quarta-feira, 10 de setembro de 2008

João Paisana (1945-2001)

PAISANA, LEITOR DE HUSSERL E HEIDEGGER
A ESTRUTURA ‘ENQUANTO QUE’

João Paisana, Fenomenologia e Hermenêutica. A relação entre as filosofias de Husserl e Heidegger, Presença, 1992

Continuidade e ruptura entre os dois filósofos
Intencionalidade e estrutura 'enquanto que'
Da intuição sensível à intuição categorial
O ser liberto da cópula do juízo

1. João Paisana (1945/2001) era um filósofo claro e um homem bom.
2. A Professora Manuela Saraiva regressando de Sevilha, do VIII Congresso Internacional de Fenomenologia em Maio de 1986, dizia que o João Paisana era o nosso melhor especialista em fenomenologia, de nível internacional, que ele foi um sucesso. Na minha cabeça isto significava: Paisana com Husserl. Donde o meu espanto quando li a tese dele: o João era um heideggeriano! embora apenas do I Heidegger, dos anos 20-30, do Sein und Zeit , que em relação ao II Heidegger, dos anos 35 e depois, ele confessava-me, como aliás é frequente (sucede também com Fernando Gil, por exemplo importante em Portugal, se bem me lembro duma mesa redonda no Jornal de Letras em 1989), que não lhe entendia as questões.
3. Tinha razão a professora, ele criou escola, como se diz, um dos seus doutorandos, dos mais próximos dele, dizia-me há tempos que a sua geração de fenomenólogos tinha conseguido entrar na imensa floresta dos textos de Husserl através da tese do João Paisana. Esta morte estúpida atinge o trabalho dele em fenomenologia quando começavam a ver-se-lhe os frutos, num seminário de mestrado, um pequeno grupo de doutorandos, uma associação portuguesa de fenomenologia, uma revista.
4. E era um homem bom: os doutorandos dele eram também um círculo de amigos, gostosos de viver, de estarem juntos em torno duma mesa a comer e beber, de brincar, de conversar até altas horas da noite.

