domingo, 19 de outubro de 2014

Fenomenologia do ‘espiritual’ como sopro



1. Uma questão que se coloca numa fenomenologia, mormente quando ela se reclama do tratamento científico dos fenómenos, é a daquilo que justamente não é dado fenomenicamente senão de forma indirecta, por exemplo a amizade ou a experiência estética. Sem que seja algo de cortado do que, enquanto fenómenos, pode ser observado, não se dá no entanto como observável no sentido corrente da palavra, já que pode até escapar completamente à atenção de muitos observadores, que justamente não o serão. Trata-se de algo que pode ser dito melhor ou pior, aludido, ou muito bem evocado por um poeta, uma escritora que sejam capazes de dizer o que para outros é inefável, ‘não há palavras para o dizer’.
2. A etimologia da palavra ‘espiritual’ reenvia para a respiração, tanto o spiritus latino, como o pneuma grego e o ruah hebraico, para o sopro (ver neste blogue ‘‘Espiritual’ não é a mesma coisa do que ‘religioso’). Nas suas Metamorfoses do corpo, dos anos 80, José Gil falava do humano como “uma respiração que fala”. Há-de pois haver um primeiro estrato para abordar a questão, o da linguagem: ela responde ao desafio de ser capaz de dizer o que se passa noutro lugar não acessível aos falantes, noutro tempo, tanto contando algo que se passou já ou antecipando algo que haverá que fazer amanhã. Provavelmente, a primeira manifestação desta pujança das línguas, além da sua parceria com os usos técnicos a que forneceram receitas permitindo ensiná-los aos mais novos, foi o desfazer essa parceria contando mitos referentes aos antepassados e inventando rituais para acompanhamento desses contos, como se estes necessitassem de fenómenos com mãos e coisas além das palavras. Este exemplo dos mitos implica relação ao fora e ao antes da situação em que são contados em público. É provável também que os fenómenos religiosos que se lhes sucederam nas sociedades com agricultura e criação de gado tivessem também relação ao porvir, à fecundidade das colheitas e dos rebanhos.
3. O ‘provavelmente’ sublinhado acima indica que não vale desligar narrativas e receitas e, quem sabe, opiniões, de fenómenos da ordem da visibilidade, é um pressuposto fenomenológico: o que chamamos ‘espiritual’ resistirá a este pressuposto, como na tradição transcendental o que se chama ‘inteligível’, que para Platão ou Descartes era sem contaminação ao que se chama ‘sensível’. Quereria que este pressuposto fizesse parte da questão, que não se o largasse sem discussão mais ou menos atenta; evitar dualismos é constitutivo desta fenomenologia de inspiração derridiana: se se pretender que o ‘espiritual’ seja além do fenomenológico, significa isso não-relação ao discurso (que é fenomenológico), como pode parecer que seja a noção europeia de ideia, e também não-relação ao visível e palpável? Por exemplo, os motivos linguísticos de ‘significante’ e ‘signifié’ correspondem – o primeiro na articulação das palavras aos fonemas (letras) que as constituem e o segundo na articulação delas às frases que elas constituem – a diferenças entre sons, vozes sensíveis, mas que, não sendo sonoras, também não são ‘inteligíveis’, não são ‘separáveis’ dos sons de que são diferenças. É claro que essas diferenças, nem sensíveis nem inteligíveis, não são ‘espirituais’; são aqui apenas um exemplo (de uma ciência linguística) duma exigência fenomenológica a colocar ao ‘espiritual’. Não vou pretender que essas diferenças sejam ‘fenomenológicas’ nelas mesmas (uma diferença não é nem tem ‘nela mesma’), mas que só existem em fenómenos, aliás muito banais no nosso quotidiano.
 4. Chamamos literatura ao que veio após estas narrativas mitológicas ou religiosas. Nesses textos escritos apareceu em dois lugares que eu conheça duas operações de pensamento da categoria das reduções: a da definição (Sócrates, Platão e Aristóteles) em Atenas e a do deserto em Jerusalém, no livro hebraico dito Deuteronómio. O texto anterior deste blogue faz a comparação entre essas duas reduções. A primeira deu origem ao motivo de essência intemporal, a segunda à de aliança entre um Deus e o seu povo: ambas introduzem a ordem ética no pensamento político, o que permite perceber como no início do século III da nossa era tenha havido, nomeadamente na obra de Orígenes, uma conjugação entre estas duas textualidades, a grega e a judaica, no que veio a ser um pouco mais tarde a religião adoptada pelo império romano num processo de desagregação da unidade imperial que fora garantida durante uns bons quatro séculos.
