quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Um passado que nunca foi presente



1. A expressão, bizarra em primeira leitura, é do filosofo francês Emmanuel Levinas para dizer a incidência dum Deus sem essência nem existência, além do Ser, do seu agir nos justos que fazem mais do que o que podem e querem, do que aprenderam, efeito dum “traço diacrónico”: o que se poderia comparar com noções como ‘inspiração’ ou ‘revelação’, que justamente Levinas quer evitar, despersonalizando o divino, por assim dizer. No texto “Da fecundidade espiritual” (neste blogue 3/7/2018), nos seus §§ 12-14 procurei explicitar esta proposta levinassiana, contrapondo-a à experiência da aprendizagem interpretada como traço sincrónico e ligada à différance de Derrida: aprender a ler, por exemplo, faz-se num relativamente longo presente que terá incidências de passado nas repetições posteriores, sempre que se lê.
2. Mas esta minha explicação, adequada no que diz respeito a Levinas, foi-o menos em relação a Derrida; este retomou por vezes a expressão por conta do que ele próprio escrevia e pensava como différance, motivo que implica além do adiar também o repetir: só posso repetir o passado porque ele já era repetição, passado pois também quando era presente: nenhum ‘presente’ é puro e nele há sempre mais do que um passado que, ao adiar o futuro presente; quando aprendi a ler, na cartilha maternal de João de Deus, “cão casa gato”, já repetia leituras futuras variadas. Sem linearidade causal, é essa a nossa dificuldade nestas coisas das diferenças entre os tempos que também são diferenças entre coisas e repetições que nunca se repetem exactamente: é que aprender é aprender a repetir e nunca se repete indenticamente quando se repete a mesma palavra, já que o contexto é diferente e é ele que dá sentido a essa palavra. Darei alguns exemplos  simples.
3.O primeiro é o dos sonhos., em que se jogam personagens oníricas variadas que a sua interpretação permite reconhecer como gente que jogou na história do sonhador, mas que os mecanismos do sonho – condensação, deslocamento e figuração onirica, segundo Freud – alteram de tal maneira que esse carácter ‘histórico’ o torna, senão irreconhecível, pelo menos estranho na sua actuação, não tendo pois nenhum contraponto ‘presente’ no tal passado histórico, que pois não houve assim.
4. Outro exemplo é da ordem dos limites intrínsecos da investigação histórica, do trabalho do historiador em torno dos documentos duma época dada, seja o caso de Galileu. Se o trabalho for bem feito, restitui-nos uma biografia do físico italiano fidedigna, que significa o melhor que conseguimos. Mas o ‘passado’ assim restituído por hipótese brilhantemente nunca foi presente no século XVII, há algo que nenhum historiador pode alguma vez conseguir captar no seu retrato de Galileu: aquilo que ele não sabia e que o historiador sabe que sucedeu depois, aquilo que ele estranharia se voltasse à vida, a força da gravidade descoberta por Newton, por exemplo. Esse ‘não saber’ não lhe era presente mas faz parte do passado de Galileu como inacessível: os anacronismos são um dos pecados maiores da investigação histórica. Não se pode contar a história de Galileu como se não tivesse havido história da física a seguir, mas devia-se, deve-se aproximar desse desiderato o mais que seja possível. O que permite imaginar grandes inventores sem saberem do que veio a ser feito do que eles inventaram: o Platão renascentista tornado critico do Aristóteles medieval ou, entre o trágico e a farsa, Jesus e a inquisição, Marx e o estalinismo (“Marx et Jesus, ce sont des cocus”, disse José Escada, o pintor, uma noite na casa parisiense do Nuno Bragança).
5. Nos antípodas deste exemplo com ‘gente grande’, seja a memória de acontecimentos antigos da nossa vida. Quando restituímos algum, muito importante ou mais ou menos trivial, sofremos a mesma dificuldade do historiador, apenas com a ilusão de que nós ‘sabemos’, estávamos lá. Lembro-me duma birra que fiz com 4 ou 5 anos, chegado com os meus irmãos à quinta dos meus avós à beira de Matozinhos para passar férias tendo a minha mãe ficado em Lisboa com outra gravidez ou a convalescência da última, e eu queria voltar para casa e fiquei mais de uma hora a chorar no jardim sem entrar. Não são apenas detalhes que me escapam, não me lembro da viagem de comboio até ao Porto, não consigo voltar à cabeça da criança que fui, a tudo o que não sabia e agora sei. É certo que é um caso extremo, uma das primeiras lembranças que tenho, mas o mesmo se passa quando restituo a cena do meu primeiro namorico que decidiu a minha vida, não sei da minha bela ingenuidade como hoje a lembro, já que, por definição, o ingénuo não se sabe assim. Quando penso nesses passados, o presente deles escapa-me, toldado pelo que foi passando. O tempo da memória é deveras complicado.

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