“Posso dizer que as minhas mãos, os meus pés, etc,
são meus órgãos neste sentido em que eu ando com os meus pés,
agarro com as minhas mãos; mas isto releva do vivido,
e não tenho que me deixar encerrar
numa ontologia da alma para falar assim.
Pelo contrário, quando me dizem que eu tenho um cérebro,
nenhuma experiência viva, nenhum vivido, corresponde a isso,
aprendo-o nos livros”
(Ricœur)
1. Trata-se aqui de retomar “a velha
questão do conhecimento” de há uma ou duas semanas, agora do prisma da
irredutibilidade entre o discurso das ciências sobre os humanos, nomeadamente a
neurologia, e o discurso experiencial de cada um no seu mundo tribal
quotidiano, quando diz ‘eu
penso que...’. A fenomenologia que venho tentando deslindar e que joga com o
contributo das ciências situa-se dum dos lados da barricada, enquanto que
Descartes firmou o seu discurso sobre o “eu penso”, dando origem às filosofias
da consciência e do sujeito. Na exergue, dum excelente debate com o
neurologista Jean-Pierre Changeux, o filósofo Paul Ricœur – La nature et la
règle. Ce qui nous fait penser (ed. Odile Jacob, 1998, p. 26) – situa muito bem
esta irredutibilidade, que outrora coloquei entre neurologia e psicanálise (neste
blogue). O exemplo de Ricœur situa-se no discurso quotidiano, enquanto que a
psicanálise, analisando discursos do quotidiano mas colocando-lhe limites
laboratoriais (diga tudo o que lhe vier à cabeça, mesmo estúpido ou obsceno,
não me oculte nada) releva também dum discurso científico; só que a argumentação
filosófica do próprio Ricœur (como a de Descartes) também deve valer para
outros e passar para o lado do saber que se aprende com os livros onde eu a li.
Por outro lado, Changeux defendeu, numa entrevista em Lisboa a que também faço
eco num texto neste blogue, a expectativa de que o neurologista possa vir a
saber o que se passa ‘dentro’ dos neurónios dos seus pacientes experimentais, o
que – sendo politicamente terrível, os torturadores não desapareceram – mostra
uma tendência ‘monista’, digamos assim, que me parece inaceitável: sem dúvida
que trato aqui de pensar além do dualismo da tradição greco-europeia, mas não é
ele que está em causa nesta questão, que implica um ‘dualismo metodológico’,
que releva de dois tipos de laboratórios científicos, irredutíveis enquanto
tais em seus paradigmas, prevalecendo a tese kuhniana da respectiva
incomensurabilidade, ainda mais indiscutível quando se trata de diferentes
ciências. A grande alegria que me trouxe Damásio, a “mente” ser os neurónios
enquanto só o próprio lhes tem acesso, veio-me desta profunda discordância com
Changeux de quem tanto aprendi[1].
2. Presumo que os grandes idealistas
que precederam Descartes, como Platão, Agostinho e Lutero, teorizaram a partir
de experiências pessoais de pensamento que lhes pareciam não deverem nada às
tradições anteriores nem à aprendizagem e que é justamente o que parece ser o
ponto de partida do Cogito,
sendo a actividade de duvidar dos antecessores que lhe dá o mote. Então a grande
fortuna que ele teve como antepassado dos pensadores europeus foi a de os
trazer à auto-crítica filosófica, de fazerem da respectiva capacidade de
pensamento e de análise a fonte dos seus textos em ‘eu’ (embora discutindo os
dos outros), tornando este índice do locutor / escritor, o pronome pessoal das
gramáticas clássicas, numa categoria substantiva genérica (aliás sem ‘género’,
nem homem nem mulher, disse Françoise Collin: “eu sou uma mulher, mas eu não é
uma mulher”, afirmação da duplicidade dos dois ‘eus’, o primeiro indicando
Françoise, o segundo sendo um conceito abstracto filosófico). Este ‘eu’
filosófico encheu os textos até à critica estruturalista do ‘sujeito’
sartriano, enquanto que o ‘eu’ pessoal do pensador que se invoca a si no que
escreve permanece (no tipo de leitura textual que fiz, inspirado em Barthes e
em Benveniste), como um sintoma duma dificuldade da argumentação que esse recurso à esfera da escrita
manual (ou dactilográfica, isto é, com os ‘dedos’ nas teclas da máquina de
escrever ou do computador) supera sem dar por isso. Ou seja, sintoma dum quase
erro, duma errância argumentativa que terá a ver com as próprias questões do texto:
na metodologia deste tipo de leitura assinala-se que o ‘conhecimento quotidiano’
é proscrito por definição pelo
conhecimento filosófico (ou científico), que são irredutíveis, incompatíveis.
