quarta-feira, 15 de julho de 2015

MULHER E HOMEM, CASA E ALMA, LUCE IRIGARAY E PLATÃO





1. “Quando se deixará de confundir o sexo da mulher com o seio da mãe, de pretender que aquele não tem valor senão por­que recolhe a herança deste?” (p. 181). Luce Irigaray formula as­sim uma das questões de fundo do feminino e do feminismo no último quarto deste século, no início do qual esta psicanalista fi­lósofa publicou o que creio ser um dos textos mais fortes de filo­sofia feminina: Speculum, de l'Autre Femme (Minuit, 1974). To­dos sabemos que só as mulheres podem ser mães, que sem a maternidade as sociedades não se reproduzem. A questão poderá pôr-se assim: mas são as mu­lheres apenas mães? Se as não consi­derarmos como mães, por exemplo como engenheiras ou filósofas, ou enquanto ci­dadãs, dei­xam de ser sexuadas, são como os ho­mens? O que significa a di­ferença mulher / mãe, que implicações tem essa diferença na pro­blemática feminina actual? 209

Um texto deliberadamente anti-pedagógico
2. O meu propósito era apresentar aqui este texto que nunca lera, mas devo dizer desde já que não o conseguirei fazer cabal­mente: ele foi escrito justamente para não poder ser ‘exposto’ se­gundo os cânones da pedagogia, inevitavelmente masculina, de trazer o novo ao mesmo já conhecido. E sobretudo para não poder ser exposto por um homem. Uma nota final precisa que “a/uma mulher, ocupando em relação à elaboração teórica uma função tanto de um fora mudo sustentando toda a sistematicidade como de solo materno (ainda) silencioso de que se alimenta qual­quer fundamento, não tem que se relacionar com ela da ma­neira já codificada pela teoria. Confundindo assim, mais uma vez, o imagi­nário do ‘sujeito’ – nas suas conotações masculinas – e o que se­ria, será talvez, o do ‘feminino’ [...] Mas se sucedesse, na resistên­cia a reconhecer-se aí, o constrangimento duma distorção, irresis­tível se possível, então talvez ? que algo da diferença dos sexos teria tido lugar também na linguagem” (p. 458). Ora, sem dúvida que comigo houve cons­trangimento, já previsto em certo sentido, por­que doutros textos dela eu viera a este provocado por uma espé­cie de barreira in­transponível, a dum pensamento que coloca em lugar de destaque a multiplicidade das zonas erógenas femi­ninas e o gozo sexual daí decorrente, que me deixou parcialmente de fora enquanto leitor; esse desafio me trouxe, fui outra vez der­ro­tado, creio, mas conti­nuo interessado.
3. O livro compõe-se de três partes de cerca de 150 páginas cada: a primeira em torno de Freud, a última da alegoria da ca­verna de Platão, a do meio percorrendo Platão, Aristóteles, Ploti­no, Descartes, a mulher mistérica, Kant e Hegel, de cada um suge­rindo sintomas de como o múltiplo materno excluído pelo fi­losófi­co suporta o seu edifício uno e paterno.

A mulher que Freud mede pelo homem
4. É por Freud que se faz a entrada: Irigaray descobriu, di­gamos assim, a se­gunda ‘descoberta’ de Freud (mas da qual ele mesmo não se deu conta). “Freud, escreve ela, teria infligido dois golpes à cena da representação. [Ou seja, à cena europeia do sujei­to / objecto em mútua exterioridade, este se representando naque­le através de sensações, imaginações, ideias, etc.] Um deles em certo sentido directo, quando põe em xeque uma certa concepção do presente, da presença, quando põe o acento no ‘après-coup', na sobredeterminação, no automatismo da repetição, na pulsão de morte, etc. ou quando indica, na sua práti­ca, o impacto dos meca­nismos chamados inconscientes no discurso do ‘sujeito'. O outro [golpe], mais cego e mais indirecto, quando – prisioneiro ele pró­prio duma certa economia do logos, duma certa lógica, nomeada­mente do ‘desejo’, de que ignora a li­gação à filo­sofia clássica – de­fine a diferença sexual em função do a priori do mesmo, recor­rendo, para apoiar a sua demonstração, aos proces­sos de sempre: a analogia, a comparação, a simetria, as oposições dicotómicas, etc. Quando, sendo parte activa duma ‘ideologia’ que ele não põe em causa, afirma que o gozo [jouissance] masculino é o paradigma de qualquer gozo, que qual­quer representação do prazer não pode senão referir-se a ele, medir-se por ele, subme­ter-se-lhe. O que, sem dúvida, para per­manecer eficaz, deveria ao menos permane­cer escondido! Exibindo este ‘sintoma’, este ponto de crise da metafísica onde se vem expor a ‘indiferença’ sexual que lhe asse­gurava a coerência e a ‘clausura’, Freud propõe-o à análise” (pp. 28-29). É esta análise que Irigaray conduz na sua primeira parte que comenta a conferência intitulada “A feminili­dade” (1933) e que, sendo conhe­cida porque retomada por muitas outras autoras, resumirei rapi­damente.