Continuidade e ruptura entre os dois filósofos
5. A sua grande obra, a tese intitulada Fenomenologia e Hermenêutica, a relação entre as filosofias de Husserl e de Heidegger, é uma introdução muito clara à fenomenologia de Husserl, uma introdução muito clara à filosofia do I Heidegger, o de Sein und Zeit, uma introdução muito clara à questão da relação entre ambos, a questão da continuidade e ruptura de Heidegger em relação a Husserl analisada através do conceito de estrutura ‘enquanto que’. Muito clara não significa que não seja discutível, obviamente, como tudo em filosofia, mas como esta questão da articulação dos dois maiores da fenomenologia do século XX foi fundamental no meu próprio trabalho, e em relação a ela e aos textos que analisa e compara (entre 1900 e 1930 no essencial), eu sou discípulo de Paisana, o que sei com ele aprendi, falta-me a competência para a discutir. Limitar-me-ei a testemunhar, cingindo-me o mais possível ao texto, mas não posso deixar de assinalar a minha postura de fim de século, atento não só ao II Heidegger como a J. Derrida, herdeiro francês comum dos dois pensadores alemães, que retoma, duma certa maneira pró-husserliana e ao invés de Heidegger, a aliança filosofia-ciências. Começarei por realçar os grandes traços da problemática do passo de um a outro, aquilo que o segundo guarda do primeiro e aquilo em que rompe com ele, quer radicalizando-o, quer invertendo-lhe as prioridades. Tentarei em seguida resumir alguns aspectos essenciais da argumentação de Paisana sobre o conceito de estrutura ‘enquanto que’ em Husserl, a qual lhe permitirá ilustrar a continuidade e ruptura de Heidegger. E aí terminarei.
6. É a ruptura que salta à vista desarmada de qualquer leitor husserliano que aborde Ser e Tempo. Os dois motivos deste título, se não estão completamente ausentes da problemática fenomenológica de Husserl, têm em todo o caso um lugar nitidamente secundário. Diferentes também os interesses extra-filosóficos. O filósofo Husserl tem também formação universitária na área da matemática e procura - desde os seus primeiros textos pré-fenomenológicos, sobre o número e a aritmética, até aos últimos, sobre a crise das ciências europeias e a origem da geometria - conseguir que a filosofia (precisará: a fenomeno¬ogia como ciência universal da consciência) possa fundar as restantes ciências. Heidegger será conhecido por ter voltado as costas a esta preocupação, que considera derivada, segunda, e por ter vindo a perfilhar a busca de vizinhança com a poesia, nomeadamente a de Hölderlin.
7. Muito diferentes ainda as concepções filosóficas em relação aos humanos. Husserl não abandona nunca a posição de partida na consciência perceptiva de coisas, definindo-a pela intencionalidade (“a consciência é consciência de qualquer coisa”) e colocando num segundo momento quer a consideração do horizonte vital em que as coisas são, quer a da linguagem predicativa sobre essas coisas. Primado assim do presente da intuição sensível (percepção) em relação aos instantes passados e futuros, do ante-predicativo e da ausência radical de pressupostos, à maneira da dúvida metódica cartesiana mas em vista da indubitabilidade dos actos imanentes da consciência. Enquanto que Heidegger concebe os humanos como abertos ao ser além das coisas: seres-no-mundo onde cuidam das coisas que lhes estão disponíveis, como entes que se definem por questionarem o sentido do ser das coisas e o sentido do seu ser (e se definem portanto também pelo discurso), pelos pressupostos que lhes permitem compreender no mundo os seus possíveis, pela temporalidade como horizonte da questão do sentido do seu ser.
8. Em tão vasto espectro de diferenças - para Heidegger, o que preocupa Husserl é apenas uma das possibilidades dos humanos, a que tem a ver com o conhecimento filosófico e científico, que chama apofântico, coisa de pouca gente, enquanto que ele se ocupa da interpretação que chama hermenêutica, a da habitação quotidiana de qualquer humano -, eles mantêm em comum a crítica da oposição (como exterioridade recíproca) clássica europeia entre sujeito e objecto, intencionalidade no primeiro, ser-no-mundo no segundo, e mais precisamente a crítica da ‘naturalização’, como ‘res cogitans’, da consciência: pela redução fenomenológica desse substancialismo que no primeiro faz ressaltar a diferença fenomenológica entre o objecto aparecendo e o seu aparecer fenomenal, e no segundo se pode dizer que se traduzirá em diferença ontológica . É esta ruptura-continuidade no passo de Husserl a Heidegger que Paisana ilustra muito claramente, restituindo o contraste das concepções da estrutura ‘enquanto que’ em ambos os autores.

