senão 3 a 4 mil palavras, e ainda reconheceremos até 30 mil. Ora bem, como funciona esta linguagem, assim adequada à nossa anatomia? De tal maneira que, por um lado, as palavras e as outras regras da língua são comuns a todos, vêm-nos dos outros, e por isso nos entendemos, por outro lado, estas frases totalmente regradas, saiem-nos muito espontâneamente, já que raramente gaguejamos a procurar a palavra precisa, e de forma essencialmente adequada à situação aleatória de conversa ou outra em que se está. Com efeito, em que é que consiste uma conversa ou uma discussão interessante? No facto de que ela é feita a dois (ou mais), cada um pegando no que o outro acaba de dizer para lhe acrescentar, de acordo ou em contraponto, outra coisa, e que cada um dos interlocutores é surpreendido pelo que o outro diz, não sabe o que vai ser, tem pois que responder segundo o aleatório do fio da conversa, e seguindo sempre as regras da língua, para que haja entendimento. Também aqui duas leis inconciliáveis se jogam indissociavelmente: a do senso comum, que todos partilham, e a da espontaneidade das associações de ideias de cada qual, coagidos que somos, desde as aprendizagens infantis da fala, a conformarmo-nos à pertinência desse senso comum, a dissimular, do que à cabeça nos vem, o que o possa contrariar e nos traria reputação de estúpido ou de louco.
15. Se suceder que o que estou dizendo tenha para alguns um sabor a novidade, como para mim o teve, se pois o recurso a Heidegger-Derrida tiver ajudado a perceber o que biólogos e linguistas descobrem, parecendo todavia não terem ainda entendido todo o alcance de tais descobertas fabulosas, é porventura porque haja na conceptualidade que os cientistas usam algo que haja que ser corrigido, mormente no que tem a ver com a noção de causalidade mecânica e determinista que herdaram da filosofia clássica europeia, cujo campo de validade será restrito: apenas o da experimentação laboratorial. Com efeito, os muros do laboratório significam que só se podem conhecer as regras finas que os cientistas nos ensinam isolando os fenómenos a conhecer doutros factores aleatórios que lhes estão intimamente ligados na chamada realidade, no que fica fora do laboratório. O determinismo artificialmente conseguido no laboratório não se deve pois estender além dele[5]. De certa maneira, os biólogos sabem disso: vimos como a Natureza-Terra é necessariamente mistura de espécies diferentes no mesmo território, mas com a condição de cada uma só se reproduzir entre os seus indivíduos. Apesar das suas lacunas, a teoria da evolução supõe que cada espécie vem doutra espécie. Haverá pois saltos, a imensa variedade das espécies testemunhando do carácter não-determinista desses saltos (mutações, segundo os biólogos), da sua imotivação. Mas que não haja causa-mecânica-determinante não implica que não haja 'algo' (ser e não ente, em Heidegger) que dê o movimento, que motive (de motus, movimento em latim): é o que ele chamou Terra, incluindo nela tanto a vida como o inorgânico. Chamemos dom à motivação imotivada, não causal e multiplicada, isto é vinda de vários lados: como no que chamamos acontecimentos, o que significa que não há na realidade senão acontecimentos, regrados e aleatórios.
16. Digamos que há dois níveis de doação nos fenómenos da vida e da linguagem (e chegamos agora a um ponto em que o exemplo do automóvel já não nos serve). O primeiro seria constituinte, dom do ADN pelos progenitores, os quais são retirados, ficam cada vez mais de fora à medida que o novo ser vai ganhando a sua autonomia: alimentado sangue a sangue pela mãe no ventre, expulsão, alimentação pelo leite, etc. É o ADN quem garante, em última instância, se se pode dizer, essa autonomia, e ele funciona sem depender já dos progenitores, continua para além da morte deles. Mas só funciona por via do segundo nível de doação, agora da Terra como lei da selva que dá incessantemente a possibilidade da alimentação e da respiração, através de moléculas que se tornarão as moléculas da nossa própria substância: os outros que nós comemos para se tornarem nós. Mas a autonomia não será completa sem as aprendizagens de usos da nossa sociedade, entre os quais o da linguagem e da cultura. Ora, também aqueles de quem aprendemos a falar ficam de fora, mestres retirados, que poderão morrer antes de nós, esse retiro sendo condição para nos tornarmos os falantes que não éramos (sem ditadores que nos ditem ao ouvido o que dizer ou pensar). Em termos das filosofias do sujeito e da consciência, isto significa, como é óbvio, que não há sujeito falante e consciente dessa fala antes desse dom e do seu apagamento ou esquecimento estrutural. Mas também o dom se continua numa espécie de alimentação cultural, da aprendizagem permanente que recebemos de muitos lados e instâncias, às vezes até dos nossos próprios filhos ou alunos. Da mesma maneira que o ADN dado ao ovo é um ADN de adulto, também a sociedade tem uma cultura multissecular de adulto que nos é oferta.
17. Para terminar este ponto, quereria ousar uma interpretação do motivo heideggeriano do Ereignis, a partir do que nos é proposto na conferência Tempo e ser de 1962: trata-se de um (não)Acontecimento (não ôntico, mas a nível ontológico) que dá ser e tempo, isto é dá entes em sua temporalidade. Mas essa temporalidade implica estruturalmente o aleatório de acontecimentos (ônticos, agora sim) de que o Ereignis dá as regras, mas retirando-se, dissimulando a sua doação. O Ereignis seria a heteronomia dissimulada que dá autonomias, que as dá de forma não causal e multiplicada, isto é vinda de vários lados: as dos animais vivos, as das sociedades em seus usos, as dos falantes e seus psiquismos. A dissimulação absoluta dessa heteronomia é a condição das autonomias dadas. Então o Ereignis, onde me parece se ‘acabar’ o percurso do pensamento heideggeriano, seria a cena de reprodução com oscilações seguindo predominantemente as alternâncias dia / noite que permitem encontros aleatórios mais ou menos complexos, daria uma espécie de motivo fractal que poderia ser fecundo para estas várias ciências. Desde cada espécie, mas também cada ente vivo, de células organicamente feito, em seu tempo de vida, cada sociedade de humanos, cada sua instituição ou família, cada humano e sua memória, as línguas e culturas, os textos, até ao Universo inteiro e suas regras e aleatórios desde há uns 15 biliões de anos, a terra e as suas condições ecológicas para a evolução da vida, todas estas realidades são susceptíveis de serem entendidas, cada uma à sua maneira e umas envolvendo as outras, como 'cenas', (não)Acontecimentos que dão possibilidades, destinam acontecimentos aleatórios que constituem/alimentam entes em suas temporalidades. Ereignis fractais.
