terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Física Química e gramatologia






1. Algum tempo antes da sua vinda a Coimbra em novembro de 2003, escrevi a Jacques Derrida perguntando-lhe como é que na Física se punha a questão do rasto, da trace ou différance. Quando cá esteve, disse-me sorrindo que eu lhe punha questões muito difíceis, o que compreendi como significando que não frequentava pela leitura esse tipo de ciências. Tendo depois encontrado, nomeadamente num seu livro em diálogo com Elisabeth Roudinesco (De quoi demain..., Fayard/Galilée), mais duma vez a expressão trace vivante, depreendi que esta fora inventada com a vida e não tinha cabimento nos inertes de que Física e Química se ocupam. Átomos e moléculas formam graves, sejam do mesmo tipo de moléculas, sejam misturando-as como nos granitos, por exemplo, mas não constituem enquanto tais, nem nos astros, estrelas em combustão ou planetas áridos, tanto quanto eu (não) sei, estratos mineralmente acima do que são as moléculas, digamos, apesar dos campos que os sustentam, como o da gravidade. Tal como as garrafas ou as lâmpadas produzidas numa cadeia de fábrica, os graves não são nomeáveis individualmente, apenas susceptíveis de numeração, enquanto que os vivos são novas assemblagens de moléculas, criam a possibilidade de indivíduos empiricamente distintos, não idênticos, serem da mesma categoria que outros, pertencerem à mesma espécie. Os inertes não têm espécie, eles oferecem os elementos empíricos de que se fabricaram as espécies vivas.
2. A questão não fica todavia resolvida, percebo agora. No texto de Derrida De la grammatologie (Minuit, 1967), a trace ou différance é por duas vezes dita triplamente: “a estrutura geral do rasto imotivado faz comunicar na mesma possibilidade e sem que se os possa separar senão por abstracção, a estrutura da relação ao outro, o movimento da temporalização e a linguagem como escritura” (p. 69, cf p. 88). O “movimento da temporalização” será doutras vezes dito espácio-temporalização (no texto citado umas linhas abaixo) e implica que um vivo ou um texto individuais em suas células ou frases, na sua ‘substância’ espacial e na temporalidade que é a sua (crescer, num caso, escrever-se e ler-se no outro), relevam dum mesmo prévio, o da espécie ou a da língua que, sendo substancialmente ‘nada’, são (n)este vivo ou (n)este texto o que o faz/fez/fará esse indivíduo vivo ou textual não idêntico a outros. A esta indissociabilidade entre o mesmo e o não idêntico, a economia e o excesso, chamará em “La différance” (Marges. De la Philosophie, Minuit, p. 20, existe tradução na Rés), o “enigma” deste motivo gramatológico. “A estrutura da relação ao outro” diz como um vivo vem doutro vivo, esse ‘vir de’ relevando da mesma espécie e ainda que o animal se alimenta de vegetai ou animais, assim como um texto vem doutro e a outro vai, na mesma língua de que são originados. “A linguagem como escritura”, dita doutras vezes a origem da linguagem como escritura, marca um dos primeiros escândalos provocados por Derrida, ao pretender que a linguagem oral é posterior à escritura: a interioridade oral releva duma impressão vinda de fora, da inscrição pela aprendizagem. Foi este o motivo que Derrida introduziu em filosofia como questão que a desconstrói, esta mesma que estou dizendo. É esta estrutura tripla que permite compreender a biologia, a linguística, qualquer ciência do social, o mesmo sendo o que os respectivos cientistas buscam aclarar em análises sobre indivíduos não idênticos, que necessariamente reduzem ao abstraírem as suas experimentações.
3. A questão agora é: se for verdade, como creio ter percebido então, que os inertes da Física e da Química são prévios à trace ou différance, isso implica que esta  estrutura tripla não tenha relevância nessas ciências? O que pode ser ela em ciências sem espécie nem sociedade nem língua? Julgo que é o motivo do campo de forças que tem o lugar desses motivos, mas há que acrescentar que essa afirmação seria inaceitável pelos seus praticantes, como já sugeria o meu texto neste blogue Questão prigoginiana sobre energia, força e entropia. Vejamos então as incidências da tripla estrutura do campo de forças com o exemplo do sistema planetário e partindo da frente para trás. A “origem da linguagem como escritura” significa aqui que o motivo de campo de forças de gravidade seja epistemologicamente colocado previamente aos astros que o campo em suas forças sustenta, planetas e sol, embora não exista sem ser a resultante delas, tal como a espécie biológica tem privilégio epistemológico sobre os seus indivíduos, sem os quais ela não é, a língua sobre os textos, a sociedade sobre as suas populações. Por outro lado, olhando os graves do mundo terrestre, “a origem da linguagem como escritura” posiciona a Química em relação à Física, colocando-a como a ciência da ‘origem’ das moléculas e dos graves, antes de a Física inquirir dos seus diversos movimentos: a uma a ‘substância’, à outra o ‘movimento’. “A estrutura da relação ao outro” tem a ver com a definição mesma do campo de forças de gravidade, com a alteridade dos planetas e do sol uns em relação aos outros, sendo todavia que apenas o sistema da alteridade dessas forças dá conta da posição de cada um dos planetas e do sol: distinção epistemológica, não cronológica. O “movimento da temporalização” ou espácio-temporalização é sem dúvida o que poderia provocar maior escândalo se houvesse físicos para lerem este blogue. É que isto implica que não exista neles mesmos, isoladamente, nem o espaço nem o tempo nem o espaço-tempo que estão no coração das especulações da teoria da relatividade: apenas há graves e astros espácio-temporais. Não se trata de voltar a Kant, porque não há aqui ‘sujeitos’ que vêem, ouvem e mexem, apenas matérias e suas leis físicas e químicas.
4. Ora, isto põe uma dificuldade, que é típica do pensamento derridiano, que coloca a repetição como origem, num paradoxo que significa que não há acesso humano a origens. A língua ser anterior às palavras significa que só há palavras como repetições encadeadas sintacticamente: ninguém inventa palavras, quando isso parece suceder é porque muita gente começou a repetir. A espécie anterior aos seus indivíduos significa que nem galinha nem ovo são primeiros, mas sempre já indivíduos que se reproduzem. Também só há célula quando se reproduz, se repete. As sociedades igualmente: os colonos duma ilha deserta repetem, quanto podem, o que das suas sociedades sabiam.
5. Em física, isto implica que não se começa por partículas ou electrões ou núcleos atómicos, não há forças nucleares já lá que depois congregam protões e neutrões, como não haverá forças electromagnéticas que congregam núcleos atómicos e electrões para fazerem átomos, nem haverá forças de gravidade antes de haver astros. Que haja físicos, todos provavelmente, para acharem que sim, significa que, não havendo, que eu saiba (nunca li), experiências laboratoriais dessas congregações, antes pelo contrário, não há partículas antes de átomos em seus campos nucleares e electromagnéticos que se fazem explodir nas centrais e nos aceleradores do CERN. Sobre estas experimentações, de partículas a partirem em todos os sentidos depois de largadas pelos campos que as retinham, pode-se especular a sua retroversão, uma explosão de partículas a voltarem para trás e reformarem átomos com núcleos, mas é especulação, ainda que se possam propor cálculos e equações de como isso se faria, só restando fazer. Não há origem, apenas os cálculos dela, não há big Bang senão como mito (ateu) de criação do universo. Não há partículas sem campos, é a sequência do big Bang até às estrelas (claro que poderá haver algo antes delas) que se revela igualmente mítica, isto é, especulativa, filosófica, insusceptível de laboratório CERNético que a confirme. Onde os laboratórios físicos alcançam, encontram sempre já como sua condição campos de gravitação e portanto electromagnéticos e nucleares.