Intencionalidade e estrutura ‘enquanto que’
9. Na sua maneira habitual de iniciar cada capítulo resumindo-o claramente, a introdução de Paisana destaca como na fenomenologia hermenêutica de Heidegger “iremos dar especial atenção à estrutura da interpretação, à estrutura ‘enquanto que’ (Als Struktur)” (p. 12), “que permite um primeiro acesso ao ente” e “articulando o sentido, funda a possibilidade da interpretação e, como tal, a constituição do ente em objecto” (13). Em Husserl, “praticamente ignorada”, “esta estrutura (als was) encontra-se [...] sobretudo nas Logische Untersuchungen, sob a designação de matéria intencional do acto [...] que o autor praticamente identifica com a significação do acto intencional” (13-14), sendo através dela que se pode esclarecer a relação entre intuição sensível e categorial, que será o “ponto quente” da questão entre os dois autores.
10. Para evitar os escolhos do psicologismo, querendo que “a imprecisão das leis empíricas da [...] psicologia experimental” dê conta da “precisão, clareza e necessidade das leis lógicas”, a fenomenologia será a “disciplina que tenha por objecto o estudo da consciência enquanto intencional, a qual se deverá desenvolver inteiramente a priori” (31). Isso implicará “desnaturalizar a consciência” (39), recorrendo à intencionalidade de Brentano, ao “objecto aparecente como tal”, de que distinguirá o “aparecer (Erscheinen) do próprio objecto” (42) : este é o fenómeno, segundo Husserl, a “vivência intencional” do objecto (imanente à consciência), não o objecto em si (que transcende o que é dado à consciência). Esta vivência não é ‘objecto’ da consciência, esta pode tematizá-lo apenas por reflexão, não empiricamente (44); ela não é “substancial”, “não tem qualquer essência para além daquela que lhe é conferida pela sua relação intencional” (46), o seu sentido, o qual, “permanecendo identicamente o mesmo, não é um momento real empírico da vivência, mas um momento meramente ideal”(47), sendo no entanto sentido do objecto, é isso a intencionalidade. É o que permitirá que “o mesmo objecto possa ser visado como identicamente o mesmo através de uma multiplicidade de actos distintos” (49), ou até que se possa “falar de objecto intencional mesmo quando o objecto visado realmente não existe [...], o deus Júpiter, por exemplo” (50). O conteúdo real das vivências será “acessível [...] às ciências empíricas, o conteúdo intencional, porque ideal, exige [...] uma verdadeira fenomenologia do conhecimento” (55).
11. Distinguida no acto ou vivência intencional da consciência a sua “qualidade” (percepção, imaginação, recordação) da sua “matéria intencional” (o objecto visado), esta será precisada mais estritamente como objecto intencional (58): “o objecto [que] apenas é visado enquanto determinado de tal ou tal modo” (55), “isto é, segundo a estrutura enquanto que (als was)” (58). É esta matéria intencional “que torna possível e funda” “a simples relação ao objecto” (ibidem), “lhe confere eminentemente uma relação a uma objectividade”, “confere sentido à vivência intencional” (59). É esta matéria intencional ideal que permite à consciência visar o mesmo objecto em actos psíquicos múltiplos, enunciar um juizo cuja significação idêntica se repete, constituir a “validade objectiva do [seu] sentido” (61), antes de se pôr a questão da verdade do seu conhecimento (que depende da “intuição [...] como preenchimento de uma intenção significativa”, p. 67). Esta análise pressupõe pois, Paisana sublinha-o, a desnaturalização da consciência (60), um passo além, acrescente-se, da oposição clássica europeia entre sujeito e objecto, da respectiva exterioridade segundo a aparência empírica, passo esse que é bem expresso pela célebre palavra de ordem do “regresso ‘às coisas mesmas’, e com tal afirmação se pode resumir toda a metodologia própria à investigação fenomenológica”: “não nos devemos centrar no estudo das vivências psíquicas no seu aspecto empírico, mas no seu aspecto intencional, [...] nos próprios objectos eles mesmos e no modo como são presentes” (64).