5. Apesar de as suas primeiras e decisivas pacientes terem sido mulheres, a teoria freudiana da estruturação do inconsciente feminino foi elaborada após a do masculino, onde por exemplo Édipo e Narciso têm um papel decisivo na reformulação do Ego da segunda tópica, e mais, foi elaborada de forma derivada da ma­neira como o in­consciente masculino se centra em torno do pénis, da sua posse e castração. O ponto de partida é formulado assim: como é que uma criança com tendências bissexuais se torna mu­lher? A resposta a tal questão, que nunca foi posta para a análise da génese do ra­pazinho, é dada pela constatação precoce da me­nina de que ela não tem um pénis como os rapazes, se acha cas­trada e põe-se a desejar ter um (enquanto que o rapaz, ao ver que a rapariga não tem pénis, deduz que ela já foi castrada, o que reforça o seu medo de o ser também). A rapariguinha, rejeitando o seu sexo, é por­tanto um rapaz falhado em algo de essencial, que não tem senão um desejo, o de ser um rapaz, desejo que será cumprido um dia em que seja mãe, o filho substituindo enfim o pénis ausente. O filho, e não a filha: como se pode conceber uma rapariga?, per­gunta Irigaray.
6. Ora, contrapõe ela, à mulher não falta nada, ela tem : tem óvulos, tem órgãos sexuais (vagina, seus dois lábios, clítoris, útero), tem seios, tem corpo com sensibilidade de tocar e de ser tocado; o que ela tem corresponde a um gozo sexual específico dela, nomea­damente de auto-erotismo entre a multiplicidade das suas zonas erógenas; ora, o que ela assim tem não ocupa nenhum lugar na explicação freudiana, dominada pelo pénis só, exclusi­vamente, isto é, a se­xualidade masculina exclui a consideração da sexualidade femini­na. Mas há mais : o devir mulher da raparigui­nha, segundo Freud, decide-se antes da puberdade, antes de ela ter acesso ao seu pra­zer sexual, antes de ter descoberto a vagina, antes de ter desco­berto o útero como matriz, etapas da evolução da mulher que Freud ignora, como também a sua saída da família para outra família, a mudança de nome, do pai para o marido, nome que nunca lhe é ‘próprio’, a maternidade e o aleitamento, nenhuma destas etapas especificamente femininas intervêm na estrutura­ção do incons­ciente duma mu­lher.

A psicanálise é herdeira da filosofia masculina
7. Ora bem, em vez de voltar as costas a Freud, já que psi­canalista, Luce Irigaray leva-o a sério e interroga-se : como é que foi possível que alguém, cujo trabalho tão arguto teve incidências filosóficas tão grandes, se tenha mostrado cego a este ponto ex­tremo? É onde ela se dá como filósofa, como filósofa genial : Freud pensou o in­consciente feminino segundo o modelo masculino por­que não dis­punha, na tradição filosófica ocidental, de outro mo­delo para pensar. Esta masculini­dade essencial da filosofia greco-europeia foi a segunda grande descoberta de Freud, a tal de que ele próprio não se apercebeu, e é do que se ocupam as duas ou­tras partes do seu livro. A começar pelo privi­légio da visão, já que a ‘inveja do pénis’ pressupõe que este se vê, que os órgãos se­xuais femininos pelo contrário não dão nada a ver, são in-visí­veis. Foi a cumplici­dade estrutural entre o olho e o pénis que ex­cluiu este in-visível, este buraco. Mas também a unidade do pénis e a solidez da sua erecção excluem a multiplicidade e a flui­dez do gozo fe­minino. O visível, a unidade, o sólido sobre seu solo ou fundamento, não é isto mesmo que desde Platão se privilegiou no Ocidente como medida de todo o conhecimento ?
8. Conhecimento é reflexão, especulação: o título, Speculum, indica a estrutura do espelho, do olhar ao espelho, que Luce Iri­garay procura desconstruir210, para mostrar como a erec­ção da filo­sofia só foi possível a partir do materno como fonte e da sua ex­clusão e ocultação. É o objecto da terceira parte do seu livro, em torno da alegoria da caverna com que abre o livro VII da Repú­blica e que ela segue a par e passo, num dis­curso que é si­multa­neamente comentário e ironia, em que ela analisa com todo o ri­gor... é assim que eu continuaria normalmen­te, isto é, dando conta da leitura de outro filósofo masculino. Mas aqui não posso: Luce Irigaray não pretende ‘analisar', se se tratar de ana­logia, de comparação, de simetria, de oposições dico­tómicas, não pretende ‘rigor', já que o comentário se quer exube­rante, irónico, chocante, para os hábitos estabelecidos na filosofia do Mesmo.