18. Se tiver razão em todo este arrazoado, então percebe-se que o lugar essencial do aleatório em toda a realidade desde sempre, desde que haja tempo, espaço e matéria (e Prigogine pensou, com outros, uma alternativa ao anti-físico Big-bang, em que esse momento inicial também sucedeu por acaso), o lugar essencial do aleatório em toda a realidade, dizia, implica o princípio da relatividade: a impossibilidade, ou a inutilidade, de seja que instância fôr que possa centrar ou sequer arbitrar este jogo imenso, regulado até ao infinitamente pequeno dos átomos, com as suas forças nucleares ligando protões e neutrões e as suas forças electro-magéticas ligando electrões, aqueles retirados das órbitas destes, que permitem as transformações químicas de moléculas, os fenómenos da electricidade e do magnetismo e, de forma geral, os fenómenos aleatórios da gravitação. Mas por outro lado, as descobertas que aqui evoquei sumariamente e outras encontraram mecanismos de reprodução estável e regrada, de heteronomias que dão autonomias, e em tal estabilidade consiste a verdade desses mecanismos, dessas cenas, desses Ereignis.
A verdade dos usos quotidianos
19. O que é a verdade? A esta pergunta de Pilatos parece hoje o relativismo impedir qualquer resposta, de tal forma o dogmatismo a terá tornado irrespirável para o pensamento. Há que creditar Heidegger de não ter cedido a essa facilidade e de ter reformulado o campo dessa questão duma forma inédita, como abertura e dissimulação, e cuja fecundidade me proponho sugerir na segunda parte deste texto, começando por a ilustrar por exemplos. Desde o início de Sein und Zeit que ele propõe não falar mais de ‘sujeito’, ‘alma’, ‘consciência’, ‘espírito’[6], no sentido em que tais termos implicam sempre, na tradição ocidental, uma interioridade fundadora. O Dasein é o-aí, estruturalmente aberto para o seu fora: os outros humanos a quem fala, os comportamentos dos usos do habitar quotidiano.
20. Ele é, onticamente, este mundo em que está aberto, este ‘aí’, aqui-e-agora. Determinismo, fatalismo? Não, porque justamente ele não pode ser este ‘aí’, no exterior, senão por já ter sido outros ‘aí’ e ter ganho assim uma pré-compreensão deste ‘aí’. O meu exemplo será o duma cozinha de gente atarefada em véspera dum dia de festa. Não se trata de marcianos caídos do céu, cada Dasein trabalha a partir do que já sabe, das receitas que conhece, etc.: as suas palavras e comportamentos são a sua abertura. E respondem a uma outra abertura. Com efeito, para que a verdade duma coisa seja, se desvele a um humano, é necessário o acordo mútuo duma dupla abertura do Ser (Terra-Mundo): ele tanto dá a coisa, dada aí, como o humano, aí no seu comportamento em relação à coisa. Ao nível das aberturas dos próprios entes, quando por exemplo se faz uma sopa de legumes: as ‘pommes-de-terre’ guardam no seu nome francês que a terra as deu, e também a água (uma fonte, é a terra que se abre), as cenouras (a terra as fez crescer e abriu-se desse crescimento), o sal (depositou-se em salinas abertas), o azeite pressionado das azeitonas (as oliveiras como as cenouras, as azeitonas brotam das flores que se abriram), tudo isso é metido numa grande panela aberta (antes de se a tapar), depois abre-se o fogão colocado na abertura da chaminé, saiem dele o gás e o lume, a cabeça do fósforo abre-se numa chama, etc. E o cozinheiro (sou eu, todas as semanas faço uma pelo menos) tem os olhos bem abertos, é claro, olhando cada gesto seu, as mãos, para pegar em cada cenoura e na faca ou para acender o lume, não podem ficar fechadas, os braços têm que se abrir para se pegar na panela com as duas mãos, etc. Há que saber abri-los, os olhos e as mãos, de maneira a deixar ser o que se recebe, batata ou panela ou fogo, deixá-los ser segundo o seu ser, tal como são (segundo leis empíricas, diriam os cientistas): coisa que se aprende e que pede habilidade, uns têm-na mais, outros podem ser mais azelhas. Falar a outro implica também que, de olhos abertos, se lhe dirija a palavra por aberturas e encerramentos muito seguidos da garganta e da boca, que se escute sem se fechar os ouvidos, que um sorriso abra o rosto ou que, se um ar zangado o fecha, este fechamento seja ainda uma espécie de abertura, ainda que zangada; para se apertar as mãos, houve que as abrir primeiro, são os braços abertos que envolvem o pescoço do outro num abraço, assim como os lábios se abrem para beijar. Todas estas aberturas ônticas são dadas pelo Ser como possibilidades, e para que tais possibilidades não sejam determinismos, obrigações, a própria doação se dissimula, se esconde, se vela. Desvelar permanecendo velado, é a alêtheia, a verdade em grego heideggeriano. Que na nossa língua, o cuidado dos usos, quando é feito com abertura terna ao outro, se chame desvelo, parece indicar que o desvelamento como verdade também tem a ver com os usos quotidianos, e não apenas com o discurso que pensa.
