sábado, 21 de junho de 2008

Porque é que há Mal?


DA BEN(MAL)DIÇÃO: porque é que há Mal?

Para a Inês Patrício

1. A chamada questão do mal na tradição cristã, tratava da morte e da doença em vista duma teodiceia, do pecado (a certo nível tornado ‘mortal’) que as justificaria. Tudo isto duma forma razoavelmente individualista, a alma e o respectivo corpo. Recentemente, num panorama de pensamento largamente laicizado, é sob o lema da violência que ela é mais abordada, procurando-se-lhe causas e remedeios. Não sei como é que as coisas se processaram nas grandes culturas asiáticas. Mas o que tentarei ilustrar aqui é como a problemática do mal em oposição ao bem tem duas fortes raízes no Ocidente: foram de facto tanto a Bíblia hebraica[1], quanto a filosofia de Platão[2], de forma bem diferente, como é óbvio, que fizeram o gesto drástico de as cortar, de as separar, de as opor. Tese que implica que nas civilizações dessas escritas as duas noções estariam imbricadas. Basta pensar na (falta de) ‘moralidade’ das mitologias gregas e romanas, ou em como, nos cap. 28 do Deuteronómio e 26 do Levítico da Bíblia hebraica, a bênção e a maldição vêm do mesmo Yahvé, antes da invenção (persa?) de Satã.

A lei da selva
2. Mas não será por aqui que começarei. Não creio que se possa falar de bem e mal em relação aos processos físicos e químicos da constituição do planeta terra, apesar da violência enorme que eles suposeram, como sismos, tsunamis e erupções vulcânicas nos recordam por vezes: se estes fazem mal, é aos vivos e às suas construções. Creio que o limiar – em que a violência vira mal - se encontrará na diferença que no liceu aprendemos entre química inorgânica e orgânica. Com efeito, a bioquímica do metabolismo das células vivas consiste no fazer e assegurar a manutenção das moléculas de que elas são feitas, muito mais complexas do que as dos compostos inorgânicos (rochas, água, gases) : trata-se de moléculas heterogéneas e especializa­das, à base de carbono, das quais umas (as proteínas) são sintetizadas por outras (ácidos ribonucleicos) a partir das moléculas mais simples dos nutrientes que o sangue traz às células. Ora, por serem tão complexas, são também frágeis e susceptíveis de se fragmentarem, donde que o metabolismo tenha de as aguentar (por meio de enzimas catalizadoras), de lhes recomeçar a síntese quando necessário, num processo incessante que exige a alimentação e a respiração, um processo homeostático do próprio metabolismo, oscilante entre dois limiares (como a outra escala sucede no sangue). É esta fragilidade intrínseca das moléculas da vida (defendem-se muito pior do 2º princípio da Termodinâmica do que as moléculas inorgânicas às temperaturas terrestres) que explicará, em última análise, que a morte, uma das figuras tradicionais do mal, seja inerente à vida. As rochas sofrem erosão, as coisas estragam-se, mas não adoecem nem morrem, como pode sempre acontecer aos seres que são constituídos por células de moléculas complexas e frágeis.
3. Por outro lado, se há uma maneira de dizer o sentido da evolução a partir de células isoladas ou em colónias, consistirá na maneira como elas se associaram especializando-se em tecidos e órgãos, ervas e árvores, insectos e vertebrados, para mais facilmente resistirem à hostilidade do meio ambiente e conquistarem uma maior autonomia, invadindo a terra e até os ares. Ora, nas espécies mais vizinhas entre si, nomeadamente nos mamíferos, além da dimensão, parece que as maiores diferenças entre elas residem nas maneiras que encontraram de fazerem a predação e/ou de lhe resistirem. Por uma razão simples, que tem a ver com o lugar fulcral das moléculas de carbono nas complexas moléculas das células: aonde ir buscar essas moléculas preciosas? As plantas vão buscá-las ao CO2 da atmosfera, por meio da célebre foto-síntese, os herbívoros vão-nas buscar às plantas e os carnívoros aos herbívoros: os animais não sobrevivem sem comerem outros vivos. O princípio de conservação do carbono está assim na raíz daquilo a que se  deve chamar a lei da selva – expressão que habitualmente é aplicada metaforicamente aos humanos. Quanto maior é a complexidade dos organismos, tanto mais vasto é o leque de órgãos e astúcias para matar e comer, para se fugir a ser comido. Para isso joga o sistema da boca e dos membros, do cérebro e dos órgãos perceptivos, o qual é fortemente pressionado por pulsões hormonais. Aqui, obviamente que tanto se deve falar de mal como de bem, já que o bem do leão é o mal da gazela, a fuga desta é a fome do leão. O que é fabuloso – e constitui certamente o mecanismo decisivo da selecção natural[3] - é que matar para comer seja a regra essencial dos animais, morte e vida claramente indissociáveis. A agressão por fome, que foi crescendo em força muscular, é uma das raízes mais fortes do que chamamos ‘mal’, ela foi herdada pelos humanos como ‘conquista’ lenta da evolução: os músculos que desta nos vieram foram inventados para caçar, combater, defender-se e fugir, para a guerra pois, já lá iremos.