A caverna-mãe-terra
9. A caverna é uma metáfora: a Glaúcon que se admira com o “estra­nho quadro e estranhos prisioneiros esses de que tu fa­las”, Sócrates responde “semelhantes a nós” (515a)211. A “habitação sub­terrânea em forma de caverna” (514a) é metáfora de quê? “do antro, ou matriz, ou hystera, por vezes terra” (p. 301). Do útero da mãe, portanto. A saída da caverna, dolorosa porque à força, pelo caminho-vagina que leva à luz – “e se o arrancassem dali à força e o fizessem su­bir o caminho rude e íngreme, e o não deixassem fugir antes de o arrastarem até à luz do sol, não seria natural que ele se doesse e se agastasse...?” (515e) – é também metáfora do parto (p. 347) (explicitada aliás em Tee­teto 150a-b: “a minha arte de parteiro compreende pois todas as funções que cumprem as par­teiras; mas difere da delas em que liberta homens e não mu­lheres e em que vigia as almas deles em trabalho e não os corpos de­les”). Haverá pois novo nascimento mas sem mãe, só entre ho­mens, uma re­produção por reflexão, especulativa, no logos ape­nas. O que se faz numa escola como a nossa, por exemplo, ainda que hoje com mu­lheres também: reprodução sem sexo. Ora nesta caverna há toda uma maquinaria óptica, uma estranha maquina­ria de projecção de sombras e imagens, com uns não me­nos es­tranhos espectadores, homens que não são senão olhos, presos de forma a não poderem olhar para trás, vi­rados de costas para as origens dessas imagens, nem o fogo, nem as estatuetas, nem os homens que as transportam; não podem olhar para a fonte (para o mater­no) donde são originados e de quem re­cebem os fan­tas­mas e as alucinações que o parteiro, usando da força, dissipará. Mas o parteiro não mostra ao ex-preso a fraude cine­ma­tográfica a que estivera sujeito: cá fora, à luz do sol, o tempo todo da habita­ção na caverna será esquecido, inconsciente, longe de qualquer saber (uma das propostas de Irigaray é que o in­consciente que Freud deu a ler é essencialmente feminino, não que os homens não o te­nham, mas são femininos aí); o único re­gresso que é admitido é en­quanto parteiro, a retirar outros da prisão das som­bras.
10. Se bem entendi Irigaray, também a alma platónica, alma-olho, é um espelho in­terior, que reflecte os aspectos ou for­mas das coisas e as compara para encontrar o eidos mesmo212, que não muda, como por reminis­cência a alma sabe. Reminiscência duma alma que já era antes de nascer em corpo, que durará eter­namente além da morte desse corpo (e doutros posteriores), a inatalidade / imortalidade da alma é a desse espelho em que o homem se reconhece como o Mesmo, se quer o Mesmo, espelho em que a mãe-caverna se não reflecte, fica esquecida.
11. A caverna é pois metáfora de uma ruptura, de um salto sem regresso. Donde para onde? Da gruta terrestre e materna para o Sol e o Bem paternos. E quem é que salta? só homens? Humanos de sexo não especificado213, Iragaray assinala-o por ve­zes, mas sem ressalvar (por razões a que viremos depois) que se está no contexto dos livros V-VII, onde se trata do estatuto das mulheres na cidade, porventura o texto filósofico mais ousado so­bre o feminino em 24 séculos, até Simone de Beauvoir e Hannah Arendt. É a interrogação desse contexto que tentarei, an­tes de re­gressar à pro­blemática de Luce Irigaray, já que as re­sis­tências que o texto dela me ofereceu me instigaram a deambular um pouco pela República, texto que nunca trabalhara e havia muito tempo que me seduzia.

Digressão pela composição da República de Platão
12. O livro V inicia-se por um discurso feminista de defesa da igualdade das mulheres em relação aos homens na cidade (com ressalva do que diz respeito à maternidade e à força física), defesa essa que é argumentada filosoficamente contra as opiniões antifeministas correntes em Atenas, que aliás também são as de Platão em outros textos. Acontece que esta discussão é introduzi­da abruptamente por um artifício literário. Sócrates interrompe o que se está a dizer, ao dar-se conta de que dois dos seus ouvintes estão a bichanar ao ouvido um do outro, e quer saber do que se trata. A resposta de Adimanto214 – “[...] julgas que nos passará des­percebido, que disseste vagamente que em relação a mulheres e filhos, seria evidente para todos que são comuns os bens dos ami­gos?” (449c) – reenvia para uma passagem bastante anterior (423e), perto do início do livro precedente; ora, Sócrates vai pegar nesta questão e seguir um novo fio temático, e só três livros de­pois, tendo ficado assente que “atingimos o termo da discussão” (541b), no início do livro VIII, volta a desenvolver o tema que estava a tratar antes da inter­rupção: “uma vez que levámos a bom termo esta questão, vamos recordar em que ponto nos des­viámos do cami­nho para chegarmos aqui, a fim de voltarmos a seguir pelo mesmo” (543c), recordação essa a que Gláucon proce­de, terminan­do “[...] e quando eu te perguntava quais eram essas quatro constituições a que te referias, nesse momento Polemarco e Adi­manto interromperam-me, e assim é que tu encetaste essa dis­cussão, e chegaste a este ponto” (544a-b) ; o livro VIII desen­volve esses quatro tipos históricos de constituição política, suce­dendo-se em degenerescência progressiva e o IX as virtudes do homem político, com o que fica arrematada a problemática da constituição justa da cidade, que se iniciara no livro II, sem que intervenham nestes dois livros nem a questão do estatuto das mulheres e das crianças nem o lugar de go­vernante do filó­sofo nem a teoria das Formas ideais dos livros V a VII, enquanto que no livro X volta a crítica dos poetas que já fora feita nos livros II e III, mas agora do ponto de vista das Formas ideais, mais a questão da imor­talidade das almas, pedida pela teoria da reminiscência e que também fôra silenciada no corpo primeiro do texto. O artifício li­terário parece-me bem claro, à ma­neira das mães de famílias numerosas doutros tempos quando acrescentavam as camisolas dos filhos que tinham cresci­do de­mais e as lãs não tinham já a mesma cor, a arte consistia em ar­ranjar um enfeite de ‘tricot’ na costura que disfarçasse esta : Platão procura disfarçar que os li­vros V a VII e X, sem dúvida contemporâneos dos grandes diálo­gos sobre a Teoria das Formas ideais, a sua reminiscência pela alma antes do nascimento e a imortalidade dela (Crátilo, Ménon, Fédon, Ban­quete, Fedro), foram escritos al­gum tempo de­pois do conjunto II-IV, VIII-IX. Por outro lado, há muito tempo que há quem pense que o livro I (sobre a justiça) foi publicado anteriormente, como os primeiros diálogos aporéticos sobre as virtudes, e posterior­mente tornado “prelúdio” da segunda edição, consti­tuida pelos livros I, II-IV, VIII-IX. “Di­tas, portanto, estas palavras, julgava eu que estava livre da dis­cussão”, é como Sócrates inicia o livro II, “mas de facto era apenas o prelúdio, ao que parece” (357a): trata-se de um outro ‘tricot’ li­terário, sabendo-se aliás por Dionísio de Halicarnasso que “Platão continuou sempre a rever os diálogos”215.
