terça-feira, 7 de março de 2017

Filosofia com Ciências: Fenomenologia ... quê?



1. A Physica de Aristóteles tem como objectivo a compreensão do movimento, mormente do dos vivos, que o têm por eles mesmos: definiu a ousia e destacou dela os “acidentes”; a consideração de que o tempo é a medida do movimento sublinha bem que, ao contrário dos modernos, o movimento é nele prioritário em relação ao tempo. E ao mesmo tempo é como se esta definição já anunciasse vinte séculos antes a Física de Galileu e Newton que também busca entender o movimento, mas agora apenas o deslocamento dos inertes: há que o medir em laboratório (pesando água à falta de relógios precisos!), começando precisamente pelo movimento, pelo que se chamou ‘cinética’, antes da ‘dinâmica’, que introduziu o motivo de força e veio a possibilitar a invenção de máquinas capazes de se moverem sozinhas, desde que se as ‘alimente’ de energia (os vivos alimentam-se também de moléculas orgânicas). O pensamento contemporâneo, o do século XX que foi vertiginoso, não parece ter dado pelo facto de que uma das suas ‘variáveis’ preferidas, o tempo, não é senão a “medida do movimento, com o anterior e o posterior” (Aristoróteles), não parece ter compreendido o lugar estrutural do movimento, nem na fenomenologia de Husserl, focada sobre a percepção, nem no estruturalismo, pouco à vontade para explicitar o tempo e o movimento das ‘estruturas’.
2. Ora, quem ler o texto neste blogue sobre intencionalidade e cuidado que apresentei ao Congresso de Fenomenologia em Braga (abril de 2016), percebe que me situo na corrente fenomenológica aberta por Husserl tendo em conta as dissidências de Heidegger e de Derrida, busco responder à reclamação do fundador: ‘retornar às coisas’, aos fenómenos, portanto considero que faço ‘fenomenologia’ (bem ou mal, é outra coisa). Até aqui, tem havido todavia um embaraço, quando por exemplo me dizem que Heidegger e Derrida não são fenomenólogos, o que só se entende definindo a fenomenologia em relação a Husserl; mas como o que eu faço também não coincide com nenhum destes dois, fica claro que me falta um adjectivo qualquer a esclarecer que ‘fenomenologia’, que no subtítulo do 2º volume do Le jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida era “fenomenologia reformulada”. O que diferencia estes dois pensadores de Husserl pode ser dito a introdução da temporalidade (um no mundo, o outro na escrita), o que faz que a fenomenologia do mestre se adjectivaria como ‘estática’; ora o motivo heideggeriano de doação retirada e o motivo derridiano de duplo laço são o que permite dar conta do movimento dos fenómenos. Por outro lado, havendo neste retorno aos fenómenos uma recuperação das ciências, há que celebrar quer a herança de Aristóteles, a sua Physica sendo a primeira ‘filosofia com ciências’ que durou vinte séculos, quer a herança de Galileu e Newton, cuja cinética inaugurou as ciências modernas. Em vez de Fenomenologia do movimento, que seria regionalizá-la, seria – fidelidade a três grandes antepassados – Fenomenologia cinética.
3. Mas há uma dificuldade com esta palavra ‘cinética’ que praticamente deixou de ser usada, só é conhecida dos manuais de física liceal, o que traria à designação algo de antiquado, erudito e sem graça. Então, uma vez que abarca as principais ciências com os respectivos ‘géneros’ de movimento (deslocamento no espaço, transformação química, crescimento dos vivos, fala e escrita, mudança social e psicológica), e ‘género’ pede ‘geral’ (‘general’ em latim, francês, castelhano), deverá ser algo como Fenomenologia Geral. Ambicioso, é certo.

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