A sexualidade como excesso em desperdício
4. Atentemos agora numa outra fabulosa invenção da evolução, extremamente precoce aliás quer em animais quer em plantas, que deu à vida a imensa diversidade das espécies que os biólogos estudam. Como se sabe, à hidra de água doce cresce uma espécie de rebento que se separa dela atingida certa dimensão, da mesma maneira que certos vermes se cortam em dois e assim prosseguem, todos com o mesmo programa genético, sem que se possa falar em tais espécies assexuadas de pais e filhos, nem de morte (a não ser que sejam comidos), pois que não há cadáveres, nem falar sequer de indivíduos, muito menos de aprendizagem. Ou seja, estes motivos ‘familiares’ descobertos por Freud no discurso inconsciente dos seus pacientes têm origem ‘histórica’ na invenção da sexualidade pela evolução. Que os biólogos não dêem por isso[4], faz pensar que também à biologia se aplica o que foi dito da filosofia e da economia: ela é importante demais para ficar nas mãos exclusivas deles.
5. Ora, a sexualidade constitui um terceiro sistema dos organismos animais, além do da nutrição e do da mobilidade para a predação. Estes dois acordam-se um ao outro, melhor dito, formam não dois sistemas mas um duplo sistema (o cérebro coordena quer a homeostasia do sangue, dispositivo central da nutrição, quer os comportamentos de predação e fuga), cujo objectivo é o da auto-reprodução do indivíduo, estritamente ‘egoista’, dir-se-ia. A sexualidade, pelo contrário, abre-o à outra ou ao outro e tem a espécie como objectivo, podendo inclusivamente jogar contra os ‘interesses’ imediatos do indivíduo. Por outro lado, o seu funcionamento é claramente diferente dos da nutrição e da predação, que nos animais é estritamente económico em termos da relação volume / superfície dos órgãos, por exemplo[5], e nomeadamente de poupança de energia, que só é desenfreada quando a fome ou a sêde apertam, prevista, é certo, mas só em casos de excepção. Ora com a sexualidade, o desenfreado é a regra, também aliás nas plantas. De formas muito diferentes, é claro, as espécies criam imensas células genitais que por vezes (os espermatozoides humanos ou as sementes) só são úteis a sei lá quantos 0,00000001 por cento. Ou seja, neste sector crucial, as espécies trabalham estatisticamente, perdulariamente, excessivamente. E também esbanjam energia a pulsionar os machos muito fortemente para as fêmeas, excesso que só é possível porque limitado às épocas de cio, senão machos e fêmeas andariam sempre doidos[6]. Ora, nunca consegui saber porquê, nos humanos e creio que em algumas espécies primatas, o mecanismo do cio desapareceu. Mas sem desapareceram as pulsões fortíssimas entre fêmeas e machos, o que se tornou num dos problemas essenciais de todas as sociedades humanas. O interdito do incesto na raíz de todas elas implica que sempre os excessos da sexualidade humana estiveram sujeitos à lei - outra confirmação de Freud por vias exteriores à argumentação psicanalítica -, mas também que a exogamia que desse interdito é consequência (lição belíssima de Lévi-Strauss) abriu a sexualidade a maiores diversidades ainda, a nível social, já não meramente biológico mas que o prolonga.

A lei da guerra
6. As sociedades humanas (e já as de outras espécies animais que Lorenz estudou) tiveram assim que elaborar formas de contenção, quer das pulsões agressivas que sobravam da fome, das necessidades da predação, quer dos excessos da sexualidade. O facto, relativamente surpreendente, de quase todas elas serem (terem sido) sociedades guerreiras parece indicar que a guerra foi a forma corrente, talvez principal, dessa elaboração. Um texto do antropólogo P. Clastres[7], que joga entre o princípio de guerra de Hobbes e o princípio de troca de Lévi-Strauss, mostra como a troca de mulheres (exogamia resultante do interdito do incesto) estabelece uma fronteira social de endogamia: além dela, trata-se de estrangeiros - de ‘não-humanos’ no sentido em que os indígenas são humanos das mesmas tradições ancestrais -, faz-se-lhes a guerra. A troca de mulheres cria as solidariedades necessárias às defesas e aos ataques. Também as sociedades agrícolas, durante cerca de dez milénios, foram essencialmente guerreiras: basta chamar a atenção para o facto de as respectivas classes nobres terem a guerra como ofício, quer de defesa, quer de ataque a vizinhos sempre que estes dêem sinais de fraquejarem. Não é fácil de compreender este carácter tão geral da guerra que apenas o comércio internacional, a globalização das trocas, veio interromper (de 1815 a 1914 e de 1945 a esta parte, não houve guerras mundiais, K. Polanyi). Mas há pelo menos dois tipos de fenómenos que ajudam a compreender que se trata de deslocamentos da lei da guerra: dum lado, para o futebol e outros desportos, cuja paixão é a de vencer os adversários, do outro para a tónica dominante da concorrência económica, mormente a do capitalismo financeiro internacional actual cuja lógica parece ser a duma guerra de capitais. Para não falar em todo o tipo de bairrismos e clubismos, de bandos juvenis, de polémicas filosóficas, políticas, e por aí fora. Sempre se procura mostrar que se é o mais forte, o mais astuto, o que merece o melhor lugar, o primeiro prémio.
7. Digamos, da forma necessariamente simplificadora dum texto desta dimensão, que o que as sociedades humanas sempre tiveram que assegurar foi a contenção dessas pulsões que a ameaçam sem ‘matarem’ as emulações singulares de cada um. Não encontro em português um termo que tenha a vantagem do conceito de ‘envie’ de alguns antropólogos franceses, susceptível de ser entendido de forma pré-ética: tanto diz como os jovens têm que ter ‘envie’ de serem isto ou aquilo, através do modelo de outros, ou mesmo de serem os melhores, como pode dizer o carácter invejoso ('envieux') e agresssivo que daí resulta muitas vezes. Há, por um lado, que estimular as motivações por emulação, condição do dinamismo quotidiano de qualquer sociedade, sabendo-se embora que os lugares de prestígio são sempre poucos e por isso alvo de rivalidades e disputas, e, por outro lado, há que regular os seus excessos. Os quatro interditos principais do velho decálogo bíblico – não matar, não roubar, não violar[8], não difamar – explicitam o que qualquer sociedade humana não pode deixar de exigir aos seus membros para poder sobreviver. E também para que as rivalidades, as invejas e os ciúmes não impeçam a solidariedade necessária para a guerra aos outros.
8. O belo texto de Norberto Elias, O Processo civilizacional, escrito no final dos anos 30, correlaciona em dois volumes a serem lidos en confronto, duas histórias europeias: a da formação do poder monárquico e da sua confiscação progressiva do poder das armas, por um lado, e por outro da formação da etiqueta da sociedade da côrte real, em que nobres e senhoras conviviam largos meses por vezes sob o mesmo tecto, devendo assim aprender a conter as respectivas pulsões, quer no que diz respeito às maneiras de comer à mesa, quer, é bem de ver, às questões da sexualidade. Ele pretende fazer assim uma história da estruturação do super-ego europeu (com um olhar também para o mundo chinês). Podemos dizer que a sua lição é uma espécie de prolongamento para a nossa contemporaneidade da lição atrás evocada de Lévi-Strauss: onde o interdito do incesto se apresenta como maneira de conter as energias sexuais excessivas - fora as de marido e mulher – no quotidiano das mesmas unidades residenciais, são agora os nossos empregos - em que homens e mulheres sem relações familiares trabalham juntos várias horas por dia - que necessitam da herança desse processo europeu de estruturação do super-ego.
9. Que esta lei da guerra seja, também ela, prévia à distinção entre bem e mal não é de tão facil raciocínio como para a lei da selva. Sejam três argumentos: a sua generalidade a quase todas as sociedades, como forma de afirmação dum grupo social sobre outros estranhos; a maneira como se geraram éticas na maneira de combater (a arêtê grega, a spoudaias e a sua equivalente romana nobilitas como categorias ética, ou o cavalheirismo, a fidalguia)[9]; enfim, a guerra e a escravatura correlativa terem sido a única maneira de formar grandes reinos e impérios e portanto de desenvolver as cidades, as artes e técnicas, as escritas e as razões, isto é o progresso de que resultou a nossa civilização. Não é possível, sem maniqueísmo anacrónico e irracional, considerar que a guerra foi um mal puro, como também não são ‘maus’ os mamíferos carnívoros. O que não implica achar que as guerras regionais de hoje sejam boas; o progresso é avaliável não apenas em termos técnicos mas, de forma geral, como a passagem de usos à base de força muscular a usos à base de razão humana: diplomacia em vez de guerra, máquina em vez de escravos, democracia em vez de regimes autoritários, e por aí fora, à espera de que o direito internacional e as respectivas instituições se imponham ao arbítrio dos poderosos.