13. Qual é a importância desta questão para o debate sobre o feminino? É que ela permite propôr uma hipótese de leitura de Platão que lhe dá uma posição privilegiada. Com efeito, a República seria o grande texto de Platão, não apenas o mais extenso mas a trave mestra de toda a sua textualidade ; enquanto que os outros diálo­gos traba­lham os diversos motivos que Platão foi pensando, ela exibir-nos-ia o plano de conjunto das três primeiras etapas do pensamento de Platão, primeiro ética, depois política, enfim ontologia. O livro I mostra-nos o primeiro Platão, próximo de Só­cra­tes e do seu não-saber, da sua maneira de ‘criti­car', digamos, as tradições e os ensinamentos aprendidos de ou­trem sob forma de repetição, a sua maneira de utilizar a definição mas sem pro­pôr saída à questão ética debatida, já que esta deve­ria resultar do exercício de pensamento e de mudança de vida de cada um dos auditores, do próprio exercício da virtude em deba­te. Haverá as­sim uma espécie de ‘cepticismo’ em relação à tradi­ção (atitude mo­derna por excelência, que Descartes, por exemplo, retomará na sua dúvida metódica) mas que não o é (em Descartes também não), uma vez que se trata de uma arma contra o ‘rela­tivismo’ dos seus contradictores. A segunda etapa rompe com a ambivalência desta atitude, propondo uma tarefa de pensamento político inédi­ta: “considerar em imaginação a formação de uma ci­dade” (369a), para lhe repensar o modelo, a constituição, a ‘poli­teia'. Esta se­gunda redacção da República parece convir bastante bem ao auto-retrato de Platão como pensador da cidade, da polí­tica, no início da sua 7ª Carta: ela conta a sua ruptura com a ma­neira so­crática de intervir, metaforizada na mudanda de óptica da escala das letras (368d), na passagem do questionamento da vir­tude de cada humano ao da própria cidade. Donde lhe veio este novo projecto? Dos diversos esforços de reforma política demo­crática em Atenas de havia mais dum século a essa parte e da constata­ção do seu fracasso, tornado definitivo aos olhos de Platão pela condenação recente de Sócrates, o mais justo de todos os homens. Basta pensar no que significaria para um ateniense a leitura deste texto, dito na pri­meira pessoa por Sócrates, passados uns 10 ou 20 anos sobre a sua condenação à morte. Há que re­pensar a cidade inteiramente, há que repartir do zero. A 3ª etapa, os livros V a VII e X, refaz o nó entre as duas anteriores, já que a teoria das Formas ideais eternas su­põe sempre que só a alma de cada um pode vir, por reminiscên­cia, à sabedoria, por um lado, e por outro lado, sendo o coração do platonismo, esta teoria é colocada como a justificação do lugar preponderante do pensamento filosófico no governo da nova ci­dade, é o que justifica, com o plano da forma­ção filosófica dos futuros governantes, que essa cidade seja possí­vel. É esta unidade ‘republicana’ da política, da ética e do saber filosófico que é o grande desígnio de Platão216.
14. Já agora, uma breve alusão à 4ª etapa, a da crítica das Formas ideais eternas, encetada pelo Parméni­des, onde Sócrates é desalojado do lugar principal em benefício do velho Parménides que argumenta com um homónimo de Aristóte­les, como se Platão indicasse assim que esta última etapa era o fruto das suas discussões com o seu jovem discípulo. De qualquer forma, é certo que os textos seguintes, Teeteto, Sofista, Político, Filebo, Ti­meu, Crítias e Leis, terão como objecto as realidades ter­restres ou sub-lunares nelas mesmas, se se pode dizer, e já não do ponto de vista da relação delas às Formas ideais, mas de dois princípios, o Ilimitado e o Limitado, mais a sua mistura217 e a fonte desta, a Ideia de Bem (Filebo, 23d). Como se esta problemática fizesse um novo passo na ruptu­ra com Sócrates, um passo na direcção de Aristóte­les, da filosofia da phy­sis deste.