Paradoxo desta corrente dominante, porventura ainda hoje, do pensamento
ocidental, que tomou alicerces nesse ‘eu’ pessoal e intransmissível do Cogito de Renato, assim renascendo, ele e a filosofia.
3. O quarto capítulo do Discurso
do método[2] em que o Cogito aparece recorre na sua sequência à demonstração
da existência de Deus como maneira de confirmar a verdade da regra geral da
certeza metafísica como evidência, a saber que “as coisas que concebemos muito
claramente e muito distintamente são todas verdadeiras”, a qual voltou atrás a
confirmar o cogito: “tendo notado que não há nada nisto – penso portanto sou –
que me assegure que digo a verdade, a não ser que vejo muito claramente que, para pensar, tem
que se ser”. Para ir do “penso portanto sou” em ‘eu’ pessoal, experiência
auto-narrativa de René, à verdade filosófica, foi-lhe necessário o salto
teológico por Deus: onto-teologia, dirá Heidegger, aqui claramente ligando ‘eu’
e Deus, na demonstração vindo com frequência um ‘nós’ filosófico que me parece
assegurar que o ‘eu’ pessoal de René sobrevive no seu plural, tornado este
gnosiológico, verdadeiro nas ‘evidências’, as quais são sempre ‘pessoais’. Se
sai do mundo desligado dos sentidos – citação fabulosa: “vendo que podia fingir
que não tinha nenhum corpo, e que não havia nenhum mundo, nem nenhum lugar em
que eu fosse” –, fica-lhe o Deus verdadeiro, que não se engana nem nos engana,
como a relação possível ao conhecimento de que outros contemporâneos farão
variantes – ocasiões e percepções e inenarráveis mónadas –, o conhecimento vai
do mundo para Deus e dele para as almas, ou dele para ambos. Até que Kant
varreu a casa, retomando, em seu contexto diferente, a atitude critica de
Aristóteles ao platonismo: Deus, alma e coisas em si, substanciais, fora do
âmbito da razão pura, tal como Newton lhe permite agora concebê-la.
4. Mas Kant só pôde fazer a sua
critica porque, além destes filósofos (‘teólogos’) em quem a alma se ligava
directamente a Deus para dele receber conhecimento do mundo, houve uma outra
corrente, sobretudo anglófona, que retomou a relação directa dela ao mundo por
via dos sentidos sem fazer intervir o divino, das sensações se originando as
ideias, Locke, Hume, Condillac, com atenção à linguagem no primeiro e no
terceiro, a ‘alma’ desaparecendo no segundo e no terceiro não tendo
praticamente função alguma. Deles também Kant herda as ‘sensações’ que o
obrigam à síntese a priori dos fenómenos pelo espaço e tempo, o que implicou
manter uma distância aos ‘númenos’, às coisas e gentes que agem na esfera da
razão prática, distância paralela da da ousia aristotélica aos acidentes, e que lhe permitiu
ignorar o papel da linguagem no entendimento (o ‘signo’ assinalado de passagem,
como quem não dá por ela). Ora, como J. Paisana sublinhou na sua tese, houve
uma diferença decisiva entre ele e Husserl neste ponto, já que o fenomenólogo
descurou as sensações da fenomenologia kantiana para se firmar na percepção do
objecto e mantê-lo o mesmo nas
variações das percepções possíveis e das imaginações, recordações, etc. Se é
certo que manteve este nível como “ante-predicativo”, sem intervenção da linguagem
que só vem no nível categorial do juízo, ofereceu em todo o caso com a intencionalidade
a ocasião a Heidegger para inverter os dois níveis e colocar assim a linguagem,
o discurso, no que se poderia chamar a infra-estrutura do conhecimento, supondo
os tais ‘sentidos’ e percepções já como parte da compreensão, esta já lá com pré-compreensão, que o discurso
interpreta. O conhecimento é nele já algo de ‘global’, se dizer se pode, como
convém a um ser-no-mundo, com
as emoções incluídas: nem sequer foi tematizado em termos de ‘conhecimento’,
como quem sabe, embora ainda sem o saber dizer, sabe e não sabe, que o fulcral
aí é a aprendizagem que, com a alimentação, é o processo que institui todos os
seres no mundo na escala da animalidade.