Da intuição sensível à intuição categorial
12. Para que, a partir de intuições sensíveis ou actos de percepção, únicos fundadores do conhecimento numa fenomenologia da consciência intencional (posso visar objectivamente uma sereia ou o deus Júpiter, não os conheço porque nunca me apareceram), o conhecimento de tipo científico, com juizos de essência, seja possível, Husserl propõe, de forma arriscada em relação à tradição filosófica europeia, mormente a de Kant (discutido nas pp. 68-72), que haja intuições de generalidades ideais preenchendo intenções significativas que as visam, a partir do dado imediato da experiência directa: “quando intuitivamente trazemos a ‘cor’ à plena claridade, ao pleno ser dado, o dado é uma essência”, escreve Husserl (cit. p. 67). Reformula em consequência e alarga a noção de experiência, assim como a de a priori, correlativo deste dado. Não é no entanto esta intuição eidética ou de essência (de que será correlativa a redução fenomenológica) que interessará Paisana, mas o passo intermédio, da intuição sensível à intuição categorial, a maneira como esta alarga aquela, que é aonde incidirá a crítica de Heidegger em ruptura.
13. Paisana assinala, nas primeiras páginas do seu 3º capítulo, “A Fenomenologia como ciência”, a dificuldade crucial: como pode ser fundamento geral das ciências e da própria filosofia uma disciplina que tem um objecto circunscrito, a consciência? (76). A redução fenomenológica pretenderá resolver a dificuldade, mas pagando o preço de regressar “à tradição da filosofia dos tempos modernos”, dirá Heidegger, ao idealismo que “reduz toda a realidade à própria consciência”, acrescentará Th. Celms (78-9). Paisana mostrará mais tarde como tal dificuldade desaparece em Heidegger, cuja ontologia fundamental (com método fenomenológico) não tem objecto (o ser não é ente; finito, o Dasein não é fundador), sem todavia sublinhar o preço que, por sua vez, teve que pagar: o abandono das preocupações husserlianas com as ciências, desconsideradas, a par da metafísica, pela sua posição derivada, apofântica.
14. É a intenção significativa que visa o objecto e é ela que a intuição sensível deste vem preencher, determinando-a e pressupondo-a, mas não a fundando. É este preenchimento que funda o conhecimento (81-2), o qual confirma (ou não) uma significação prévia, em continuidade com a concepção escolástica da verdade como adequação entre a coisa e o intelecto (82-3), é ele ainda que permite a evidência num acto posicional (93). Adequação que nunca é total, já que o objecto é mais visado como o mesmo do que dado na intuição, que é múltipla e sempre perspectivada de forma particular: “deveremos assim encontrar algo, já na própria intenção significativa, que orienta a intuição [...] a matéria intencional, que nós traduziremos por estrutura enquanto que” (85). É esta com efeito que visa “tal objecto e precisamente de tal modo [...] rigorosamente enquanto o mesmo” (e não dados sensoriais brutos), escreve Husserl (86-7), é ela que faz com que os momentos intuídos reenviem com necessidade ao objecto, sejam necessariamente orientados por uma talidade (88).
15. Alarga-se assim a noção de intuição como acto de preenchimento: de objectos simples, em posição absoluta (intuição sensível, ante-predicativa) a objectos complexos ou relacionais (intuição categorial, predicativa, do tipo S é P), que Husserl chamará “estados-de-coisas”, igualmente com estatuto alargado de objecto (95-7). Os primeiros fundam os segundos; em termos do conhecimento desses objectos, alarga-se também, a partir da análise da significação, a noção de constituição a objectos não sensíveis (97-101). Neste passo da intuição sensível ao estado de coisas que é o objecto de intuição categorial, introduz-se nesta o ser, que também é dado, não sensivelmente, mas num ente intuido sensivelmente: este ser, sendo o que permite fundar a cópula ‘é’ do juizo S é P (94-5), é dado em excedente de significação, correlativo do estado de coisas articulado, tal como na intuição sensível o visado excede o intuído (102-3); ora, segundo Paisana (em discussão com Taminiaux), é justamente a estrutura ‘enquanto que’ quem permite esse excedente, já que é ela que identifica o objecto como o mesmo e como tal objecto (103-6). É ela que permite o excedente de ‘algum’ e ‘é’ no juizo ‘algum S é P’, em que apenas S e P são fundados em intuição sensível. Em “o oiro é amarelo”, explicita Paisana, o objecto intencional (determinado) é o oiro enquanto amarelo e o intuído (determinação) o amarelo enquanto atributo do oiro (106-7). Relativamente independente do conteúdo sensorial intuído, a intuição categorial presta-se assim à passagem ao nível da formalização (107). Conclusão de Paisana: “o paralelismo entre intuição sensível e intuição categorial fundamenta-se no facto de em ambos os casos o objecto só pode ser visado através da estrutura ‘enquanto que’, da matéria intencional do acto” (108).