15. Concluindo esta digressão pela composição da República, nesta hipótese, em vez da concepção (reinante?) dum ‘puzzle’ de diálogos platónicos instaurando o projecto filosófico do saber so­bre temas variados, entre os quais o duma reflexão, cu­riosa mas utópica, sobre a polis, teríamos que é esta que estrutu­ra a pro­pos­ta filosófica de Platão (no coração dos livros VI-VII estaria o pro­grama da Academia), como a physis o faz em Aristó­teles. Po­de­mos supôr que sem a República e antes de Aristóteles (e não creio que este seria possível sem aquela), pura e simples­mente nós não teríamos tido o que chamamos filosofia, teríamos tido apenas lite­ratura, à maneira das grandes culturas asiáticas.

A ruptura: a alma arrancada à casa
16. Para reatar com Luce Irigaray, a questão que nos fica é a de compreender porque é que a série de três discussões do 3º troço da República, o dos livros V-VII, é inaugurada pela do lugar das mulheres na cidade repensada pelo discurso. Obviamente que esta questão implica antes de mais saber qual é esse lugar na ci­dade de facto, em Atenas. Ela é a mêtêr218 e a oikodespoina, a mãe e a dona da casa, como é regra das sociedades guerreiras, à base de agricultura e criação de gado, de que a casa é a unidade estru­tural: por um lado, a unidade de parentesco que se transmite de pai para filho, com troca de mulheres entre casas em cada nova geração, como Lévi-Strauss nos mostrou e o jogo dos apelidos en­tre nós atestava, por outro lado a unidade económica que o pai governa (nas casas ricas os escravos pertencem à casa, veja-se a Política de Aristóteles), a casa onde se mora, mas também os campos de trabalho agrícola, os rebanhos. É a este conjunto, activo e fecundo, que os Gregos chamam oikos, casa. Porquê activo e fe­cundo? Porque ele depende, por um lado, do trabalho, segundo usos e artes cujas receitas são transmitidas de antepassados em descendentes, mas por outro da boa ou má tuchê (fortuna), da maior ou menor fecundidade das plantas, das fêmeas, das mães. Ora, os humanos ‘activos’ não dominam a fecundidade, acolhem-na como dom, dom plural nas suas fontes, terrestres e celestes, como atesta o que chamamos politeismo. Proporia o termo ben(mal)dição para dizer a incógnita constante da tuchê, da (in)fortuna e, ignorante que sou da mito­logia grega, recorro à he­braica para ilustrar este motivo. O nasci­mento de um bebé, sobre­tudo se fôr macho, é das maiores bên­çãos, mas acompa­nha-se de largos escorrimentos de sangue (e sangue que escorre é sempre sinal de ferida, de violência, de morte) vindos de dentro do ven­tre materno, im­pureza esta que obri­gará a mãe a uma severa ‘quarentena’ para se purificar. Também esse bebé virá por he­rança a ser pai na casa, a herdar linhagem e nome patriarcais, terras, gado, residência, escravos, criados e suas famílias: a bên­ção que é o seu nascimento anuncia pois também a morte futura do pai (tocar num cadáver, porque impuro, obriga também a al­guns dias de segregação purificadora). Bênção ainda que as terras que venha a trabalhar sejam fecundas em ceifas, vindimas, azeite... mas para que tal ocorra muito traba­lho duro se lhe pe­dirá. Bênção sim pois, mas com maldição no seu seio, nunca se sa­bendo de antemão se o que se anuncia, nasci­mento ou pri­mavera, será de bom ou mau destino. Ora bem, se relermos no capítulo 3 do livro do Génesis os castigos divinos lan­çados sobre Adão e Eva depois da transgressão do Éden, lá encon­tramos o pa­rir na dor, o suor no trabalho do campo, a morte ao fim da vida : expulsos donde não havia senão bênção, a maldição que se mis­tura tão in­certamente no coração da bênção é contada mitica­mente como consequência de uma falta ética, tendo o texto profético decidido, se­parando a bênção da maldição, no que quotidianamente se não de­cide. Não me estive desviando : é uma decisão formalmente equi­valente separando o Bem e o Mal – salto da casa para a alma – que é feita nos livros V-VII da República e nos diálogos seus contem­porâneos, Fédon por exemplo (cap. 7).
17. Costuma-se falar do ‘comunismo’ da República, mas de facto este não é proposto para toda a cidade, limita-se à classe dos patrícios enquanto guardiões, dos guerreiros profissionais (distinguidos entre chefes e auxiliares das decisões destes, III, 414b), que mais não fazem do que dedicar-se a essa arte (já que é na especialização exclusiva que consiste uma cidade justa), para a qual terão de ser educados (música-poesia e ginástica), o que para os lavradores e outros artífices (415a) não é considerado219. Também assim a tal comunidade das mulheres e a educação colectiva das crianças sem pai nem mãe é limitada aos guardiões guerreiros, tal como a educação filosófica. Ora bem, o tal ‘comunismo’ da República cor­responde à abolição das casas dos patrícios guerreiros na sua dupla dimensão, quer da propriedade e actividade económica, quer da maternidade e da pater­nidade enquanto dispositivos patriarcais do parentesco, organização tradicional das tarefas femininas e masculinas para que raparigas e rapazes são tradicionalmente educados. Para cortar na raíz os ciúmes e invejas que envenenam o quotidiano da cidade, Platão, num gesto correlativo da invenção socrática da definição (que ar­ranca o definido ao seu contexto quotidiano), arran­ca a alma à casa, à natureza, ao sensí­vel, ao corpo, já que existen­te antes do nascimento deste e para além da sua morte.

