1. A expressão, bizarra em primeira leitura, é do
filosofo francês Emmanuel Levinas para dizer a incidência dum Deus sem essência
nem existência, além do Ser, do seu agir nos justos que fazem mais do que o que
podem e querem, do que aprenderam, efeito dum “traço diacrónico”: o que se
poderia comparar com noções como ‘inspiração’ ou ‘revelação’, que justamente
Levinas quer evitar, despersonalizando o divino, por assim dizer. No texto “Da
fecundidade espiritual” (neste
blogue 3/7/2018), nos seus §§ 12-14 procurei explicitar esta proposta
levinassiana, contrapondo-a à experiência da aprendizagem interpretada como
traço sincrónico e ligada à différance de Derrida: aprender a ler, por exemplo, faz-se num relativamente longo
presente que terá incidências de passado nas repetições posteriores, sempre que
se lê.
2. Mas esta minha explicação, adequada no que diz
respeito a Levinas, foi-o menos em relação a Derrida; este retomou por vezes a
expressão por conta do que ele próprio escrevia e pensava como différance, motivo que implica além do adiar também o
repetir: só posso repetir o passado porque ele já era repetição, passado pois
também quando era presente: nenhum ‘presente’ é puro e nele há sempre mais do
que um passado que, ao adiar o futuro presente; quando aprendi a ler, na
cartilha maternal de João de Deus, “cão casa gato”, já repetia leituras futuras
variadas. Sem linearidade causal, é essa a nossa dificuldade nestas coisas das
diferenças entre os tempos que também são diferenças entre coisas e repetições
que nunca se repetem exactamente: é que aprender é aprender a repetir e nunca se repete indenticamente quando se repete
a mesma palavra, já que o contexto é diferente e é ele que dá sentido a essa
palavra. Darei alguns exemplos simples.
3.O primeiro é o dos sonhos., em que se jogam
personagens oníricas variadas que a sua interpretação permite reconhecer como
gente que jogou na história do sonhador, mas que os mecanismos do sonho –
condensação, deslocamento e figuração onirica, segundo Freud – alteram de tal
maneira que esse carácter ‘histórico’ o torna, senão irreconhecível, pelo menos
estranho na sua actuação, não tendo pois nenhum contraponto ‘presente’ no tal
passado histórico, que pois não houve assim.
4. Outro exemplo é da ordem dos limites
intrínsecos da investigação histórica, do trabalho do historiador em torno dos
documentos duma época dada, seja o caso de Galileu. Se o trabalho for bem
feito, restitui-nos uma biografia do físico italiano fidedigna, que significa o
melhor que conseguimos. Mas o ‘passado’ assim restituído por hipótese brilhantemente
nunca foi presente no século XVII, há algo que nenhum historiador pode alguma
vez conseguir captar no seu retrato de Galileu: aquilo que ele não sabia e que o historiador sabe que sucedeu depois,
aquilo que ele estranharia se voltasse à vida, a força da gravidade descoberta
por Newton, por exemplo. Esse ‘não saber’ não lhe era presente mas faz parte do
passado de Galileu como inacessível: os anacronismos são um dos pecados maiores
da investigação histórica. Não se pode contar a história de Galileu como se
não tivesse havido história da física a seguir, mas devia-se, deve-se aproximar desse desiderato
o mais que seja possível. O que permite imaginar grandes inventores sem saberem
do que veio a ser feito do que eles inventaram: o Platão renascentista tornado
critico do Aristóteles medieval ou, entre o trágico e a farsa, Jesus e a
inquisição, Marx e o estalinismo (“Marx et Jesus, ce sont des cocus”, disse
José Escada, o pintor, uma noite na casa parisiense do Nuno Bragança).
5. Nos antípodas deste exemplo com ‘gente grande’,
seja a memória de acontecimentos antigos da nossa vida. Quando restituímos
algum, muito importante ou mais ou menos trivial, sofremos a mesma dificuldade
do historiador, apenas com a ilusão de que nós ‘sabemos’, estávamos lá.
Lembro-me duma birra que fiz com 4 ou 5 anos, chegado com os meus irmãos à
quinta dos meus avós à beira de Matozinhos para passar férias tendo a minha mãe
ficado em Lisboa com outra gravidez ou a convalescência da última, e eu queria
voltar para casa e fiquei mais de uma hora a chorar no jardim sem entrar. Não
são apenas detalhes que me escapam, não me lembro da viagem de comboio até ao
Porto, não consigo voltar à cabeça da criança que fui, a tudo o que não sabia e
agora sei. É certo que é um caso extremo, uma das primeiras lembranças que
tenho, mas o mesmo se passa quando restituo a cena do meu primeiro namorico que
decidiu a minha vida, não sei da minha bela ingenuidade como hoje a lembro, já
que, por definição, o ingénuo não se sabe assim. Quando penso nesses passados,
o presente deles escapa-me, toldado pelo que foi passando. O tempo da memória é
deveras complicado.
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