6. Porque é que um filósofo se mete em coisas que não são da sua lavra? Mas eu não discuto física nem biologia, mas sim filosofia, uma fenomenologia em que as ciências jogam um papel, do que elas nos ensinaram sobre os fenómenos que estudam, que a um outro nível, são da lavra fenomenológica também. Houve uma maneira de raciocinar científica partindo do elementar mais elementar  uma maneira cartesiana que inaugurou o “método” que foi adoptado pelo pensamento cientifico e filosófico durante séculos: começar pelos objectos mais simples e mais fáceis de conhecer para ir subindo pouco a pouco, como por degraus ao conhecimento dos mais compostos. Ora, esta maneira foi denunciada no século XX de vários lados, que propõem a noção de complexidade, por exemplo de Edgar Morin, ou de estrutura, com exemplos variados nos estruturalismos dos anos 60, de sistema, etc. É certo que o meu trabalho de Fenomenologia como Filosofia com Ciências, onde a gramatologia de Derrida se revelou de grande fecundidade, foi desenvolvido a partir da Biologia, da Linguística, da Antropologia de Lévi-Strauss e da Psicanálise, e só de seguida aplicada à Química Física, o que obviamente não deve agradar aos praticantes da ciência que sempre ocupou o primeiro lugar, no prestígio como na eficácia técnica demonstrada (felizmente para os físicos que há outras filosofias mais crentes nos seus mitos).
7. Mas eu presumo que possa haver alguma fecundidade na proposta que fiz, sabendo embora que o risco de não haver físicos para ligarem a ela é inevitável, ou se rirem da minha ingenuidade. E a razão é esta: a história da filosofia europeia, onde Descartes é peça decisiva, deixou nas ciências que dela se pariram um obstáculo epistemológico de predomínio do interior sobre o exterior que continua a jogar nos paradigmas dessas ciências, o que na Física é o predomínio das substâncias (astros, graves, átomos, cargas eléctricas...) sobre os respectivos campos, como parece que persiste na física das partículas: quarks e gluões e sopas delas, como se o universo tivesse começado por aí. É como se não soubessem o que fazer da noção de força atractiva, que parece ser interpretada como uma banal força local, tipo bola de bilhar em movimento que faz andar uma em repouso com que choca. 