O feminismo de Platão
18. Esta utopia, como se diz, teve uma primeira concretiza­ção par­cial nas comunida­des monásticas, com a diferença essen­cial do celibato que as votou às margens das sociedades; mas pode-se dizer que foi realizada nas sociedades contemporâneas, a diferença essencial sendo agora a da propriedade (cuja abolição foi experimentada sobretudo em países não ocidentais mas fra­cassou, como sabem os chineses) ; de facto, a in­dustriali­zação moderna liqui­dou as casas das sociedades tradicionais e substituiu-as por duas redes, uma de institui­ções (onde temos em­pregos preenchidos por uma prévia selecção esco­lar) e outra de famílias, sem actividade eco­nómica220, com di­vórcio fácil e (quase) sem educação das crian­ças, assumida esta maiori­ta­ria­mente pela escola, tendo como con­sequência o ingresso massivo das mulheres nos empregos da so­ciedade tal como os homens, justa­mente como Platão preconizou : “concordas portanto – per­guntei eu – que haja entre homens e mulheres a comuni­dade que descrevemos, e acerca da educação, dos filhos e da guarda dos outros cidadãos, que as mulheres de­vem ficar na cidade e ir para o combate, fazer vigilância e caçar junto com os homens, tal como entre os cães, e participar em tudo, até onde for exequível, e que, se assim fizerem, procederão da melhor maneira possível, e não contra a natureza do sexo fe­minino em relação à do masculino, pois ela os criou para viverem em comunidade ? Concordo, sim” (V, 466c-d). Sendo assim, há que dizer que este dis­curso do livro V não é ape­nas ‘um’ discurso fe­minista, ele é ‘o’ discurso feminista já, an­teci­pado vinte e quatro séculos. É o argumento, retomado por Mary Wollstonecraft e por Condorcet, no final do sé­culo XVIII221, de que se as mulheres estudarem como os ho­mens estudam, elas são tão capa­zes na cidade quanto eles ; esse argu­mento foi comprovado histo­ricamente na segunda metade do sé­culo XX, o feminismo sendo o belo e raro triunfo de uma argumento filosófico como tal 24 séculos mais tarde. Não é a opinião de um ‘homem’ (Platão é misógeno, como os seus contemporâneos noutros diálogos) mas um argumento da Filosofia, necessário como consequência lógica da abolição da casa.
19. Feminismo este que Luce Irigaray atravessa, ao menos em parte. A res­posta à questão do donde e para onde do salto, da ruptura do prisioneiro saído da caverna, fica agora mais cabal­mente respon­dida : da casa e da sua multiplicidade de usos e de dons e fecun­didades, da casa politeista e dos seus desejos próprios – comer e beber, sexo e erotismo, honras e riquezas –, do mundo do sensível e dos seus cuidados, para a alma e a unidade dos seus desejos fixa­dos na contemplação das Formas ideais, e mormente da de Bem, em suma do politeismo dos dons ao monoteismo da causa primeira. Da maternidade para a paterni­dade, dizia Irigaray. Por exemplo, a paternidade intelectual e es­piritual dos Mestres em relação aos discípulos, a escola, na senda aberta pela Academia aliás, sendo uma boa ilustração desta leitu­ra, até na maneira como faz guerra aos saberes tradicionais das casas222. Para o di­zer, Irigaray teve todavia que contestar o texto de Platão nos seus pres­supostos, já que os seus propostos explícitos são de abandono também da paternidade : homens e mulheres são para ele almas (que dominam seus corpos) e só de longe em longe sexua­dos e procria­dores. E terá sido a razão pela qual Speculum não se ocupa deste discurso, a quem censura que as mulheres só sejam admitidas na cidade “se na verdade tiverem tudo em comum com os homens” (540c). Se Platão teve que se ocupa­r das mulheres como corolário da sua necessidade de li­quidar as casas para introduzir os chefes-filóso­fos-almas, e elas so­bravam-lhe, ele teve que as pensar, mas justa­mente pensou-as mulheres e não só mães, é honra dele ; mais, admitiu explicitamente no final do livro VII que elas possam ser governantes da cidade ideal223. A igualdade entre homens e mu­lheres, que só foi possível fora do contexto das casas, a consideração se­parada de cada um em relação à diferença sexual – é isso a alma, o sexo relegado para o corpo de cada um –, relevam do que Hei­degger caracterizou como ontoteologia : os livros V-VII e X da Re­pública, e os outros por via deles ao menos, fazem parte essencial da sua instau­ra­ção.