5. Para meu espanto, a consideração
que pensava fazer aqui para colocar a questão do Cogito na perspectiva da fenomenologia que venho
praticando, já a tinha feito John Locke, contemporâneo de Newton, que procurou
pensar a questão do conhecimento numa analogia ‘mecânica’ com os trabalhos
deste em física, o que o levou a introduzir o tempo no Cogito: que este não consiste no ‘eu’ mas no pensar e que pensar é temporal,
sucessão de ideias, duração entre elas. Descartes não é citado, mas mostra-se
bem que é ele que é visado. “É evidente, para quem quer que queira tão somente
observar o que se passa no seu espírito, que há um comboio de ideias que se
sucedem constantemente uma à outra no seu entendimento, durante todo o tempo em
que esteja acordado. [...] Pois durante o tempo em que nós estamos a pensar, ou
em que recebemos sucessivamente várias ideias nos nossos espíritos, sabemos que
existimos efectivamente”. Esta noção mecânica do conhecimento levá-lo-á a dar
pela importância das palavras nele, as quais, mais o tempo e as “associações de
ideias” caras aos empiristas (de que Freud fará a matéria prima da psicanálise),
implicam a não necessidade do recurso a Deus, como a crítica política da noção
de “ideias inatas” que, no filósofo da tolerância, visa também além do
cartesiano a dogmática religiosa. “Uma vez que tal opinião é recebida, ela
alivia os preguiçosos das fadigas da investigação duvidosa que incide sobre
tudo o que antes se chamava inato [ligada ao primado das sensações, a
aprendizagem, embora implícita, faz parte do arsenal empirista]. Não foi
mesquinha vantagem para os que afectavam ser mestres e professores agirem da
mesma maneira em relação aos princípios e afirmar que eles não devem ser postos
em dúvida. Pois que uma vez estabelecido o dogma de que há princípios inatos,
os seus fieis foram postos na necessidade de receber certas doutrinas como tais,
o que os aliviava de usar da sua razão e do seu juízo pessoal e os levava a
aceitar as suas opiniões com confiança, sem mais exame; graças a esta atitude
de credulidade cega, podia-se governá-los mais facilmente e isso era útil aos
homens de qualquer espécie que tivessem as aptidões e funções requeridas para
lhes dar princípios e os guiar. Não é pequeno o poder que se dá a um homem
sobre outro, esse de lhe dar a autoridade de ditar princípios e de ensinar verdades
postas fora de discussão e de fazer engolir a um homem, como princípio inato,
aquilo que pode servir ao desígnio do que ensina”[3].
6. Onde fica então o ‘eu’ dos
filósofos europeus na fenomenologia aqui desenhada? Qual o lugar do ‘sujeito’ no estruturalismo que o
dissolveu? É um problema que aflige os neurologistas, tendo havido tendências
para achar que no cérebro se
repetia a cena do mundo, com ‘imagens mentais’ (que ataquei no Público, primeiro texto deste blogue, de maio de 2008) e
‘homúnculos’ cerebrais, quando os seus laboratórios só encontravam química e
electricidade iónica. O ‘eu’ que eu digo e penso é uma palavra, pronome pessoal
das gramáticas, deíctico que indica o que fala (Benveniste): o que é que lhe
corresponde no cérebro? Todo ele em funcionamento como ‘mente’, saber de si que
dos órgãos periféricos vem e para os músculos da acção vai, todo este sistema
da mobilidade do ser no mundo enquanto se conhecendo em seus neurónios. Em
movimento, pois, tal como o pensamento do Cogito segundo Locke, desdobrado no tempo, “comboio de
ideias” e não só, das tais sensações e outras emoções, toda a panóplia
psicológica de seres no mundo que aprendem constantemente, falam e labutam,
pensam o que lhes vem lembrando-se do aprendido (‘souvenir’, diz-se em
francês). Ou “o olho e o mundo na fala” (Derrida), que “não há fora de texto”,
apenas o que “vemos, ouvimos e lemos” (Sophia) com o que mexemos, e nós mesmos
nos mexemos, no nosso mundo. Eu penso: sou um texto-memória do mundo que
vivo, que vivi, sou um vivo conhecendo o mundo donde sou, em que sou, vindo
d’outrem, com outrem.