O dualismo do bem e do mal

10. Em Filosofia, há quem caracterize, desde Nietzsche a Heidegger, a estrutura dualista da metafísica pela oposição entre o inteligível (da alma e das ideias) e o sensível (do corpo e das suas percepções) como duas cenas[10] em que a primeira subordina a segunda. Mas não contradiz essa tese dizer que nela são razões éticas que opõem duas formas de viver. Tanto a Apologia de Sócrates como o Fédon mostram claramente como Sócrates põe o acento da renúncia nos bens que da casa advêm, dinheiro, reputação, honras (Apologia, 29e), fortuna, interesses da casa, comando do exército, carreira política, cargos de toda a espécie, ligações e facções políticas (Apologia, 36b), os prazeres do comer e do beber, do amor, a be­leza dos fatos, cal­çado e outros ornamentos do corpo, renúncia assim aos bens do corpo em oposição aos da alma, os da busca da virtude e do saber, do justo, do belo e do bom, da grandeza, da saúde et da força, essências a que só se acede prescindido dos olhos e ouvidos do corpo (Fédon, 64d-65a). Ou seja, trata-se de renúncia em prol da virtude e do saber ao que até aí sempre a tradi­ção religiosa como a grande poesia trá­gica conside­raram ser o grande dom dos Deuses: a riqueza por via da fecundidade das casas e das cidades em filhos, reba­nhos, ceifas e vindimas. O mundo dos interesses das casas e dos prazeres do corpo será o dos discursos da doxa, da opinião (que pode ser verdadeira), a que Platão opõe o saber que a alma procura e de que se recorda ter contemplado antes do corpo nascer. A arma que Sócrates inventou e Platão aguçou para a busca desse saber foi a definição, que permite justamente despojar as coisas para se lhes encontrar a essência intemporal: digamos, embora com algum anacronismo, que buscar os conceitos das realidades que estudamos, reduzindo-lhes as empiricidades e os contextos para construir estruturas teóricas, é um gesto que herdámos de Platão (e de Aristóteles). E sendo certo que na República (509a-b) a Forma ideal do Bem em sua pureza, está além de toda a essência, é a primeira de todas as Formas ideais, a sua oposição e separação do mal[11] é radical. O Deus demiurgo do Timeu, formador do universo umas boas duas dezenas de anos mais tarde, será o herdeiro dessa Forma ideal do Bem.
11. Somos hoje, por regra, bastante críticos deste dualismo platónico: mas convirá saber que ele foi o motor da elevação do nível intellectual do debate europeu, mormente nos dois séculos clássicos, fortemente críticos do aristotelismo medieval e apoiados na sombra tutelar de Platão. Foi do debate entre os dois grandes Gregos – um, propondo um sistema de saber escolar que fôra prodigiosamente fecundo mas se tornara uma rêde-prisão das inteligências, o outro, fornecendo a liberdade de pensar ideias livremente dos contextos (tanto da chamada realidade, como dos saberes herdados) – que foi feita a matriz da modernidade.

O pecado de Adão e de Eva

12. Na Diáspora helenística e romana, os Judeus, conservando-se endogamicamente em torno do seu Livro e da Sinagoga, foram por vezes percebidos como um povo ateu, devido à ausência de imagens divinas e à sua abstenção de sacrifícios. Desde o livro instaurador da sua Bíblia, o Deuteronómio, conduzindo a uma destruição de todos os templos, altares e imagens do país para não deixar senão o Templo de Salomão em Jerusalém e preconizando uma aliança ética para a justiça como condição de vitória sobre os povos vizinhos e de independência, que a separação entre o seu único Deus e as várias doações da Terra e do Céu, as fecundidades, as chuvas, o calor e a luz, foram concentrando no poder criador daquele – digamos em termos gregos - a única causalidade, quer das coisas da natureza, quer dos acontecimentos aleatórios: dele vinham as bênçãos como as maldições. Bênção diz-se em hebraico ‘barak’ e há razões que me levam a pensar que, antes de o termo se ter vindo a tornar exclusivo do ‘bem’, ele também tenha significado a maldição[12]. Como o nosso termo ‘sorte’ ou ‘fortuna’, que ganharam o sentido geral de ‘coisas boas’, apesar da ‘má fortuna’ do soneto de Camões e do proverbial ‘antes a morte que tal sorte’. Como a Moïra grega ou o Fatum latino (ao invés, tornaram-se mais funestos do que benéficos) ou o nosso Destino. A diferença que os profetas redactores da Bíblia hebraica introduziram em relação a estas outras concepções mediterrânicas foi a de a sua partilha, segundo os dois capítulos que citei no final do § 1, ser devida à ética de quem as recebia, quer as casas de cada um, quer o conjunto do povo e o seu rei. Bendito o justo, maldito o pecador. O que Job, uns séculos mais tarde, contestará amargamente.