“A mulher não é nem uma nem duas”
20. Volto à questão inicial: o que significa a di­ferença mu­lher / mãe, que implicações tem essa diferença na pro­blemática feminina actual ? Enquanto ci­dadãs, as mulheres não são sexua­das ? Ou têm sexo e seio ? As homosexualidades, por exemplo, distinguem o sexo da maternidade e da paternidade : e as/os cida­dãs/os, são sexuadas/os? São questões em de­bate aberto. Na minha ignorância, creio que a primeira cor­rente feminista, bem repre­sentada por Simone de Beauvoir, afir­mou a mulher em seu devir, tendendo a ocultar a maternidade, à manei­ra, sem dúvida difícil de evitar quando se irrompe, de quem in­verte a posição patriar­cal que identificava a mulher pela mãe. E se assim fôr, dir-se-ia que esse primeiro feminismo repetiu Platão. Do que Irigaray di­verge sem dúvida, dessa exclusão da maternidade, dis­tinguindo embora, foi a minha primeira frase, “o sexo da mulher do seio da mãe”. Há quem pense que ela assim vinculou de mais uma e ou­tra, estaria perto dum essencialismo do feminino. (Não me cabe, não posso tomar posição, cito apenas uma frase da filósofa Françoise Collin : “eu sou uma mulher, mas ‘eu’ não é uma mulher”)224. Onde, porém, tenho dificuldades, é na maneira tão vinca­da, num estrato do texto de Irigaray, de ‘opôr’ masculi­no e feminino, paterni­dade e maternidade. Creio com efeito que, do ponto de vista desta problemática, se pode dizer que o sentido do trabalho dum Niet­zsche, dum Heideg­ger, dum Deleuze, dum Derrida, todos homens, é o de pensa­rem a descontrução – que se vem fazendo nos dois últimos séculos – da sociedade pa­triarcal, da figura platónica do Pai e da sua cisão nítida entre o Bem e o Mal, o Uno e o Múltiplo, o Inteligível e o Sensível. Outro estrato do seu texto, propõe que se tratará primeiramente, antes do homem e da mulher, duma diferença sexual225, “de duas relações específi­cas à ‘materialidade’ do começo – concepção, nascimento [...] mas um dois que não é evidentemente um + um, o produto duma soma, nem dois meios, duas metades, o produto duma divisão. Cada uma dessas não-unidades tomando o lugar de dois mesmos e de dois outros, indefinidamente” (Speculum, p. 92). Então, antes da mu­lher e do homem empírico, desde as primeiras semanas da em­briogénese, há uma diferença sexual singular, a partir da qual, no seu devir histórico com outrem, a sexualidade (biológico-so­cial) se pode articular de formas múltiplas (como, em matéria de textos, fa­zem as poesias, os romances, os filmes, per­manentemen­te re­for­mulando essa dife­rença da espécie). Colocada a questão assim, po­der-se-á dizer que nenhum humano, homem ou mulher, pode­rá dizer a(s) diferen­ça(s) sexual(is) que tem com o seu/ a sua amante, com o seu pai ou a sua mãe, os seus irmãos de ambos os sexos, e assim por diante, porque sempre parceira ou parceiro, parte da diferença sexual que, por de­finição, não pode dar nunca conta da outra parte, fa­lar por ela, nem sequer dizê-la, tão só in­vocá-la e escutá-la. Se há sem dúvi­da género feminino e gé­nero masculino, eles modalizam-se singu­lar e multiplamente em cada humano, em sua história que é sem­pre de uma multiplicidade de relações com outras/os.
21. Creio poder resumir assim as questões de Luce Irigaray: 1) o que é que foi preciso negar da terra, das mães, das mulheres, da diferença sexual, para que a filosofia (e as ciências), a cena do conhecimento-pelas-al­mas-dos-homens gregos e cristãos e depois pelos homens-sujeitos europeus, tenha sido pos­sível? 2) o que é que resulta na nossa cena actual quando se reintroduz o que foi negado há 24 séculos? O que é a diferença sexual na cidade de hoje? Como sair do patriarcado? Eis o que está em aberto.
22. Termino, com uma citação que me resiste, e vos ofereço. “Este sexo que não dá nada a ver também não tem forma própria. E se a mulher frui justa­men­te com essa incompletude de forma do seu sexo que faz com que ele se retoque indefinidamente a si mesmo, essa fruição é dene­gada por uma civilização que privile­gia o falomorfismo. O valor conce­dido só à forma definível faz barreira à que está em jogo no auto-erotismo feminino. O um da forma, do indivíduo, do sexo, do nome próprio, do sentido pró­prio... suplanta, afastando e divi­dindo, este tocar de pelo menos dois (lábios) que mantém a mu­lher em contacto consigo mesma, mas sem discriminação pos­sível do que se toca. Donde este mis­tério que ela representa numa cultura que pretende enumerar tudo, cifrar tudo em unidades, inventoriar tudo por individuali­dades. Ela não é nem uma nem duas. Não se pode, em rigor total, determiná-la como uma pessoa, mas também não como duas. Ela resiste a toda definição adequa­da. Aliás ela não tem nome ‘pró­prio’. E o seu sexo, que não é um sexo, é contado como não sexo226. E no Speculum: “Assim a mu­lher ainda não teve lugar” (p. 282).