8. A proposta fenomenológica consiste em compreender cada realidade do universo terrestre através de duplos laços dos seus elementos. No caso da Química Física, o duplo laço do átomo é por um lado o das forças nucleares que retêm protões e neutrões, e por outro o das forças electromagnéticas que retêm electrões. Duplo pois, mas ‘um’ apenas, nenhum tendo sentido físico sem o outro: o primeiro garante a impenetrabilidade do átomo por qualquer coisa de outro do que ele, resiste à explosão do núcleo, o segundo ciente dessa impenetrabilidade oferece-se à troca de electrões com outros átomos para formar moléculas, a partir das quais o conjunto delas se presta à atracção das forças de gravidade as quais retêm e atraem graves e astros. Quando o que é assim retido se solta dessas forças, expande-se como nas explosões de gasolina ou nucleares, as sondas deixam a gravidade terrestre e fogem por inércia. Ou ainda: se a força de gravidade se detecta apenas nos astros, como pretender que ela se exerça nas partículas à solta do mundo quântico? O que a física ensina é que a estabilidade do que chamamos matéria tem aí a sua base, dependente das condições da temperatura.
9. Se estas três forças estruturam o universo dos astros e a explosão das primeiras dá origem a partículas desenfreadas, quase todas instáveis em prazos curtíssimos, é difícil de pensar, a crer nos laboratórios, que se trate aí de algo de consistente, a crer nos laboratórios: é-se tentado a pensar, como fenomenólogo que não tem que propor números nem equações, que a estrutura do átomo e da molécula resulta da maneira como os duplos laços retiveram as respectivas partículas impedindo-as de fugirem segundo a inércia, tentado a pensar que se trata de fenómenos do primeiro nível da entropia positiva de Prigogine. É que todos os duplos laços seguintes, a começar pelo das células, são sempre fenómenos de ligações entrópicas de elementos que os tornam capazes de movimentos aleatórios que seguem as regras que as respectivas ciências vão descobrindo.


10. Parece que o motivo de campo de forças não é um motivo estrutural da teoria física, sem que eu saiba perceber que contradições isso tem nela. Não me parece que haja campo de forças em Mecânica quântica. Que a impenetrabilidade do átomo seja devida ao seu núcleo implica o primado absoluto da exterioridade, do campo de forças, ao substancial, ao material. As galáxias não serão os grandes campos cósmicos?
11. Só um não cientista pode ter audácias destas.

 

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