21. A abertura do cozinheiro supõe nele portanto uma pré-compreensão, recebida dos seus percursos passados, são os pressupostos, os preconceitos, e não é pejorativo, tudo o que se aprendeu no passado, que neste Dasein ‘abriram’ o cozinheiro, o falante que explica uma receita, fez dele alguém capaz de fazer uma sopa de legumes, com um saber que no seio da abertura lhe permite um certo recuo, uma certa facilidade hábil, uma como que descontração, retração digamos, que é também um ‘poder’ escondido sobre o ‘aí’, sobre o mundo (culinário), trata-se de possibilidades de agir diferentes para cada um, as suas capacidades, hábitos, talento, saber-fazer ganho ao longo do tempo. O possível é o futuro aberto na finitude do nosso mundo-aí e dos seus usos, finitude das nossas capacidades, possibilidades de compreender e de usar. Aberto pelo Ser (o Mundo-terra), de que cada Dasein é, ele também, um dos frutos temporais: já que nascido e mortal, a vida jogando-nos (é preciso comer, fazer isto e aquilo, repousar: é a este imperativo que responde o cuidado pelos usos) num tempo que nunca mais volta atrás, finito na sua abertura ao que chamamos porvir. Finitude ou liberdade habitante - com os outros, em usos - na terra que os deu e sempre os reitera, finitude entre nascimento e morte, liberdade de escolher segundo os seus possíveis: eis o que o Ser (terra-mundo) dá como temporal e, doando, esconde-se, esconde o seu poder doador como condição da própria liberdade dada.
22. Se está aqui, como creio firmemente, a descoberta inestimável de Heidegger, o não-determinismo no coração da liberdade, é óbvio que é um escândalo intelectual que ele tenha aderido ao nazismo (intelectual, antes de o ser político ou ético, ele foi nazi em 33), uma vez que o coração do seu pensamento, já em 1927, é anti-nazi, sem relação significativa nem ao racismo nem ao totalitarismo. É quase impensável que o pensador não tenha estado à altura política e ética do seu pensamento, é a sua finitude (como quando se fala em ‘fraquezas humanas’). Seja dito de passagem que não sei de ninguém que, filho de famílias judaicas e o que melhor compreendeu Heidegger, porque o seguiu para além do seu pensamento, não sei de ninguém que mais do que Derrida deva lamentar esta adesão ao nazismo. E no entanto, talvez não seja tão má coisa assim para os filósofos que, reclamando-se de Heidegger, tenham em vista uma qualquer intervenção de pensamento no não-filosófico (política, ciências, compreensão da civilização actual...), o saberem que tão grave mácula manchou, desde o início, a intervenção do pensamento heideggeriano no não-filosófico. Que não nos esqueçamos, mais longe no passado, dos laços indissolúveis da tradição filosófica às escravaturas grega e europeia, à Inquisição, ao empobrecimento produzido pelo Ocidente nos países sovietizados e colonizados.
Breve história da verdade ocidental: os Gregos
23. Esta verdade dos usos sociais dos humanos nas suas unidades locais de habitação em qualquer tipo de sociedade, das tribais às nossas, é dita em receitas recebidas dos antepassados (nós saibamos ou não quem as inventou) e repetidas tais quais, uma vez que se tem dela os mesmos efeitos - de ‘bênção’ nas tradições, de ‘produtividade’ na modernidade - da habitação na terra, efeitos nunca garantidos, já que os usos podem sempre falhar (azelhices, falências, doenças, desastres). É esta a verdade de ‘partida’, digamos, a do cuidado ou desvelo de todos os usos de tipo empírico, nomeadamente aqueles de que as mulheres foram tradicionalmente encarregadas, os usos dos corpos, da alimentação, da limpeza, da doença. De forma necessariamente elíptica, digamos que a primeira grande ruptura histórica com esta economia quotidiana de desvelamento da verdade terá sido consequência da invenção da escrita, a irrupção da primeira grande literatura: Zaratustra na Pérsia (700-630), Lao-Tseu (640-517) e Confúcio (551-479) na China, Buda na Índia (543-479), os Profetas em Israel (s. VIII-VI), também Heraclito, Parménides, Pitágoras, Sócrates na Grécia (s. VI-V). Que faz ela? Abre um novo contexto social, de novos usos e de novos desejos, na margem dos usos das casas e dos seus desejos de reprodução. O que há de comum a estas literaturas diversas poderá ser dito assim: buscam intensidades do viver que a reprodução das casas e dos seus usos não satisfazem já; em linguagem tradicional, são escolas de exercício espiritual. Mas não 'religiosa', que implica o sagrado ancestral e diz respeito ao todo social (embora daqui se venham a abrir futuras religiões, sem dúvida); trata-se, antes pelo contrário, de aventuras de experimentação à margem das sociedades estabelecidas, que abandonam os rituais e mitos destas (Sócrates e Jesus, por exemplo de margens espirituais cujas escritas tiveram um alcance civilizacional imenso, foram executados em nome da religião), à maneira, entre nós, de um novo pensamento, poético, filosófico, científico, que escave quase em silêncio um novo caminho: escolas de exercícios espirituais, elas estão na génese do que chamamos cultura, relativa a antepassados históricos e nomeados (e não o sagrado holístico, de todos os antepassados). A oposição ocidental entre a alma e o corpo, não sendo válida sem mais para as tradições asiáticas, permitirá em todo o caso visualizar o que está em jogo em todas elas: o deslocamento dos prazeres da casa (ou do corpo) para os da alma. Podemos supôr que elas encontraram nos seus discursos formas de enunciar as ‘verdades’ outras que buscavam, que o nome latino de ‘espirituais’ melhor ou pior designa. Suponhamos que, desfeita parcialmente a relação delas com o mundo sagrado dos usos ancestrais, essas gentes se encontravam face a uma como que ‘transcendência’ desligada de tais usos e dos desejos que lhes são conaturais (de comer e beber bem, de luxo, poder e ostentação), que eles buscavam novos usos austeros adequados a esse mundo espiritual e a sua transmissão além da morte a discípulos.