O ser liberto da cópula do juizo
16. Em tudo isto, a palavra ‘objecto’ vem constantemente: donde é dada a objectualidade do objecto? pergunta Heidegger. Este, que é percebido, é uma “substância”, em Kant “uma categoria do entendimento” (116): “segundo Heidegger, ‘intuição categorial quer dizer estritamente uma intuição que dá a ver uma categoria’” (117). Está aqui o ‘ponto quente’ da fenomenologia do mestre, por onde o discípulo pega e rompe: “o grande mérito de Husserl terá consistido, através das suas investigações sobre a intuição categorial, em libertar o ser da cópula do juizo e considerar o ser como dado, [...] dado de outro modo que o sensível” (117). E “será precisamente tal libertação que irá [...] permitir a Heidegger formular a sua célebre questão ‘qual o sentido do ser do ente?’” (117-8). Mas rompe, já que, levado a rigor, em vez de ser o juizo categorial “que é fundado pela ‘experiência’ do ser”, é ele que, como em Kant, determina a objectualidade enquanto dada pelos sentidos, ou seja a intuição categorial é prévia à intuição sensível, é a condição dela. Esta deixa de ser “a pedra angular” da sistematização husserliana (118). Ser foi sempre para Husserl “ser-objecto”, ora “a objectualidade é um modo de presença [...], é o ser presente na dimensão [...] da subjectividade” (120). E “pressupõe [...] uma abertura prévia ao ser do ente”, que em Sein und Zeit se dirá Dasein (ser-o-aí).
17. Numa página de argumentação cerrada em torno da estrutura enquanto tal (was) que seria a citar por inteiro, Paisana mostra como ao nível categorial (juízo: o predicado determina o ente constituindo-o “enquanto objecto, sujeito de possíveis predicados”; intuição: o objecto é visado e o predicado intuído), “a talidade é a um tempo determinante e intuída” e, em seguida, como o paralelismo entre as duas intuições implica um rebatimento implícito da predicação, da relação determinante / determinado sobre a relação visado / intuído da intuição sensível (124). Ora, “é apenas na medida em que a talidade, a significação , é compreendida como um predicado, e o ser como predicação, que o ente pode ser um objecto, enquanto sujeito de possíveis predicações”. “Abandonado decididamente o nível antepredicativo”, “a objectividade e [...] a intuição pressupõem já a predicação” (125) .
18. Paisana prossegue mostrando como Heidegger, buscando “determinar a mundaneidade do mundo como significabilidade” (126), reformula a estrutura ‘enquanto que’, de apofântica (ou filosófica) em hermenêutica (ou pré-objectiva), como a que “nos permite um primeiro acesso ao ente” e a “que funda a predicação”, pela qual “o ente se constitui em objecto” (ibidem). E é onde se pode ler e se deve citar o extracto que diz a súmula da tese de João Paisana. “Segundo pensamos, é esta alteração da estrutura ‘enquanto que’, permitindo passar do nível pré-objectivo para o nível objectivo, que possibilita a clara articulação entre a fenomenologia hermenêutica de Heidegger e a fenomenologia explicitativa husserliana. A relação entre o âmbito da fenomenologia de Heidegger e a de Husserl é a que medeia entre o ‘enquanto que’ hermenêutico e o ‘enquanto que’ apofântico” (127).