O conhecimento e os médias
7. Ser no mundo, muito bem, mas hoje
que mundo somos? eis a questão que o extraordinário desenvolvimento dos médias[4]
põe à velha busca sobre o conhecimento. O ponto de partida é a duplicidade que
a linguagem nos abriu: além do que vemos, ouvimos e mexemos, fazemos, aprendido
e memorizado como já, à sua medida, os nossos congéneres mamíferos, aves e
outros, a linguagem abre-nos mundos que nos contam, quer coisas antigas quer
longínquas, que nunca vimos nem ouvimos, em que não mexemos (sem mãos nem pés),
mas que jogam, podem jogar, no que fazemos (e já aí além da nossa língua, se os
viajantes nos traduzem). A invenção da escrita – depois a sua industrialização
no século XV, os livros e os jornais – completou o “vemos e ouvimos” com o
“lemos”: o que se passa aí? O que releva dos sons que ouvimos é transposto nos
riscos que vemos, desde que haja luz, é claro, de noite há que alumiar a folha
a ler: não há riscos sem luz. Trivial, é certo, mas eu nunca tinha pensado
nisto assim e se o fiz foi trazido pelos médias visuais modernos, o primeiro
dos quais, a fotografia, tem no nome a luz e a escrita, phôs e graphê. O cinema acrescentou-lhe o movimento (kinê), cinematógrafo. E ambos acrescentam à maravilha
das palavras que nos dão a ouvir além donde estamos, a maravilha de nos dar também a ver além, a fotografia no papel, o filme na luz dum
ecrã em que a sala está às escuras. Não vemos na película, vemos na luz, há que
dizer que há aqui um novo passo em relação à escrita das palavras em livros, já
que é ela agora que escreve no ecrã, apagando imediatamente o que acabara de
escrever, incessantemente alumiar e apagar sem que essas transições sejam
percebidas, condição de se ‘ver’ o movimento que elas dão. São diferenças de
luz que se inscrevem diferindo-se, que contam histórias, o cinema é um
espaço-tempo luminoso de cenas. Ora, para ser a luz quem agora escreve, ela não
pode ser a luz do sol que permite ver as coisas e ler as escritas, como
sublinha a escuridão das salas de cinema: a luz do sol, tal como apaga a luz
das nossas lâmpadas e holofotes, também impede a do cinema, como aquelas esta
tem que ser de origem eléctrica, susceptível de ser delimitada num foco e
enviada para o ecrã, que só está lá para ser liso diante da escrita de Lumière
(coincidência do nome dos irmãos inventores ser também o do invento). A
electricidade traz-nos de volta ao italiano Volta e à sua pilha que tornou possível
pela primeira vez a corrente eléctrica, que veio depois, pelas mãos do belga Gramme
(este chama-se ‘escrita’!), a permitir o dínamo, o motor eléctrico que, além de
luz, produz força, trabalho, energia, tornou possível uma outra maneira de
transformar os médias, nomeadamente na dispersão geográfica dos seus
leitores-cidadãos. Começou-se com o telefone e a telefonia, que são a maneira
de a corrente sonora das nossas bocas (e as músicas) se tornar corrente
eléctrica, como que um código eléctrico instantâneo na tradução em ambos os sentidos, à partida fonemas sonoros em
fonemas eléctricos e inversamente à chegada, com o respeito exacto dos sotaques
e entoações, já que ao longe é a própria voz do interlocutor que é ouvida.
Depois as televisões, que também transformam a) a corrente de luz que é a
cinematografia de imagens em enredos vira corrente eléctrica, b) esta corrente
eléctrica vira ondas electro-magnéticas com energia irradiante para as
geografias em que c) antenas domésticas as recolhem, d) voltam a corrente eléctrica
e f) finalmente corrente de luz em ecrãs na penumbra das salas. Em resumo, a
tinta de Gutemberg e a corporação dos tipógrafos que dominou os médias durante
quase cinco séculos, tendo sido condição necessária da modernidade europeia,
foi completada (substituída?) pela luz e electricidade e pela ligeireza dos
dedos (dactilografia) em teclas de composição rápida. Os hardwares dos nossos
computadores, que na Teia tecem médias, não são senão engenhosíssimos cabos de
corrente de códigos eléctricos.
8. Ora bem, assim como a linguagem
alarga o mundo em que somos ‘vendo’, ‘ouvindo e mexendo’, e como os livros e os
jornais feitos por especialistas e profissionais alargam o que somos com
‘lendo’ mas sem lhes responder, assim os de electricidade e de luz: vemos,
ouvimos, mexemos aqui onde somos e falamos, mas também vemos e ouvimos e lemos
(sem mãos nem voz) muito mais além do que antes era possível. A questão é de
tentar perceber, sempre à maneira de quem brinca aos 83 anos, como é que os
médias alteram a questão do conhecimento, sendo à partida plausível que haja quem se admire de tal questão, se nem
sequer a linguagem e muito menos os livros eram tidos em conta: estes, aliás a
escrita, foi a maneira de Derrida entrar em filosofia, de a questionar sobre a
sua exclusão desde o Fedro de
Platão, sobre o seu logocentrismo. Ora, continua a ser este que domina este problema, o que me deve obrigar
a muita humildade, a questão é difícil demais. Começarei por citar um professor
de informática com boa cotação que foi um dia à Faculdade de Letras falar da
sua especialidade e teve que afirmar, com um slide dum mapa, que “o mapa não é o território”.