Permita-se-me a minha bibliografia em torno do feminino
“Quando Masculino / Feminino não coincide com Homem / Mulher”, Jornal de Letras, 27 de Dezembro, 1983
“Feminino / Masculino, Dispositivos em metamorfose”, in As Mul­heres, a Identidade Cultural e a Defesa National, Actas do Semi­nário de 5-7 Abril 1989, Cadernos Condição Feminina, nº 29, pp. 33-36
“Sexo e Género: que relação ? ”, in Universidade de Verão, Actas, Em busca duma Pedagogia da Igualdade organizado pela C.I.D.M. e pelo Seminário Universitário de Educación no sexista (SUENS) da Univ. de Palencia (Valladolid), na Faculdade de Psicologia da Univ. de Lisboa, CIDM, 1995, pp. 249-265
“Tentativa de enquadramento dos processos de Individualização e de Subjectivização das Mulheres”, Comunicação ao Seminário Políticas para a Igualdade, Construção de novos Indicadores da Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres (25 Março 1996)
A propósito do debate sobre o aborto:
“Uma calamidade social face à ética e ao direito, um ponto de vista (masculino) so­bre o aborto”, Diário de Notícias, 25 de ja­neiro 1984
“O direito ao corpo”, Jor­nal de Letras, 2 de Janeiro 1997
“O direito à existência humana”, Jornal de Letras, 26 de Março1997
“Crime e pecado não são a mesma coisa”, Jornal de Letras, 9 de Julho 1998
Com Teresa Joaquim
“Feminino sem mulher?” (polémica com António Guerreiro), Jor­nal de Letras, 3-9 de Julho de 1984





209 Comunicação ao Colóquio Filosofia no feminino, Faculdade de Letras de Lisboa, novembro de 1998, in L. Ribeiro Ferreira (org.), Também há mulheres filósofas, Caminho, 2001, pp. 187-204.
210 Sobretudo Heidegger e o motivo do esquecimento, por vezes Derrida, são claramente suas fontes, mas nunca citados nem nomeados, como se se tra­tasse duma desforra que excluisse os masculinos que houvesse que invocar como com­panheiros e não apenas adversários, como se Irigaray es­quecesse por sua vez, deliberadamente é claro, a sua relação às fontes, esse esqueci­mento que ela fustiga em Platão e nos outros seus descen­dentes em filoso­fia. Publica em 1983 um livro sobre o que Heidegger terá ‘esquecido’, L’oubli de l’air, Minuit.
211 Cito, é claro, a tradução de M.H.R. Pereira.
212 Seja o exemplo da geometria, de como é possível calcular e conhecer a altura dum templo a partir da sua sombra e da proporção entre a altura e a sombra duma vara. Ora, é do sol que vem essa possibilidade: a geometria é “conhecimento do que existe sempre” (527b), ela serve de paradigma a Platão, como se sabe (509b-511e).
213 “Ide anthropous” (imagina humanos) (514a), e não ‘andras’.
214 Gláucon e Adimanto são os dois irmãos de Platão, que dão réplica a Sócra­tes a partir do segundo livro, substituindo Trasímaco; se vai abolir as casas, a sua também é visada !
215 M.H.R. Pereira, p. XV.
216 Há um caminho ontológico paralelo à segunda re­dacção de República, que se pode ler no Fédon e no Fedro, dos quais G. Colli (“Sur la composition des écrits platoniciens”, em Nature aime se cacher, l’éclat, 1994, [1948], pp. 229-249) despistou as diversas redacções seguindo o critério dos respectivos estilos. No primeiro: 57a-69e e 114c-118 (narrativa da morte de Sócrates, fazendo trilogia com a Apologia e o Criton), depois 69e-95e e 107b-114c, e enfim a terceira redacção, 95e-107b; no segundo, 227-257b primeiro, 257b-279c mais tarde. As últimas redacções são contemporâneas dos livros V-VII da República, as outras mostrariam uma ontologia dionisíaca do eros no jovem Platão, antes da sistematização, que Colli privilegia, deplorando a ontologia.
217 Antes tinha sido sempre rejeitado que a mistura fosse compatível com as Formas ideais eternas, nitidamente separadas entre elas, mas foi justamente a mistu­ra – do mesmo e do outro – que decretou o ‘parricídio’ do próprio Par­méni­des no Sofista, questão aliás que poderia vir a ter efeitos numa even­tual re­consideração da questão das mulheres por este último Platão.
218 Também a Terra (III, 414e), a pátria (ibidem), fonte produtiva, são mê­têr.
219 É dos primeiros (ouro e prata do mito forjado, 414d-415c) que se diz que “nenhum possuirá quaisquer bens próprios (ousian), a não ser coisas de primeira necessidade [...], nem habitação (oikêsin) ou depósito algum” e se­rão alimentados “pelos outros cidadãos, como salário da sua vigilância, em quantidade tal que não lhes sobre nem lhes falte para um ano; as suas re­feições serão em comum e em comunidade viverão, como soldados em cam­panha” (417d-e).
220 As tarefas domésticas ficaram bastante aligeiradas pelos electrodomésti­cos; e até o cinema e a televisão não são sem relação com os homens-olhos da caverna.
221 Ver Teresa Joaquim, Menina e Moça, A construção social da Feminilida­de, Fim de Século, 1997, pp. 142-4.
222 Raul Iturra, A Construção social do Insucesso escolar, Memória e Aprendizagem em Vila Ruiva, Escher, Lisboa, 1990.
223 “São uma formosura os governantes que tu modelaste, como se fosses um estatuário, ó Sócrates! – E as governantes também, sem dúvida, ó Gláu­con! Não vás julgar que o que eu disse se aplica mais aos homens do que às mulheres, a quantas dentre elas são dotadas duma natureza capaz. – Exacto, se na verdade tiverem tudo em comum com os homens, conforme a nossa análise” (540c).
224 Je partirais d’un mot, FusArt, 1999, p. 156.
225 Poder-se-á dizer: primeiro, antes de homem/mulher, masculino/femi­ni­no, há um dispositivo com duas posições, como nas outras espécies mamíferas e não só.
226 Ce sexe qui n'en est pas un, 1977, Minuit, p. 27.

Sem comentários: