terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Economia, direito e moral

 
1. O envio do orçamento ao T. Constitucional provocou uma querela entre profissionais de duas ciências sociais diferentes, economia e direito, de cada lado se vendo o social com os olhos do seu paradigma, sem que haja uma ciência da sociedade em geral capaz de dirimir, uma sociologia cuja metodologia abranja a complexidade inextricável das sociedades modernas. Só há sociologias regionais, do trabalho, da escola, da família, das empresas, e por aí fora. Ora, a economia não é senão a sociologia dos mercados, cuja unidade científica é a moeda que reduz o que se vende e compra a mercadorias, a um jogo de custos e preços, percas e lucros. [A redução é uma operação essencial do pensamento, a começar pela linguagem: ‘casa’ permite pensar inúmeras casas, reduzindo a imagem singular de cada uma (contra o slogan idiota corrente), a definição reduz os ‘acidentes’ para pensar a ‘essência’, o laboratório reduz o contexto ‘real’ dos fenómenos a estudar.] E assim como o direito ocupou de facto, durante os séculos de instauração da modernidade (contra a teologia e a metafísica) o lugar da ciência geral da sociedade que se estava a gerar, assim o faz agora a economia, os mercados estendendo-se por todo o lado.
2. Será o direito apenas uma sociologia das leis? Tal como a medicina é uma ciência que visa a saúde (e não apenas uma biologia humana), o direito visa a justiça: são ambas atravessadas pelo bem e pelo mal, ciências terapêuticas no âmago dos seus diagnósticos e decisões. A questão é: e a economia não deve também ter o bem e o mal em conta? Creio que é o que movia Keynes e o epíteto ‘política’ dado à economia, mas também as perspectivas conservadora (contra o progresso, devastador social) e revolucionária (a favor das classes trabalhadoras) os tinham em conta, às suas maneiras. Ora, a força do dito neo-liberalismo foi o de reconhecer a redução monetária como elemento crucial do seu laboratório, tendo assim evacuado as problemáticas políticas e o bem e o mal. Só que a redução significa que a economia monetarista se situa claramente como uma ciência regional como as outras, uma sociologia dos mercados: confessa-se inoperante face ao direito constitucional, como se vê pela confusão que lhes faz a jurisdição dum tribunal de não economistas sobre um orçamento.
3. Parece não serem capazes de ver que um orçamento é uma peça essencialmente política nas suas decisões, que eles crêem económicas. O que cortar na saúde ou na educação, não é coisa que se faça às cegas, isto é, com olhos reduzidos ao paradigma económico, mas tem a ver com o bem: saúde ou transmissão de saber. Destas coisas, há outros especialistas que sabem o que os economistas não sabem, que a ciência deles reduziu. Há um ponto moral (e político) interno à ciência dos mercados que o monetarismo obliterou, ao reduzir os salários a um mero factor contabilístico, ‘custos’ de produção que se podem eliminar para melhorar a dita competitividade, isto é, o dito crescimento económico por via do crescimento dos lucros. Nesta linguagem monetarista, o desemprego não aparece como mal, não só mal de tal indivíduo, mas mal dum cidadão, de alguém que nasceu e cresceu numa sociedade moderna que só dá condições de vida a quem tem emprego. Não se trata dum problema de pobreza nem de assistência social ou de Estado, mas de ciência económica. E trata-se do mais elementar de todos os direitos: o direito à vida como supremo bem, que excede de longe o crescimento dos lucros. O bem da eco-nomia, regras (nomos) da casa (oikos), é a saúde da actividade económica.

4. Não quer dizer que ninguém possa ser desempregado (segundo contratos), mas parece cada vez mais claro que a tecnologia electrónica está a provocar um crescimento económico que gera desemprego, ao contrário da crença economicista que grassa por aí como ‘solução’ da crise. Reduzir os tempos de trabalho para que toda a gente tenha emprego, eis o problema económico que os economistas não vêem, não vêem que foi assim com as várias etapas de progresso tecnológico. Ganhar tempo livre, mais frugal talvez, eis uma motivação terapêutica digna de economistas jovens. Há 30 anos que André Gorz o anunciou, ao dizer “adeus ao proletariado”.
 
Público, 11 de Fevereiro de 2013


2 comentários:

Luís de Barreiros disse...

Percebo pouco destes assuntos, das suas linguagens e terminologias mais apropriadas. Portanto perdoem-se-me algumas imprecisões. Mas aqui vai. Sim, concordo com a tua proposta de redução dos tempos de trabalho. Mas há um outro problema que me parece bastante grave. É o de que em certos serviços se colocam não só os funcionários a cumprir horários exaustivos, mas, ao mesmo tempo, a fazer o trabalho de dois, três e até mais. Acontece que esta lógica vai no sentido de fazer com que o indivíduo estoire literalmente acabando ele mesmo por se despedir, supondo provavelmente muitas vezes que é incapaz, e não podendo ser indemnizado. Em sua substituição chega outro, fresquinho que nem uma alface, cheio de vontade, mas com o mesmo destino. Com o sério e grave risco de que a estas pessoas seja passado, subliminarmente, uma espécie de “atestado de incapacidade”. É por isso que os vemos constantemente a serem substituídos, ou então, num regime de revezamento, eu diria, perverso, dando o litro, depois descansarem durante uns tempos para voltarem de novo. Ou saltando de posto de trabalho em posto de trabalho. Num regime de contratos que desconheço, mas talvez tenham a ver com o chamado trabalho precário e temporário dos recibos verdes, etc. Saem, voltam a entrar, etc. Ou então já não voltam… Consta, segundo me disseram, que estes processos – escrevi “processos” – não são viáveis na função pública. Isso ultrapassa-me. Mas na função pública haverá certamente também muita coisa complicada. Será o sistema? Isto é muito sério! Pois é massivo! Tem a ver certamente com o "economicismo" e com a lógica do lucrativismo.Etc.,etc.,etc.
Saudações!

Luís de Barreiros disse...

Acrescento somente que quanto aos recibos verdes trabalhei vários anos com eles. Quanto ao trabalhar por dois, três, ou mais, falo com conhecimento de causa. Admito que não foi por muito tempo, para meu bem... Mas prefiro usar apenas um exemplo de que não tenho experiência, mas que presencio e que está à vista de todos, para não falar dos que ninguém dá por isso e que devem ser muitos. Lembro assim as grandes e pequenas superfícies dos super e hipermercados aonde as caixas de cobrança são muitas mas com poucas em funcionamento, ao mesmo tempo que essas poucas têm bichas de gente à espera da sua vez com os funcionários (os caixas) sobrecarregados a trabalhar por aqueles que não estão lá, nas outras caixas vagas. É deste, e de muitos outros modos que desconhecerei, que esta estranha máquina impede a redução dos tempos de trabalho e produz o desemprego, etc.