Afirmação claramente logocêntrica que separa as águas opondo-as: se não é o
território, então é o quê? Um papel com riscos? Um desenho surrealista? Se se
tratar dum território com alguma extensão geográfica, do mapa de Portugal com
os seus 92 mil quilómetros quadrados, rectângulo com eixo norte / sul, como é
que se conhece esse território sem o mapa? Alguém o conhece? Ou, bem pelo
contrário, os mapas são feitos como única maneira de se conhecerem os territórios
de alguma extensão? É que uma maneira de abordar o papel dos médias no nosso
conhecimento do mundo além da nossa tribo seria a de dizer que eles dão-nos
a conhecer histórias das populações dos mapas, povoam-nos, dão-nos
um mundo que só conhecemos através deles, médias, incluindo os livros é claro. O que o mapa conhecedor do território nos diz é
que é com os médias que conhecemos o mundo além da tribo e que hoje não há
mundo cosmopolita fora dos médias, em prolongamento de não haver mundo fora do texto.
9. Este mundo ao longe que eles nos
dão a ver e ouvir, é sem lhe mexermos nem lhe falarmos, como vendo o mapa não
mexemos no território nem enxergamos os detalhes da urbanização (era isso que
interessava o professor?). Como é que esse conhecimento mediático se enxerta no
nosso conhecimento de seres no mundo da nossa tribo? Comecemos por caracterizar
esta: pertencem à nossa tribo todos e todas com quem cada um se cruza no seu percurso
de usos, domésticos e
profissionais e afins, gente familiar e colegas, gente amiga e conhecida, a
quem se aperta a mão e se dá ‘bom dia!’, uns mais próximos do que outros. É
nela que se exercem os três eixos fundamentais do conhecimento que dissemos no
texto anterior, o da visão / mãos, do trabalho, o da visão / pés, do ir e vir e
das viagens, o da audição / fonação da conversa e da informação. Os médias
intervêm neste conhecimento, supondo-o e desenvolvendo-o, mas apenas através do
primeiro termo dos eixos, a visão e a audição, sem mãos nem pés nem voz que
lhes responda. Isto é, sem actividade muscular adequada, como já era na leitura
de livros ou jornais ou na audição de conferências, concertos ou sermões. A
tentação é de pensar que se trata apenas da passividade dum espectador, mas se
um espectador fosse ‘passivo’ não era espectador, nem um leitor era leitor,
como quando se adormece na conferência ou na leitura; a sua actividade, sem a
qual não haveria médias nenhuns, é a de apreender ou compreender o que se
recebe, tal como se aprende tribalmente; é neste aprendido que se enxerta o que
os médias desenvolvem cosmopolitamente.
10. Para prosseguir este esboço de
análise fenomenológica, há que lembrar que a linguagem é estruturalmente
fragmentária e elíptica e que em consequência tal é o nosso conhecimento, cheio
de vazios que os chamados especialistas procuram colmatar no seu campo de
acção. Elíptica significa que,
ao contrário da matemática em sua exactidão, nunca ninguém diz ‘tudo’ sobre o
que quer que seja, apenas escolhemos o que nos parece importante, linhas
mestras dum acontecimento e raros detalhes, que estes sobram sempre
indefinidamente; também assim os filmes e os romances, os ensaios e as teses.
Mas não apenas devido à insignificância dos detalhes, já que as descobertas
fazem-se sempre a partir duma nova atenção a tal ou tal detalhe que leva a
rever um paradigma tradicional, isto é, no elíptico há também enigmas
escondidos, que têm sem dúvida relação à condição estruturalmente enigmática da
nossa aprendizagem e do nosso conhecimento. Também devido ao carácter fragmentário da linguagem que, mesmo quando busca cumprir
lacunas ou resolver contradições, não pode nunca ser contínua além de poucas frases ou parágrafos ou capítulos.
Nem ela consente tal continuidade indefinida nem o falante ou escrevente tem
energia que dê para tal, rapidamente lhe sai a língua para fora, ou os dedos
largam o teclado do computador, exaustos de querer compreender. Com-preendemos com a memória imensa do já aprendido e
compreendido, mas este ‘com-‘ é inesgotável, há sempre coisas novas a manifestarem-se
e a quererem juntar-se ao ‘-preendido’, a porem questão. É sempre contra o caos
destas elipses e fragmentos que vamos remando, insatisfeitos do que aprendemos
já. É onde os livros continuam a ser o média indispensável da aprendizagem do
saber, tanto científico e técnico como humanístico: são eles, não todos os
livros, longe disso, mas os que se dedicam a compreender gnosiologicamente, a
deslindar nós dos saberes e a aprofundar questões sobre as várias dimensões do
mundo, que são indispensáveis globalizadores do saber do mundo, são eles que ligam saberes fragmentados e elípticos. Como é que se
organizam então os conhecimentos entre a tribo e os médias? Sendo que as
especializações profissionais fazem parte da tribo de cada um, são os
paradigmas desses usos que guiam as lógicas dos conhecimentos vários de cada
um. Entre o mundo doméstico e o do emprego há articulação, como dizer,
fracturada, o que ilustra bem, parece-me, em que é que consiste a liberdade
do indivíduo moderno: entre ambos
estes mundos (além doutros possíveis, culturais, espirituais, clubes
desportivos), eles não são o mesmo mundo para familiares dum lado e colegas do
outro, com variações de paradigma maiores ou menores consoante, nenhum deles determina, como se diz, cada um alterna com o outro sem
preponderância a priori.
11. O livro é um média de divulgação de textos,
mas estes ligam-se a outros textos de outros livros (de que fazem parte), a
textualidade é feita de imensas redes; foi ele o primeiro média, desde o século
V a.C em Atenas que se publicavam manuscritos, copiando-os em lugares adequados
para depois se venderem, assim Platão publicou os seus diálogos em que a
definição proporcionou uma reviravolta na filosofia. Mas já antes, tanto a
literatura que se repetia em declamações públicas como os rituais religiosos
que evocavam cosmogonias e mitos sobre os deuses, que propunham narrativas fora
das mãos, pés e voz dos que as recebiam dos antepassados, como aquilo que dava
luz aos usos de reprodução social. E depois da Filosofia, e à diferença da
Geometria que media e possibilitava cálculos verificáveis, a Bíblia cristã, as
universidades medievais discutindo textos dos Antigos, até ao caso porventura
mais saboroso do nosso condicionamento: o nascer e o pôr do sol, que nós vemos
com os nossos olhos o sol andar à volta da terra (incluindo o olhar dos próprios
astrónomos)[5], e nós,
vacinados talvez pela condenação de Galileu, acreditamos que é a Terra que gira em torno de si mesma e
descreve uma elipse em torno do Sol, como um planeta juntamente com os outros
planetas. Crença? Em relação a quê? À verdade comportamental do conhecimento
tribal feito de usos que se repetem com grande frequência, muitas vezes de
forma desatenta na habilidade recebida da aprendizagem e reforçada por essa
mesma repetição. Eis o que põe em questão as velhas teses do cepticismo
filosófico, mesmo as mais
radicais como a de Hume[6]:
o saber que desses usos vem, de os ter recebido e de os praticar regularmente,
isto é com uma dupla caução, por um lado ancestral e por outro a da sua própria
habilidade como competência, é um saber seguro de si, mesmo que a ciência o
questione como fizeram Copérnico, Kepler, Galileu e Newton. Trata-se com efeito
dum saber seguro de si,
duma verdade nossa inquestionável, correlativa da nossa sanidade mental. Creio que se pode e deve dizer que a recepção do conhecimento cosmopolita
sujeita-o à critica por esta
verdade tribal, como as pessoas idosas que não acreditaram que Armstrong
tivesse ido ‘realmente’ à lua, eram apenas truques de televisão, tipo ficção
científica. Haverá pois uma base de ‘crença’ na recepção do que vem do mundo
estranho, estrangeiro, cosmopolita, que é ‘validada’ no tribal em que cada um
de nós é um ‘especialista’ com saber seguro de si mesmo. Que o liceu tenha
conseguido que abdiquemos do que vemos para aceitar o seu contrário, algo que
nunca vi discutido, eis o que diz a força destas ‘verdades’ cosmopolitas. Em
contraponto, acumulam-se as queixas contra a fragmentação triunfante da utilização
do média ‘entre redes’ (internet), que torna os seus utilizadores frenéticos
incapazes de lerem por algum tempo seguido as páginas dum livro. Tragédia que
se anuncia[7].
12. Quanto aos outros médias, que nos dão imagens,
músicas, filmes e outros divertimentos, eles dedicam-se claramente aos mundos
tribais, a preencher os tempos livres de trabalho, fomentando imaginações cosmopolitas em
contraponto às rotinas dos empregos. Isso obriga os produtores profissionais de
programas de rádio e televisão a diversificarem o que oferecem, o que se manifesta
claramente na concorrência que fazem entre eles para cativarem espectadores como clientes. E é onde está um dos
maiores problemas mediáticos. É que se trata de instituições de produção
sujeitas às regras de financiamento da economia capitalista, com maquinaria de
produção e distribuição e com trabalhadores, alguns altamente talentosos na
caça ao cliente; tendo custos, têm que ter benefícios, ou por venda, quando se
trata de distribuição geográfica dos produtos (livros, jornais, discos,
filmes), ou, no caso dos jornais mas sobretudo dos médias de emissão por ondas
para antenas domésticas, por publicidade. Como interpretar esta palavra? Ela diz respeito ao dito espaço público, espaço da opinião pública, decisiva em politica
democrática, que implica que haja liberdade de expressão pública de quem quer
que ache que tenha ‘opiniões’ para exprimir, que as possa ‘publicar’, como se
diz habitualmente de livros, jornais e revistas, embora sujeitando-se a
critérios das redacções respectivas, sublinhando que se essa publicação de
opiniões por quem não é jornalista é relativamente fácil em geral e que a sua
dificultação é sintoma de deterioração democrática, mas que é muito mais
difícil em termos de rádio e de televisão, creio, ao invés do discurso politico
e equivalente, que é sempre solicitado na sua diversidade maior ou menor, funcionando
como discurso público. Ora, o
problema é o de saber se o nome de publicidade dado ao discurso para cativar
clientes não pertence só também ao discurso público, a par do politico e do das
celebridades de várias áreas sociais, artes, médias, desportos, cultura, mas se
não é ele o discurso público por excelência, dominante do espaço da opinião
pública. É óbvio que ninguém pode hoje pensar em evacuá-lo, quaisquer que sejam
os seus efeitos nesse espaço, onde cauciona implicitamente o discurso político
de direita.
13. Mas ao mesmo tempo, este estatuto de
concorrência entre os médias do mesmo sector, tem uma vantagem para o público
que eles buscam cativar diversificando a sua produção: podem sempre mudar de
canal com um bem chamado ‘comando’ na mão, forma silenciosa de lhes comandar
quando se não tem voz, podem escolher o que querem e até escolher não querer
ser espectador, como se escolhe implicitamente não ser leitor de livros não os
comprando nem os procurando em bibliotecas, ou não frequentar concertos ou
cinemas ou jogos de futebol. Mas reduzir-se radicalmente ao tribal é difícil,
salvo vocação monástica ou eremítica: a solução consistirá em escolher-se
produtos de determinada qualidade cultural (como sempre sucedeu em relação aos
livros, mas leitores de elite terão sido de facto sempre raros em termos de
percentagem de população), consiste em ser-se claramente elitista, no que ao
pensamento, leitura e arte diz respeito. É para onde os próprios médias nos
empurram, já que procuram centrar as suas produções na clientela que em
sociologia popular lhes corresponde, a dita classe média: conceito sociológico discutível, ao que parece,
em termos de ortodoxia marxista, deixa-se mais facilmente desenhar como a classe
cliente dos médias.
Tentar compreender o surpreendente triunfo de Trump
14. Costumo deixar sempre estes
textos de pousio alguns dias antes de os pôr no blogue, para eventuais
correcções ou acrescentos. Foi quando me pareceu que havia aqui matéria para
tentar entender esta surpresa medonha que nos tem moído o juízo. Atentemos
melhor nesta diferença entre dois conhecimentos articulados entre si, um deles
tribal, consoante os usos do seu percurso entre emprego e morada, e o outro cosmopolita,
vindo de mais ou menos longínquas geografias (e por vezes histórias) e recebido
como leitor / espectador sem contrapartida de mãos, pés e voz.
15. Ora bem, entre a tribo daqueles a quem apertamos a mão e dos espaços que
percorremos e os médias que
nos dão o vasto mundo a conhecer, a ver, ouvir e ler, mas sem lhe mexer nem
falar, desde os livros de Gutenberg, há um dualismo ou apenas dualidade? Aquele
joga nesta? As eleições do 8 de novembro de 2016 incitam a procurar perceber
melhor, já que os médias americanos estiveram dominantemente contra o candidato
republicano, como as populações de Nova Iorque e Califórnia. Se atendermos ao
que se passou nos séculos IV e V do declínio do império romano no Ocidente que
se apoiou no cristianismo, culto espiritual nas grandes cidades cosmopolitas, e
o tornou religião oficial, os camponeses resistiram-lhe de forma tal que o
termo que os designava, pagus
(dos marcos da terra a que estavam fixados), se tornou o oposto de cristãos: os
pagãos. A minha proposta é a de entender que foram os ‘pagãos’ americanos que
elegeram Trump, isto é, as gentes que, com vidas relativamente seguras em suas
tribos, as sentem desde sempre ameaçadas pelo ‘espectáculo’ que lhes chega
pelos médias, cosmopolitas por definição, incluindo filmes nomeadamente e as
ousadias dos costumes que se repercutem nas grandes metrópoles, as quais a
televisão incessantemente mostra e exibe como ‘modernidade’. São coisas que os
evangelistas das televisões criticam ferozmente, algo que também joga certamente
nas reacções anti-modernas das sociedades islâmicas que essa ‘modernidade’ põe
em causa. Sem dúvida que as dificuldades económicas vindas do desemprego
desindustrializado também jogam aonde elas se façam sentir, mas que muitos dos
seus jovens se sintam atraídos pelos sonhos dessas metrópoles tele-vistas será
porventura mais grave a seus olhos receosos do futuro social: os nossos filhos
não vão ter uma posição social equivalente à nossa. Além disso, também o
racismo americano terá jogado[8]
face a um presidente da República impecável comparado com os seus predecessores
mais próximos, cujo único defeito era justamente ser negro (e filho dum
emigrante transitório).
16. Numa análise feita ao longe, não se trata de
pretender concorrer com os analistas que trabalham no terreno, mas de os
complementar a um nível que sondagens mais dificilmente atingirão, julgo. Esta
dualidade tribo / cosmopolita, sem dúvida que é estrutural, mas articulada,
isto é, não dualista; presta-se todavia a ser jogada pelo dualismo capitalista,
que o próprio termo ‘capital’ evoca da oposição metafórica cabeça / corpo,
aquela sendo de olhos e voz, este dos braços e da força dos pés que trabalham.
Desta feita, foi o corpo enquanto ‘tribal’, ‘pagão’, quem venceu as eleições,
mas a guerra duma sobre o outro continuará a favor da capital cabeça, que não
são eleições que podem vencer este dualismo, como se sabia cá por casa antes do
25 de Abril, que mandando ela nos médias, a dualidade se torna dualista,. Há
todavia um paradoxo muito inquietante na conjunção do Brexit com este Trump,
com estes populismos: é o contraste com os anos 40 do século anterior, em que
os Estados Unidos e a Inglaterra foram os campeões da liberdade contra o
nazismo da Alemanha, posições que agora se inverteram. São as ruas das grandes
metrópoles cosmopolitas que se enchem de protestos radicais que ajudam a
perceber que o paradoxo não pode durar, pelo menos mais de 4 anos nos Estados
Unidos. Trata-se de gente que joga de outra maneira com o que os médias não
dão: mãos nos teclados da Teia e nos telemóveis, pés e voz nas ruas para agir,
resistir indignadamente aos populismos que de médias também se alimenta, é
certo, mas nestes há/haverá igualmente quem resista, alianças se criam nesta
época em que se volta a descobrir a palavra ‘resistência’, tão bela que foi nos
tais tão terríveis anos 40.
[1] o termo
‘acesso’ só vale para o negar aos neurologistas; para o próprio: a ‘mente’ é
ele, é o saber dele, que só perde no sono profundo, na anestesia total, em
coma.
[2] Que
analisei textualmente, in Linguagem e Filosofia, algumas questões para hoje, INCM, 1987, pp. 357-75.
[3] Citações de
Locke no texto citado na nota 1, pp. 124 e 123 respectivamente. No filme de Scorcese sobre os jesuítas no Japão, Silêncio, percebe-se que, na época em que
Galileu pagava com a liberdade ao dogmatismo de Roma como Giordano Bruno pagara
antes com a vida, foi esta questão que se impôs aos dirigentes nipónicos, face
a 300 mil conterrâneos a ficarem submetidos às crenças de estrangeiros, sem
eles terem dogmatismos de resposta.
Nem o xintoísmo nem o budismo têm verdades absolutas.
[4] Os ‘mídia’ vêm do Brasil
que os recebeu dos Estados Unidos. Nas línguas latinas, castelhano e francês,
diz-se médias.
[5] Mas esta
nossa evidência tribal faz parte do laboratório newtoniano que prova o
heliocentrismo, já que as medidas astronómicas são feitas da terra sobre os
deslocamentos do sol.
[6] Que
justamente Deleuze revisitou de forma não céptica que se aproxima do que aqui
se propõe; o ‘cepticismo’ implica o dualismo do Cogito entre o pensamento e a dita
‘realidade’, entre as palavras e as coisas.
[8] O demógrafo francês EmmanuelTodd
analisou comparativamente os casamentos mixtos nos Estados Unidos, Inglaterra,
França e Alemanha, verificando que em cada um havia um tipo em que eles eram
muito baixos: com turcos na Alemanha, argelinos e marroquinos em França,
paquistaneses na Inglaterra, tudo a ver com emigração, e negros na América.
Ainda no ano passado, não houve praticamente negros nomeados para os Óscars,
apesar de ser um processo cosmopolita!
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