13. Antes de se vir à oposição clara entre Deus e Satã, os três primeiros capítulos do Génesis – de redacção tardia, aliás – mostram claramente como esta separação monoteísta por razões éticas se concretizou na separação do bem e do mal em geral (e não apenas ético). Se se lerem às avessas os 11 primeiros capítulos desse livro, antes da eleição de Abraão, antepassado do povo hebraico, a narrativa de Babel diz como o mal se alastrou entre os povos (como se a guerra assim se explicasse, com a divisão das línguas) e a do Dilúvio conta como o mal inicialmente foi tal que Deus decidiu destruir tudo o que fizera e recomeçar de novo com Noé. Antes foi a inveja e o crime dum irmão contra o outro logo na primeira geração de humanos[13]. Às avessas, é como se o texto avançasse na busca de compreender porquê todo este mal que corroi a humanidade, como é possível tanto mal na obra dum Deus único, sem dualismo divino como entre os Persas.
14. Ora, os três capítulos iniciais parecem responder de antemão a essa inquietação: contam duas vezes a criação, a primeira delas numa composição original (1.1-2.4a), da mão do último redactor destes textos veneráveis, enquanto que a história de Adão e Eva (2.4b-3.24), a partir de mitos ancestrais, conheceu por sua vez três redacções sucessivas. Na primeira, o essencial do cap. 2, só haveria criação: do jardim e dos rios, do homem feito de solo (adama) e do sôpro divino, os animais e os seus nomes, a mulher dum costado do homem, os dois uma só carne. A segunda enxertou à primeira uma narrativa de queda e de expulsão do Eden, inserindo-lhe os versículos 9b e 16-7 sobre as duas árvores (da vida e do conhecimento do bem e do mal) e o 25 sobre a falta de vergonha da nudez, e acrescentando depois 3.1-13,22-24. Introduz-se assim no paraíso uma lei, um interdito, que diz respeito ao conhecimento do bem e do mal, cuja transgressão trará a morte. Vem a Astúcia, a serpente: não é a morte, pelo contrário, os vossos olhos é que se abrem e sereis como deuses que conhecem o bem e o mal; trata-se dum fruto bom para entender. Os olhos abriram-se e viram que estavam nus, fizeram umas tangas, esconderam-se ao ouvirem os passos de Deus, desculpam-se uns nos outros, ele nela, ela na serpente. O conhecimento do bem e do mal consiste assim, quer no entendimento e na inteligência das coisas, quer na astúcia e dissimulação: vergonha da nudez e da transgressão, desculpa com os outros[14]. A terceira redacção juntou-lhe a lição das consequências da transgressão (3,14-19): além da enigmática maldição sobre a serpente, há uma sobre a mulher (as dores da gravidez e do parto, a sua concupiscência para o marido[15] que a dominará), outra sobre o solo e o custo do trabalho agrícola do homem, a terceira enfim sendo o retorno deste ao solo (adama) de que foi feito. O solo é assim o horizonte desta narrativa, em oposição, parece, ao desejo de se ser como deuses: terrestres, mortais, penando, curiosos, astuciosos, capazes do bem e do mal.
15. Retomemos o motivo do ‘barak’. Em que é que consistia a bênção para um hebreu? Antes de mais, em ter um herdeiro da sua casa e do seu nome (ver o lamento de Abraão em Gn 15.2 e a promessa de bênção que lhe é feita en Gn 12.2-3): em sociedades que não tinham a noção de sobrevivência feliz num céu (nem alma immortal nem ressurreição dos mortos, tudo crenças da segunda metade do primeiro milénio antes de Cristo), o nome numa casa próspera de sua descendência era a imortalidade possível (como modernamente Sartre, Renault ou Gulbenkian). Em seguida, sociedade de agricultores e cultivadores de gado, a riqueza deles era essencialmente a da terra, a da abundância das ceifas e das vindimas, dos rebanhos e suas crias. O que dependia do trabalho humano, donde também a vantagem em terem filhos numerosos e com saúde. A bênção duma casa é assim a fecundidade das suas mulheres, dos seus campos e fêmeas, a abundância, a riqueza: ela prolongar-se-á como sua reprodução ao longo das gerações. Com uma dificuldade porém: ela traz consigo, de forma a priori indissociável, a possibilidade também da maldição. É o que parece significar a lógica dos sacrifícios dos animais. Primitivamente, qualquer animal abatido para ser comido deveria sê-lo no santuário, sem se lhe comer o sangue, “porque o sangue é a vida da carne” (Lv 17.14, Dt 12.23, Gn 9.4). Por que 'lógica'? Tudo se passa como se matar um animal nascido na casa como bênção fosse negar esta, verter o sangue é sempre sinal de morte, uma maldição. Oferecido no altar, ele torna-se sagrado, reverte-se em bênção que o sacerdote derrama sobre o oferente, aliança entre o Deus e a casa (ver Ex 24.6-8), como que retornando à fonte da bênção que ele foi à nascença, numa espécie de ciclo sagrado[16] da bênção. Quer dizer que é o facto mesmo de nos alimentarmos de cadáveres (a lei da selva: a vida reproduz-se pela morte) que implica uma ‘maldição’ no coração da ‘bênção’ que não pode ser totalmente impedida: a vida implica a morte na sua essência. Foi o que descrevi noutros tempos como sistema da mácula (souillure)[17]. Basta ler a lista das impurezas legais em vários livros do Levítico: quer o sangue das mulheres, por exemplo maior o dos partos, que as torna impuras (intocáveis) durante 40 ou 80 dias consoante o sexo do bébé, quer os cadáveres (que tornam impuros por 7 dias quem neles tocar), coisas inevitáveis na mais pura das casas. Mais: o parto, sobretudo se fôr de rapaz, e ainda mais se do primogénito, é a maior das bênçãos, aquela que vai permitir a continuação da casa, mas faz-se com fortes dores da mãe; por outro lado, o sangue em que ele banha ao nascer anuncia em certo sentido a sua morte um dia, por muito abençoado que ele seja no seu trabalho. Por sua vez, este, sendo condição sine qua non da bênção dos campos e do gado, implicará da sua parte muita pena e suor.
16. É aqui que voltamos à terceira redacção da narrativa do Génesis: os versículos 3.16-19 tentam resolver esta contradição, isto é, decidir neste indecidível entre vida-morte, entre bênção-maldição, no que grafei ben(mal)dição. O 3º redactor interpreta o mito recebido, do Eden, da lei e da sua primeira transgressão, separando e opondo o bem e o mal, a vida e a morte. As dores da mulher no parto, a mortalidade do homem (correlato do seu nascimento) e o suor do trabalho dos campos são com efeito as maldições mais significativas, se dizer se pode, que estão no coração das casas, simultaneamente unidades de parentesco e de actividade económica. A separação consistiu em fazer dessas maldições algo que resultou do castigo duma transgressão, culpa humana, e não dum dado original da criação divina. “No princípio criou Deus o céu e a terra”, assim começa o admirável cap. 1[18] que ultima esta separação: por seis vezes o Demiurgo da palavra aprecia o seu trabalho com um “viu que era bom”, da última vez “muito bom”. Isto é, sem mal[19].
17. Em seguida Deus descansou: sendo o seu ‘trabalho’ de palavra, calou-se. É a clausura da Tora, do livro da Lei dos judeus. Curiosamente, há um paralelo no Timeu de Platão: o demiurgo “era bom e, naquele que é bom, não nasce nunca ‘envie’ pelo que seja. Isento de ‘envie’, ele quis que todas as coisas fossem, tanto quanto possível, semelhantes a si mesmo” (29e). “Quando o Deus lhes fez conhecer todos estes decretos, para que não o tivessem como responsável pela futura maldade deles, semeou-os, uns na terra, outros na lua, outros em todos os outros instrumentos do tempo. Após estas sementeiras, confiou aos deuses jovens [que tinha criado] o cuidado de formar corpos mortais, de completar a obra dele juntando tudo o que fosse necessário juntar à alma humana e todos os acessórios que ela exigia, e em seguida de comandar e governar tão ajuizadamente e tão bem quanto pudessem este ser mortal, a menos que fosse ele próprio a causa da sua infelicidade. Depois de ter regulado tudo isto, o Deus retomou o curso da sua existência habitual. Enquanto guardava o repouso, os seus filhos […]” (42b-c, da trad. francesa de Chambry).

Relatividade sem relativismo
18. Este motivo de ben(mal)dição – barak, moïra, fado, sorte, fortuna, destino –, que podemos despojar de qualquer divindade benéfica ou maléfica, ou aponta ao que se deseja, ou que se teme, ou conta o que sucedeu: releva pois do acontecimento. O qual é feito dum jogo de multiplicidades, de doações que, entre necessidades e aleatórios, se cruzam; o acontecimento é pois rebelde a definições e essências, difícil de ser aceite em discursos de filosofia, menos ainda de ciências, confinado assim às literaturas que dele fizeram o seu mel. Rebelde a definições, é-o também a dominações por qualquer um dos seus actores empenhados, mais fortes ou astutos: à maneira das fecundidades que evoquei. No que nele há de mais relevante para cada um que nele se joga, o que faz o seu preço e apreço mas também o que se teme, é doação múltipla sem doador, destinação sem nenhum ‘pré’ a fixá-la, antes ou depois, sem fatalismos.
19. Embora uma das ambições míticas dos humanos, com a da imortalidade, seja a de se prever o futuro, é muito provável que a vida prevista de certezas se tornasse impossível. O aleatório é constitutivo das existências todas. ‘Se eu tivesse nascido noutro país, noutra época’, sonha-se por vezes: não seria ‘eu’, foram outros que aí nasceram. Aonde espermatozóide não encontra óvulo não há ninguém, aonde encontra, é tal, filho ou filha de tal e tal, neto ou neta de tais quatro, etc., com hereditariedades e heranças precisas juntamente com muito aleatório (o espermatozóide ao lado daria uma rapariga aonde eu fui rapaz). Se é assim o nascimento, tão improvável, também cada vida é cheia de encontros e desencontros de toda a espécie, até à sempre (in)certa morte, e é por isso que há aqueles temas do ‘barak’ ou destino, que há as infindáveis literaturas. Também a leoa e a gazela, a mosca e o caracol, têm destinos aleatórios. Tudo é acontecimento, em geral com consequências minúsculas, mas por vezes, sabe-se mais tarde, transformadores de destinos. O aleatório, como em qualquer jogo, é indiscernível das regras que as ciências descobrem: por exemplo banal, quando guiamos um carro, as regras com que ele foi fabricado e que aprendemos para conduzir, servem para derimir aleatórios, aonde quero ir, o trânsito que encontro a cada passo, as curvas a fazer, etc. É aliás esta correlação entre regras e aleatório (que define o motivo de jogo em Derrida) que obriga as ciências a experimentarem em laboratórios, fora da cena aleatória dos fenómenos, isto é, obriga-as a criarem condições de determinação. Contra a ideologia determinista de muitos cientistas, a única coisa que eles descobrem é sempre do tipo: ‘se se derem tais condições, acontece isto ou aquilo’, mas o ‘se’ hipotético não está nas mãos deles.
20. Os contextos em que as coisas acontecem são sempre relativos, mas isso não impede que tenhamos muitas certezas sobre muita coisa (mas não sobre o futuro). Como também não implica relativismo moral: bem pelo contrário, é o facto de haver tanto aleatório e de ele poder ser tão gravoso para terceiros, que sempre obrigou as sociedades humanas a terem critérios de bem e de mal, como acima exemplifiquei com quatro interditos fundamentais (§ 7). O direito, histórico e portanto relativo, não é relativista: ele impôs-se historicamente para defender os fracos da prepotência dos fortes, o relativismo consiste na manipulação que estes conseguem fazer dele as mais das vezes. Este motivo da ben(mal)dição como acontecimento levou os profetas autores da Bíblia judaica, além daquela moral que receberam dos seus antepassados, a pensarem uma ética que se poderia formular assim: tudo o que tens como abundância e riqueza foi doação, mais do que resultado da tua força e da tua mão (Dt 8.17), portanto ama o teu vizinho como a ti mesmo (Lv 19.18), dá-lhe do que lhe falta e a ti sobra, dá do que recebeste como dom. Esta ética, que os evangelhos cristãos retomarão, é válida para além de se acreditar ou não esses textos, um pouco como a definição de Platão nos vale ainda, embora não aceitemos o seu dualismo.
21. Termino com um parágrafo com ‘bola branca’, como nos filmes de televisão com cenas chocantes. Trata-se duma espécie de prenda ao leitor, que só há uma dúzia de anos, quando voltei a ler a Bíblia, dei por ela e não me lembro de alguma vez ter visto citado por quemquer que seja. Creio ser a pior narrativa de mal que terei alguma vez lido, ela está no termo da lista das maldições que evoquei no início: o reverso absoluto de ética do dom que acabo de evocar, a lei da selva que ganha sobre a da reprodução sexual. “A mais delica­da e mole das mulheres do teu povo deitará olhares pérfidos so­bre o homem que ela abraça, e mesmo sobre o seu filho ou filha, esconder-se-á deles para co­mer a criança que ela dá à luz, na pri­vação de tudo, por causa do cerco e da des­graça a que o teu ini­migo te reduzirá em todas as tuas ci­da­des” (Dt 28.56-7).