19. Novidade do pensamento heideggeriano: “[...] a significação, porque pré-objectiva, é não teórica, reenvia como tal para o próprio comportamento do Dasein, [...] para um comportamento prático” (129). Citando Heidegger: “o nosso ser orientado para as coisas e os homens move-se nesta estrutura: algo enquanto algo - resumindo: tem a estrutura ‘enquanto que’. Esta estrutura enquanto que não é por isso necessariamente recebida da predicação. No ter-que-fazer (Zu-tunhaben) com algo não realizo tematicamente nenhum enunciado predicativo enquanto tal” (129-30). Esta estrutura “regressa junto ao ente encontrando-o e descobrindo-o enquanto serve para tal ou tal (wozu es dient). É sempre em função de um ‘para que’, que o ente ‘com que’ o Dasein se encontra, se descobre enquanto tal ou tal [...] A significação originária, pela qual o ente é descoberto, funda-se assim na disponibilidade (Zuhandenheit) do ente, no seu estar-à-mão para” (130). “A estrutura ‘enquanto que’ originária refere-se pois às possibilidades de ser no mundo do Dasein, e não a um simples ponto de vista parcial, teórico, sobre um objecto. [...] O ente é sempre interpretado na sua possibilidade, nunca um puro dado encerrado sobre si. [...] o que o ente é surge sempre articulado sobre um fundo, que lhe permite ser tal ou tal, mas sempre articulado segundo a estrutura ‘enquanto que’” (130-1). “Ora, precisamente o o fundo a partir do qual o ente se articula enquanto ‘tal ou tal’ é o que o autor chama o sentido de ser do ente. [...] o ser transcende o ente e, se quisermos compreender o ser do ente, nunca o devemos interrogar num simples modo de ser ôntico, mas sim através do seu sentido de ser, que articula as suas possibilidades ônticas. [...] o ente surge sempre já interpretado, e interpretado através do seu sentido de ser” (131-2). É o motivo novo da diferença ontológica.
20. Paisana conclui este capítulo dedicado ao passo entre os dois grandes filósofos mostrando como “o ente, determinado como objecto, cortado da significabilidade, é encerrado em si, [...] pode ser encontrado numa intuição teórica”, como para isso “é necessário que tenhamos já um acesso prévio” à sua significação (talidade) pré-predicativa” (134), que o conhecimento, entre sujeito e objecto, seja “um modo derivado, não originário, de ser no mundo do Dasein. “São os próprios conceitos de intencionalidade e de objecto intencional que deverão ser postos em questão. [...] nem a verdade como adequação é originária, nem a intuição é o acto que nos abre originariamente ao mundo”. “Visado e intuído não surgem como momentos originários, mas ao inverso, só no interior de uma abertura prévia, possibilitada pelo significar, será possível posteriormente distinguir entre o visado, como objecto intencional e o intuído como objecto real” (136-7). “Será na própria estrutura ‘enquanto que’ ante-predicativa que deveremos encontrar o local originário onde surge o ser” (140). “O ser não pode procurar-se apenas no próprio ente, mesmo como posição, como pretendia Husserl [...], é necessário existir uma compreensão prévia do modo de ser do ente, não fundada apenas no próprio ente [...] Compreende-se assim que Heidegger tome como ponto de partida de toda a sua análise existenciária do Dasein a compreensão pré-ontológica” (142).
21. Pouco passei de um terço da tese, que continuará pela exposição da tripla estrutura existenciária do Dasein, o “encontrar-se afectado”, a “compreensão” e a “interpretação”: a nossa conhecida estrutura “‘enquanto que’, constituindo a estrutura do expressável de algo compreendido, constitui a interpretação” (153). Mas considero que trouxe o leitor a bom porto, só o quis convidar à leitura pegando por onde ela poderá ser de mais difícil abordagem, que a exposição do pensamento de Sein und Zeit guiada pela questão sobre o sentido de ser do ente me parece bem mais aliciante. Bem hajas!, João, por este tão claro livro.
in Revista de Fenomenologia (Homenagem a João Paisana - 1945/2001) nº5/6 (Outubro de 2002/Primavera de 2003),

1 comentário:

antonio ferraz disse...

com o joao eu tinha o meu cerebro quente
antonio ferraz