24. Creio que se poderá encontrar esta problemática em Parménides que teria chamado ‘ser’ a esta ‘transcendência’ à margem da sociedade de casas grega e ‘não-ser’ à corruptibilidade que se mistura ao ser nos usos e desejos abandonados. Em linguagem cristã, o ‘ser’ seria a bênção separada de toda a maldição, inclusive a da morte, a forte motivação espiritual seria a busca dessa pureza do Bem, impossível no mundo das casas e das suas guerras onde bem e mal andam sempre misturados. A grande audácia de Platão em relação a este antepassado eleata, muito antes do parricídio no Sofista, terá sido a de, guardando a ‘passagem espiritual’, voltar todavia atrás e ousar pensar o corruptível ou sensível, a de abrir o projecto do seu conhecimento dentro do projecto de repensar a própria cidade: referir os entes dum mesmo eidos, aspecto, viso, a um eidos eterno, imutável, de que esses entes seriam uma cópia, uma reprodução mimética. A leitura heideggeriana do apólogo da caverna republicana[7] revelaria esta nova versão da ‘passagem espiritual’: do registo da verdade-alêtheia dos usos quotidiano (os encadeados) ao da verdade-idea da Academia (os que sairam para o ar livre e para a luz do sol). Trata-se da passagem à verdade dos comportamentos escolares de leitura e escrita gnosiológica, na sequência da ruptura com os usos quotidianos. Nesses comportamentos escolares e solares de conhecimento intelectual e espiritual, qualquer ente é arrancado ao seu contexto de uso e portanto à sua temporalidade contingente (entre geração e corrupção) para receber o brilho, a luz inteligível vinda da sua ideia eterna, a qual aliás também releva da luz da Ideia de Bem (ou Divindade, to théon), Causa de tudo o que é bom, adequado. Esta adequação iluminadora implicará a alteração profunda da concepção de verdade: já não o velamento (do Ser doador) e o desvelamento (do comportamento ou uso), mas a exactidão, de inspiração geométrica sem dúvida, pois que procurar a ‘medida’ mais exacta possível era característica do pensamento do geómetra. As mãos que desenham e escrevem sendo ignoradas, estes comportamentos escolares são supostos relevarem unicamente dos olhos. Sem dúvida Aristóteles corrige Platão, traz de volta o eidos a cada ente (ousia: substância-e-essência), os vivos nomeadamente sendo compreendidos na sua autonomia, mas sem deixarem o paradigma intemporal do texto gnosiológico das definições e argumentações: a temporalidade será designada por ele como ‘acidental’ (como acontecimento), e acidental também o ‘lugar’ de qualquer coisa (ainda não há ‘espaço’), e essa será a condição da futura universalidade do conhecimento, da representação europeia, da ‘ideia’ de algo fora de qualquer contexto.
25. Longo processo este, em que a filosofia, tornada ‘ancilla’ da teologia, recebe marcas desta. A Divindade longínqua e inacessível de Platão e Aristóteles, não conhecida e não conhecedora do mundo sub-lunar, misturou-se ao Deus bíblico criador e fonte de verdade, que ele mesmo revela intervindo na história, um Deus que conhece cada coisa singular e cada coração humano; é em nome deste conhecimento divino dos singulares que, na querela nominalista, se separará essência e substância, retirando aos entes vivos os últimos vestígios da autonomia de outrora, e se abrirá assim a porta à representação moderna, à análise e à síntese, e portanto também à física, em que a inércia dos corpos será uma tese capital. O que teria sido inconcebível para Aristóteles: foi necessário que entretanto o ‘sujeito’ científico se tenha ‘representado’ como um conhecedor ‘à semelhança’ de Deus, colocado como se estivesse fora do espaço e do tempo, podendo pois medir estes (transcendentalidade do sujeito kantiano, inclusive do seu entendimento e razão às formas do tempo e do espaço). Com efeito, foi do lado das ciências que houve uma modificação profunda da concepção da verdade, que se torna doravante ‘representativa’, digamos, entre sujeito e objecto; foram elas que levaram as filosofias europeias do sujeito a reformular o paradigma ontoteológico, a razão universal humana e as suas representações despedindo Deus mas ocupando-lhe o lugar. Nietzsche terá sido o primeiro a compreendê-lo.
Breve história da verdade ocidental: os Europeus
26. Julgo que se pode dizer que houve duas grandes crises europeias da verdade, problematizadas nos dois epistemas que Michel Foucault nos deu a ler em Les Mots et les Choses: o clássico, em torno da representação, e o moderno, saído da descoberta do tempo irreversível. Em filosofia, foi a incorporação da Física de Newton na filosofia de Kant que deu acabamento à primeira crise, aberta pelo nominalismo de Occam; foram Hegel e Nietzsche que abriram a segunda, que está acabando na convergência da fenomenologia de Husserl a Derrida com algumas ciências principais do sec. XX, como estou tentando aqui sugerir. Ao cortar a relação entre pensamento e linguagem e ao subordinar os nomes das línguas aos nomes mentais, Occam abriu com efeito a contestação europeia de Aristóteles - que, de Tomás de Aquino a Galileu, era dito o Filósofo - e da teologia cristã que ele cautionava (o tomismo estruturou durante vários séculos o ensino das escolas europeias): as ‘essências’, separadas das ‘substâncias’ e portanto também dos seus ‘acidentes’, podem tornar-se representações universais, não apenas fora-do-contexto - essa possibilidade fora-lhe dada já pela invenção filosófica da definição na escola socrática - mas também e sobretudo fora do texto, fora da linguagem: o ‘conceito’ liberto do ‘nome’ (do ‘significante’ em terminologia de Saussure) é a mais importante representação mental. Adequada portanto aos pensamentos matemáticos e físicos, Platão o geómetra tendo sido o aliado desta exclusão de Aristóteles o biólogo. Por outro lado, o Renascimento, ao multiplicar as formas de inscrição (livros impressos, perspectiva, desenhos de máquinas e de anatomia, cartas geográficas, etc.), estabelecera uma nova relação entre os olhos e as mãos onde o laboratório, a grande novidade das ciências europeias, se instalará: neles não só se meterá as mãos à obra experimental do conhecimento, além dos olhos, mas também se usarão instrumentos de medida, de experimentação, de dissecação, de análise, e para tudo isto se representará em sínteses teóricas a realidade exterior ao laboratório, para poder testar, por hipóteses, por ficções, cada fragmento da realidade estudado no laboratório. Estes novos comportamentos de conhecimento trouxeram consigo uma longa reflexão sobre a verdade e os seus critérios, sobre a lógica e os seus argumentos, a intuição, a indução e a dedução, a evidência e as provas, etc., mas donde paradoxalmente as mãos e os instrumentos - o que teria impedido o jogo ingénuo das representações - estavam ausentes, compreendidos sem dúvida como acidental, correlato do narrativo experimental, do empírico, do que se deixava cair na hora da teoria e da síntese universalizante por sujeitos em posição monoteista. É óbvio que as coisas não poderiam ter-se passado de outra maneira. O meu texto sobre o Jogo das Ciências tenta mostrar contudo como dois tipos de ‘démarche’, científica por um lado, filosófica por outro, convergiram ao longo do século XX para conseguir ultrapassar este impasse representativo-contemplativo: sem mãos que toquem o sensível, só olhos para o inteligível, é uma maneira de caracterizar a metafísica - da verdade herdada de Platão e Aristóteles. Como se sabe, a razão pura de Kant não tem mãos.