Fernando Belo
[1] Escrita no seu essencial, segundo a exegese desde meados dos anos 1970, entre 640-630 (Deuteronómio) e o primeiro quartel do século V o mais tardar (a chamada redacção sacerdotal), durante um século e meio assim.
[2] Primeira metade século IV.
[3] A qual, dela mesma, ao contrário do que se diz habitualmente, não é um ‘mecanismo’.
[4] “Em todo o caso nada no biológico indica a proeminência da sexualidade sobre outras funções”, diz em polémica com a psicanálise um dos melhores livros de biologia que eu li, de J.-D. Vincent (Biologia das paixões, Europa-América, p. 148). Ele próprio fornece material que permite pensar o contrário. Acrescente-se que as reflexões que estou fazendo não as aprendi lendo biólogos, deduzi-as do que com eles aprendi.
[5] Dobras dos intestinos, alvéolos dos pulmões, circunvoluções do cérebro: maneiras económicas de aumentar superfície num volume fechado.
[6] Aqui falo um pouco de cor, como se os mamíferos fossem a regra.
[7] P. Clastres, “Arqueologia da violência: a guerra nas sociedades primitivas”, in P. Clastres e outros, Guerra, Religião, Poder, ed. 70, 1980, pp. 11-45.
[8] Deuteronónio, cap. 5. ‘Não cometer adultério’, em sociedades patriarcais, em que a mulher era ‘parte’ da casa, como os filhos, os servos e os rebanhos, como se vê pelo último interdito, a seguir a estes quatro.
[9] Também a ‘santa’ Bíblia, no seu livro porventura mais afirmativo porque ainda não marcado pela experiência do fracasso, o Deuteronómio, sanciona no seu cap. 20 a guerra dos Hebreus contra os povos vizinhos de forma extremamente ‘pouco santa’.
[10] Dependentes da oposição mitológica entre o Céu dos Deuses e a Terrra dos Humanos, que - após a Terra se ter tornado, com Copérnico e Galileu, um astro do Céu - veio a deslocar-se, a partir de Descartes, para a oposição entre o sujeito e o objecto.
[11] Que é discutível que para Platão tivesse uma Forma ideal.
[12] Com efeito, há algumas passagens bíblicas (1 Reis 21.10,13, Job 1.5,11 e 2.5,9, Salmos 10.3) em que os tradutores franceses da Bíblia de Jerusalem e da Tradução Ecuménica dita TOB, talvez por dificulda­des de ordem teológica, propõem que se trate de eufemismos (sic) ou de antifrase as utilizações de ‘barak’ com claro sentido, no contexto, de ‘maldição’.
[13] A que Freud se faz eco na Traumdeutung, se dizer se pode: a primeira referência que ele faz aos irmãos é sob o signo da rivalidade. Foi algo que me chocou muito, a primeira vez que o li, por ser duma família muito católica de 9 irmãos.
[14] Há uma muito curiosa tese do exegeta Armindo dos Santos Vaz, A visão das origens em Génesis 2,4b-3,24. Coerência temática e unidade literária, ed. Didaskalia e Carmelo, 1996, que segue o texto hebraico frase a frase, palavra a palavra, para mostrar que a perspectiva desse texto é ‘positiva’ sobre a condição humana, sendo as traduções correntes ditadas por uma teologia negativista, com origem provável na Patrística cristã do século IV e mormente em S. Agostinho.
[15] Eco talvez à compreeensão de que as mulheres não tinham cio como as fêmeas dos seus rebanhos, corresponde provavelmente ao medo patriarcal do desejo das mulheres, ao espanto perante aquele sangue menstrual que delas escorria (quando o sangue corre, é sinal de morte).
[16] Como Is 55.10-11 fala do ciclo da água.
[17] Ver Belo, Lecture matérialiste de l'évangile de Marc, récit, pratique, idéologie, Cerf, Paris, 1974, p. 67.
[18] Na sua estrutura em dez palavras e seis dias, texto de razão que pede meças ao Timeu de Platão e que faz pena ver tão maltratado pelos fundamentalistas que se apoiam nele contra a ciência da evolução
[19] Tanto animais como humanos são vegetarianos: a lei da selva é atenuada (a licença para comer carne, mas não sangue, virá mais tarde, em Gn 9.3).

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