27. Venhamos então à outra grande crise ocidental da verdade. Hegel, transportado pelo movimento histórico da revolução industrial mas resistindo-lhe (não soube pensar uma máquina que funcionasse[8], o nosso automóvel), ultrapassa Kant pela introdução da história no projecto do conhecimento, um pouco como Aristóteles outrora ultrapassou Platão pela introdução da physis e da noção de auto-movimento dos vivos. Ora, a história sendo o reino do acidental, da contingência, do relativo em suma, Hegel não poude levar o seu projecto a bom termo sem o absolutizar, sustendo-o sobre a teologia cristã que Kant tinha abandonado. Por outro lado, novas ciências - elas também sem relação explícita ao cristianismo do passado - constituem os seus paradigmas em que a temporalidade é axial, a biologia evolucionista, a linguística comparatista, a economia política aberta ao progresso, à reforma e à revolução, relançam a crise para além de Hegel. Creio que se pode encontrar num texto inacabado de Nietzsche, Sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral (1873), uma espécie de reduplicação do gesto crítico de Occam acima evocado como abertura da primeira crise, mas o gesto sendo agora conduzido com outra audácia, já que pondo a questão da própria palavra ou significante, de que ele descobre a imotivação das suas primeiras impressões intuitivas - descreve-as, em linguagem empirista, como uma dupla metaforicidade: transporte da coisa-excitando-o-nervo à imagem e desta ao som-tornado-palavra - e, por via de consequência, a imotivação do seu significado (folha, honestidade) e depois dos conceitos científicos. Ora, é a maneira como se usa longamente as palavras e se esquece a sua origem imotivada, diz ele, que torna possível a verdade como uso social, é essa verdade que permite “[...] qualquer coisa que nunca teria podido suceder no meio das primeiras impressões intuitivas: construir uma ordem piramidal segundo castas e graus, criar um novo mundo de leis, privilégios, subordinações, delimitações, mundo que se opõe doravante ao outro mundo, o das primeiras impressões, como sendo o que há de mais firme, mais geral, mais conhecido, mais humano e, por isso, como o que é regulador e imperativo. [Ora, diante deste] grande edifício dos conceitos [... d] este jogo de dados dos conceitos [...] há que admirar o homem por ser um poderoso génio de arquitectura que conseguiu erigir, sobre fundamentos móveis e como sobre água corrente, uma catedral conceptual infinitamente complicada: na verdade, para encontrar um ponto de apoio em tais fundamentos, é preciso que seja uma construção feita como que de fios de aranha, suficientemente fina para ser transportada com a onda, suficientemente sólida para não ser dispersa ao menor sôpro de vento. [...] Há aqui muito que admirar, mas não pelo seu instinto de verdade, nem pelo puro conhecimento das coisas [...]”[9]. O “jogo de dados dos conceitos”, a exibição do jogo imotivado da linguagem, inverte a representação que Occam havia outrora tornado possível. Nietzsche é o primeiro grande filósofo da relatividade (que ele dirá perspectivismo, sem evitar o relativismo ou niilismo). A crise será o desafio a pensar o tempo da história e o jogo do texto dum pensamento que não releve antes de mais do ‘eu’, da consciência. Saussure sistematizará a linguística em torno do motivo da imotivação e do carácter diferencial da significante (comparado justamente ao jogo de xadrez), Freud psicanalisará o inconsciente em torno do jogo associativo do discurso dos sonhadores. Heidegger, parmediano, pensará o discurso-pensamento como o mesmo que o ser dos entes ditos-pensados. Estes três pensadores obrigam assim a regressar ao texto como lugar de verdade, e mesmo ao contexto da sua escrita, levando o gnoseológico filosófico a recordar-se do seu laço escondido aos textos narrativos e discursivos dos usos quotidianos. E foi assim que Heidegger retornou aos Gregos, mais precisamente, retornou a Aristóteles e à sua autonomia dos vivos, mas levando consigo a temporalidade como intrínseca à realidade e não mais acidental; com efeito, o motivo da cena-Ereignis reencontra a mesmidade da ousia aristotélica mas sem se opôr ao acidental: o jogo dos retiros ou retrações inverte a ousia, abre-a para fora do seu ‘auto’ e escava nela um lugar estrutural para o aleatório, o da sua relação aos outros.
Acabamento e ultrapassagem da metafísica
28. Ora, com a temporalidade, Heidegger traz também a relatividade, e é onde a modernidade acaba e ultrapassa a metafísica: o ser (a physis, a natureza de Aristóteles, a Terra) e o tempo (a história do Mundo pensada-escrita), os Gregos e os Hebreus. É Derrida quem tem em conta todos estes movimentos e outros ainda (como a crítica marxista de Hegel, por exemplo importante), quem tem em conta o jogo da linguagem, da diferença e do tempo, mas sem esquecer Husserl, a sua epoché, a sua preocupação com as ciências europeias em crise epistemológica, que não perde portanto Platão e a distância do pensamento como possibilidade de ruptura (é isso um laboratório de ciência: supõe a redução fenomenológica e a sua quase-transcendentalidade), Derrida que sabe melhor do que ninguém que não se pode pensar nem conhecer senão em texto e contexto (“crescente consciência da dificuldade de pensar”, dizia dele Lévinas), apenas ele tornará enfim possível que a fieira fenomenológica de Husserl-Heidegger chegue a bom termo na direcção da sua convergência com a das ciências evocadas.
29. Eis como eu resumiria essa chegada a bom termo. Husserl encetou a ruptura com a separação entre pensamento e realidade, ou seja, entre o sujeito e o objecto do comportamento escolar de conhecimento, que enfiava a filosofia-das-ciências nas questões sem saída de metodologia e das relações (de exterioridade) entre teoria e experiência: a intencionalidade foi um passo decisivo para o retorno à mesmidade parmediana pensamento-ser-discurso, mas falhou este último; a fenomenologia, sem conseguir largar a representação (a idealidade colocada antes do signo), guardando o laço ao privilégio (platónico) da teoria matemática, pensa essa mesmidade como repetição estrita, destacada dos pressupostos metafísicos de existência empírica (redução do substancialismo). Foi esse laço que Heidegger cortou com nitidez: segundo ele, as ciências e a filosofia ocidental, sua aliada, permanecem derivadas, segundas, em relação ao discurso do Ser (dizendo respeito aos usos quotidianos do Mundo e da Terra), o qual Ser dá todos os entes temporais, reservando-se ele para que a finitude deles possa ser; a redução fenomenológica inverter-se-á, se se pode dizer, são todos os pressupostos substancialistas da tradição metafísica que serão doravante a destruir para se reencontrar o ser como diferença (para com os entes) e tempo, portanto como retiro e destinação; é a poesia que tem agora o privilégio de ser a vizinha do pensamento do Ser, o percurso heideggeriano acabando-se pelo motivo do Ereignis e do seu jogo, que permite compreender o conceito de cena científica proposto para as espécies biológicas e as línguas humanas. Derrida retoma a herança destes seus dois antepassados, deslocando o mesmo da redução husserliana das idealidades para o significante (saussuriano e quase nietzschiano) como diferença que se repete num jogo (polémico porque energético) em que o outro é primordial, a sua ‘trace’ reservada inscrevendo-se para que o mesmo seja espaçado-temporalizado (constituido ou alterado), segundo uma intriga ligada a duas leis, simultaneamente inconciliáveis e indissociáveis. Aqui já não há privilégios, as ciências têm o seu lugar tal como a grande literatura moderna marginal, a repetição husserliana juntando-se à diferença heideggeriana.
30. Por seu lado, a caminhada de algumas ciências na direcção desta convergência com a fenomenologia poderia ser dita assim. Cada uma delas encontrou uma nova cena entrópica, aberta por um duplo retiro, estrito e alargado, com uma nova ‘lógica’ que procurei exemplificar com o automóvel para a biologia e a linguística estrutural: por um lado estruturada e dissipativa, que portanto se repete, isto é, se reproduz em circunstâncias aleatórias, e por outro lado oscilando entre pequenas repetições automáticas com poupança energética máxima e as intensidades dos acontecimentos que resultam dos encontros com o outro, levando a entropia “até ao fim do que eles podem”, como diria o Nietzsche de Deleuze[10]. Esta nova lógica é a de cada cena científica, de cada uma das suas espécies, de cada um dos seus indivíduos, de cada célula, das sociedades, dos seus sistemas de useiros, de cada uso, das línguas, das culturas, de cada texto: haveria algo de ‘fractal’ neste motivo da ‘cena’ ou Ereignis, que se desdobra em qualquer escala segundo uma mesma configuração, sempre segundo o aleatório da lei da selva ou do conflito entre falantes, uma vez que não há reprodução do mesmo sem o outro (que se come, se repete, se cita, com quem se sonha). Não há nada de absoluto aqui: a “verdade” de cada cena, espéce, indivíduo, sociedade, língua e cultura, é a da sua reprodução através de outrem, a da sua afirmação pelo adiamento ou diferança da sua morte, enquanto se a consegue e nas condições aleatórias desse conseguir que passa pela troca ou conflito com o outro. Com efeito, é a reprodução conseguida no longo tempo - selecionada na evolução (Darwin) e vale bem além da biologia e das suas regras -, na flecha irreversível do tempo (Prigogine), é essa reprodução que mostra a verdade de cada cena, verdade essa que a ciência demonstra quando encontra as suas molas retiradas. Esta verdade, se se me seguiu, é a heteronomia dada (que se esconde, dissimula) como autonomia ou abertura de cada indivíduo: é alêtheia, desvelamento que se vela, que “gosta de se esconder” (Heraclito, fragm. 123). “A verdade pertence, enquanto alêtheia, ao próprio ser: physis é alêtheia, desclosão no aberto, e por essa razão gosta de se esconder” (Heidegger, Questions II, p. 276).
Uma verdade relativa mas estável no futuro
31. Ora, como essas ciências também são instituições sociais, segundo a teoria dos paradigmas de Kuhn, é mais do que provável que, na reprodução social das ciências, estas descobertas se mantenham estáveis, isto é, verdadeiras no futuro próximo, ainda que continuando as investigações dos detalhes de sistemas indefinidamente complexos, é claro, e claro também que sendo objecto de diversidade e conflito de interpretações: exemplo célebre é o que sucedeu à física de Newton com o surgimento da da relatividade, isto é, sem que ela tenha deixado de ser verdadeira, já que nem a relatividade nem a mecânica quântica nem a física das partículas são possíveis sem instrumentos construidos a partir da física de Newton. Digamos que me parece certo que estas grandes descobertas do século XX não mais deixarão de fazer parte da verdade da civilização ocidental, enquanto esta durar. É da estabilidade desta, hélas! que há mais razões para duvidar.
32. Se nos recordarmos de que Husserl foi essencialmente motivado pelo desejo de unificação do campo das ciências, o que tentei sugerir implicará que o trabalho dos seus dois discípulos dissidentes aqui invocados realiza, inesperadamente por certo, esse desejo. Poderemos então pensar que a convergência entre o trabalho da fieira filosófica Husserl-Heidegger-Derrida cobrindo todo o século XX (o primeiro texto de fenomenologia, as Investigações lógicas, foi publicado em 1900) e o de algumas das principais ciências do mesmo século, essa convergência, supondo um imenso aleatório sem dúvida, responderá a uma forte destinação escondida na história do Ocidente greco-europeu, aquela que Heidegger sempre obstinadamente procurou. Há uma ideia muito corrente, até em espíritos pouco propensos ao relativismo, segundo a qual as verdades científicas são provisórias, são erros adiados; julgo que a honra de alguns dos maiores cientistas e pensadores deste tão cruel e martirizado século XX será a de terem desmentido essa ideia corrente, tão contrária aliás à epopeia de paixão pela verdade científica que atravessou a modernidade europeia desde os seus alvores com Copérnico, Kepler, Galileu e Newton. Um outro exemplo, sem dúvida pouco conhecido, da estabilidade científica dum trabalho de dois séculos é o da linguística comparada, fonologia e sintaxe, das línguas indo-europeias, iniciada com Bopp (1816) e que Dumézil, último elo da Escola de Paris (Bréal, Saussure, Meillet, Benveniste e Dumézil), completou com a descoberta da lógica tri-funcional da estrutura da sua mitologia[11].
33. Será entendido como uma provocação, se eu terminar dizendo que o que disse aqui, neste texto, é verdade? Que não é apenas a 'minha' verdade, como muitas vezes se pretende, sem se sair do relativismo subjectivista? Ou esta pretensão será um dogmatismo? Entre dogmatismo e relativismo que alternativa há? Tudo é relativo: esta descoberta moderna, que já desponta na teoria do movimento de Galileu, antes de ter sido explicitada por Einstein, e que tentei aqui mostrar ser a de outras ciências também, esta descoberta moderna é o que está a assombrar a modernidade, nos dois sentidos do termo, o do espanto e o do terror, modernidade que não deixa de se referir, negando-o embora, ao paradigma do absoluto, e é isso o niilismo, o relativismo. Os valores metafísicos, a alma grega e o coração hebraico separados do corpo, da casa e da terra pelas escritas fundadoras, a platónica e a bíblica, essas ficções que nos foram dadas como eternas, revelam-se hoje históricas, acontecimentos de outrora, experiências espirituais e intelectuais muito intensas; será a própria modernidade, grávida da técnica saída das ciências, que está a acabar a metafísica, a cumpri-la - o que implica sem dúvida que a técnica continuará a necessitar de metafísica para continuar a reproduzir-se - mas também a acabar com ela, a desconstruir-se a si própria no que Nietzsche chamou a 'morte de Deus' e dos seus valores: tudo é histórico e relativo, diz a modernidade. Ou seja, tudo sendo histórico, nada pode ser compreendido senão no seu contexto, nenhum contexto prevalecendo, de direito, sobre os outros. E eu, que não sou alma nem sujeito transcendental, também não sou exterior ao contexto histórico que me instituiu como falante e pensante, o que torna os outros contextos relativos ao meu, e por isso mesmo me coloca numa situação singular. Por um lado, não posso pensar senão com palavras dos outros, a partir de outros textos que li, de pensamentos que escutei; por outro lado, não posso pensar sem ter consciência de pensar pela minha cabeça, sem antepassados. Eu não posso manter simultaneamente estas duas afirmações: "tudo o que penso, e antes de mais as minhas palavras, vem-me de outros" e "eu penso pela minha cabeça, não dissimulo, não minto, não estou louco". Esta, é a afirmação da minha própria consciência, o 'cogito' que Descartes colocou no fundamento do seu pensamento; aquela, que refuta este fundamento cartesiano, só pode ser dita tomando distância em relação ao 'eu penso', só pode ser dita na terceira pessoa. Estas duas afirmações, inconciliáveis à minha consciência, são fenomenologicamente indissociáveis: são o duplo laço, o double bind, que me instituiu como falante e aprendiz do saber dos adultos do meu tempo. Trata-se justamente do retiro heideggeriano: se, quando eu falasse, tivesse consciência de que outros falavam na minha voz, não poderia falar, estaria alucinado, louco. É preciso que aqueles que me deram a fala, quer voz, quer discurso, aqueles que me a continuam a dar, estejam retirados, desapareçam, se dissimulem absolutamente, para que eu seja falante e pensante. O que não me impede, é claro, de ter a experiência que Nietzsche formulou assim: "um pensamento vem quando 'ele' quer e não quando 'eu' quero" (Para além do Bem e do Mal, § 17). Foi a força inaudita de experiências assim que levaram Sócrates e os outros filósofos, e também os profetas bíblicos, a referirem a sua alma ou palavra a uma instância divina: como poderiam eles ter recebido tão inaudita novidade dos seus mestres e antepassados?
34. O contexto ou paradigma da minha fala e acção com outros implica constitutivamente critérios históricos de verdade, herdados, mas também reavaliados parcialmente (é por exemplo o que estou tentando aqui). Só a partir desses critérios é que eu posso falar, isto é, afirmar a verdade da minha fala, do que escrevo, do meu pensamento, por vezes mesmo contra a verdade dos mestres e autores que me deram ao pensar; por outra parte, só em outro momento de mim, a uma certa distância, posso reconhecer essa verdade como histórica, com origem nesses mesmos mestres e autores, e portanto relativa, segundo os contextos. Estranha verdade, que tem tanto em conta a necessidade das regras que os laboratórios científicos descobrem com muito trabalho como o aleatório dos encontros com o outro sem os quais a (verdadeira) reprodução não se faz. Ora, esta verdade que me vem da história, que não é absoluta, em que é que ela merece o nome de verdade? Eu diria, e seria a minha última invocação da lição de Heidegger-Derrida, que é a verdade que, desde a Idade Média, desde antes de a Europa se constituir, se veio a inscrever na semântica das nossas línguas, como força-e-sentido e por força-e-sentido das grandes obras (de pequenas também) que fizeram/desfizeram a nossa civilização monoteista ocidental, a qual continua a transformar-se em vagas oscilantes, por crises cíclicas e recomeços de outros ciclos que repetem e alteram os anteriores, é a verdade estável / instável da sua incessante reconstrução / desconstrução.
[1] Na segunda metade do século V, segundo E. A. Havelock, The Literate Revolution in Greece And its Cultural Consequences, 1982, Princeton, e The Muse Learns to Write, 1986, Yale, W. J. Ong, Orality and Literacy, 1982, Londres and New York, citados por J. Trindade dos Santos, Antes de Sócrates, 1992, Gradiva, p. 24.
[2] Na medida em que a noção de movimento (bem diferente entre eles sem dúvida, como diferentes são a nossa biologia e a nossa física) está no eixo dos seus sistemas (ver o Manifesto, § 59-60, no outro blogue).
[3] [Quanto às ciências das sociedades, as grandes descobertas são as de Lévi-Strauss, dizendo respeito à estruturação do parentesco das sociedades tribais em torno do interdito do incesto e da consequente exogamia, sociedades essas que assim se tecem entre linhagens patriarcais (em geral) que a cada geração se alteram pelo acolhimento de uma mulher de uma outra linhagem, assim a mesmidade de cada uma, ao se alterar, se articulando com o conjunto das outras linhagens para tecerem o mesmo social, com os mesmos antepassados e mitos. Estaremos ainda à espera que a história e a sociologia sejam capazes de se reelaborarem em consonância com a antropologia, para que se chegue a um conceito de sociedade e dos seus mecanismos de transformação que seja válido universalmente. O quarto tipo de ciência do século XX que haveria que invocar aqui, iniciada aliás pela publicação, no ano mesmo de 1900, dum dos mais fabulosos "livros de filosofia" que houve no século, a Interpretação dos sonhos, de Freud, a psicanálise, tem um estatuto científico muito especial e controverso. Ela tem o interesse por um lado de atravessar os domínios das outras três invocadas: parte do discurso do paciente e sem nunca abandonar o terreno da linguagem, dá conta da estruturação do psiquismo sob a alavanca, digamos, do eixo social que é o interdito do incesto, e vai, através duma teoria das pulsões, encontrar a sexualidade que a evolução inventou precocemente, e com ela o nascimento e a morte, o indivíduo separado dos seus progenitores, as condições da aprendizagem: será de espantar que seja destes dramas que o psiquismo inconsciente se tece? Ao mesmo tempo que a psicanálise assim articula três grandes domínios científicos, ela descobre-nos como o nosso psíquico estrutura a sua identidade a partir das relações aleatórias com os nossos familiares e próximos, como os nossos sonhos revelam que essa identidade se compõe de "condensações e deslocamentos" das imagens dos outros, como ela se conquista gradualmente, não a partir dum crescimento interno, como se acreditava, mas duma ruptura progressiva e nunca acabada com a cena do teatro familiar em que o nascimento nos inseriu violentamente: o interdito do incesto, lei essencial da sociedade, é o que provoca essa ruptura, e desse recalcamento e do super-ego das leis morais resulta o motor essencial do psiquismo, da sua identidade, da sua lei de autonomia nas relações aleatórias com os outros. (Foram leituras de Freud e de Hegel que permitiram a Derrida formular o 'double bind' das leis inconciliáveis de que será questão adiante.)]
[4] Imperfeita, visto que há acidentes, avarias, engarrafamentos, zangas, como noutros domínios há doenças, fomes, injustiças.
[5] Como se o cientista fosse um discípulo atrasado da absurda predestinação de Santo Agostinho.
[6] Ser e tempo, § 10. O ‘espírito’ voltará ao discurso heideggeriano, Derrida traçou-lhe a história que passa pela adesão ao nazismo, em De l'esprit.
[7] “La doctrine de Platon sur la vérité”, Questions II, Gallimard, 1968, trad. A. Préau.
[8] Derrida, “Le puits et la pyramide”, Marges - De la philosophie, 1972, Minuit, p. 126.
[9] Nietzsche, “Introduction théorétique sur la vérité et le mensonge au sens extra-moral”(1873), in Le Livre du philosophe, (trad. A. K. Marietti), ed. bilingue Aubier Flammarion, 1969, pp.185-187.
[10] Nietzsche et la Philosophie, PUF, 1962, pp. 65-67.
[11] Mas a Linguística fornece também um contra-exemplo, já que a corrente que descobriu o mecanismo de autonomia da linguagem, de obediência saussuriana, que aqui privilegiei, foi destronada por uma outra, gerativa ou chomskyana, hoje dominante, que ignora esse mecanismo e me parece claramente redutora e não explicativa dos fenómenos linguísticos e da sua articulação com o que deles mostram outras ciências. Trata-se dum recuo da história, que justamente é pródiga em avançar e recuar. Obviamente que a minha posição aqui é filosófica, e não a de adivinhação do empírico e aleatório. É provável, ou pelo menos possível, um refluxo um dia, que mais dizer?
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