5. Chegado aqui à maneira dum prólogo, vou traduzir parte dum texto que escrevi para o número duma revista francesa de história das ideias (Noése, Nice) sobre Filosofia e Religião, texto que intitulei Da fecundidade espiritual. Voltarei a um tema que várias vezes tenho bloguezado, o da aprendizagem da fala, no contexto do ser no mundo heideggeriano, da doação retirada que deixa ser o doado. Como é que um uso tribal, a língua, já lá, ancestral, exterior ao recém-nascido, se vem a tornar um uso dele, tão hábil e espontâneo que ele próprio o sentirá como seu, dizendo ‘eu...’, pensando, sonhando, decidindo, empreendendo tal ou tal obra, útil ou artística? Como é que este ‘interior’ (que o bebé ainda não tem), reino de toda a espiritualidade, se constrói a partir do ‘exterior’ tribal, dos seus parentes e colegas? Há muitas regras da língua, precisas e complexas, aprendem-se as mais importantes na escola mais tarde, mas aprende-se a falar sem as conhecer, fala-se sem poder dar-lhes atenção enquanto se fala, ainda que se seja um linguista: são elas que tomam posse daquele/a que se tornará pouco a pouco falante, com a sua voz inédita, que não imita a dos outros, adultos, velhos, do outro sexo. Tomar posse: em ap-prender, há ‘presa’ da criança por um laço que liga nele o que é necessário para que possa falar por si mesmo, espontaneamente, habilmente, exercer com autonomia a linguagem do seu mundo, tornar-se (aprendendo outros usos também) o ser no mundo que ainda não era (antes era um ‘ser no seio da sua mãe’). ‘Presa’ não é todavia uma ‘prisão’ pelos que lhe ensinaram (a língua não é fascista, que horror! mestre Barthes), os quais participam do que foi ensinado como o mesmo, as regras da língua (condição da linguagem como capacidade de entendimento tribal, de comum comunicação). Esta ‘parte’ dos mestres no aprendiz é também um laço, mas é preciso que eles se apaguem, que a doação deles – heteronomia – desapareça para que a autonomia seja, deles não ficarão senão vestigios apagados (portanto não ‘prisão’). Derrida[1] levou um tanto mais longe o que recebeu de Heidegger: esta aprendizagem da linguagem faz-se por redução fenomenológica da empiricidade (apagamento) das vozes dos que ensinam para que o aprendido se manifeste noutra voz, inédita, criada pelo jogo das diferenças linguísticas entre as diversas vozes (é o significante de Saussure), jogo que só existe nas vozes, é claro. Enigma da différance[2], economia do mesmo (a língua que se aprende) e excesso do singular (as vozes e suas falas), redução apagamento dos mestres para que o aprendiz fale pela sua voz e cabeça.
6. Este enigma pode ser abordado assim. Aprender implica a passividade daquele que antes não sabia, mas o aprendido é a actividade dele, na sua voz, sem que entre ambos, passivo e activo, se possa decidir, por exemplo primeiro passivo e depois activo: este duplo laço (um interno ao falante e o outro ligando-o à tribo dos que lhe ensinaram) permanecerá para sempre, a lei tribal e a do falante, esta será corrigida por aquela e terá que se afirmar muitas vezes face à lei dos outros, ganhar distância, dissimulando e enganando, gritando se for preciso, podendo mesmo ir-se a baixo, perder a cabeça. Os mestres permanecem retirados nos discípulos como seus antepassados, sem que se saiba como (os sonhos o atestam). O dualismo entre o inteligível e o sensível foi uma (de)cisão devida à definição deste duplo laço, historicamente necessária sem dúvida, corte entre a alma, depois o sujeito, por um lado, e do outro o corpo, o mundo, os outros: ‘substancializou-se’ o que é a lenta construção duma diferença duplamente ligada. A reminiscência é proposta expressamente no Ménon contra a aprendizagem, esta sendo manifestamente inadequada a dar conta das grandes experiências de pensamento que justamente vão além de tudo o que o pensador Platão aprendeu, o que é atribuído aos deuses: “quando a opinião realmente verdadeira e firme sobre o belo, o justo, o bem, e os seus contrários, se produz nas almas, digo que é do divino que nasce” (Político, 309c). Se foi sobre este enigma que tropeçaram Platão, Aristóteles, Descartes, Kant, Husserl, o próprio Heidegger, haverá que ler neles a indicação de que ele deve permanecer enigmático, indecidível, aporético. Aprendemos ao longo das nossas vidas; este belo enigma dos grafos (Changeux)[3] é a base  da nossa livre individualidade simultânea com a nossa socialização, ambas indissociáveis, como se disse: faz parte da fecundidade essencial das sociedades humanas, que lhes permite prosseguirem-se além das gerações, o próprio da fecundidade sendo ser generosa.
7. Ora, em certos humanos o enigma pode tornar-se ainda mais enigmático quando lhes sucede não suportarem mais alguns dos usos aprendidos que se tornam pesados demais para os seus desejos, quando são levados a ultrapassar os limites da clausura imanente social, religiosa noutros tempos, mediática nestes nossos de barulho e mediocridade do que se chama ‘publicidade’ e que vai bem além dos anúncios, o que se tem tornado o discurso público das metrópoles contemporâneas[4], do sistema tecno-financeiro a que cabe o que Heidegger chamou Gestell. É que os usos sociais são hierarquizados e o discurso público é aquele que empurra para invejar os melhores lugares, os dos ricos e os dos célebres, os lugares em que se pode ser invejado. É aonde a ‘presa’ do aprendido se torna-se ‘prisão’. O dinheiro e o espectáculo são emblemas de feitiços e portanto aprendidos, é certo, mas como estão sempre a voltar cheios de força não se apagam facilmente, permanecem uma heteronomia explícita, não apagada, que diz constantemente: tens que te tornar rico, fingir face às concorrências quotidianas, brigar pelos lugares que dão nas vistas, cultivar astúcias como saber experimentado. Cada um compreenderá o que pode um dia vir fazer-lhe dar a volta – como sucedeu a inúmeros homens e mulheres ao longo da história, e não apenas nas tradições ocidentais, é óbvio – e fazê-lo romper com a clausura social imanente aos usos estabelecidos em torno dos feitiços, a ruptura dita ‘conversão’, metanóia, mudança de usos para mais ligeireza na alimentação e na respiração, para que a espontaneidade recupere a ligeireza infantil, a habilidade procure desapropriar-se de todo o tipo de apropriação dos desejos e vontades dirigidos aos feitiços, ascese sendo o longo e lento trabalho desse apagamento em vista duma espécie de ingenuidade ética para a bondade, a clareza, a justeza da justiça, a temperança, que sei eu. O sinal dessa liberdade encontrada é a alegria desse novo caminhar.
8. Nos textos evangélicos, três oposições de apelo a essa ruptura diziam um ‘deus de gente pobre e fecunda’ contra o Dinheiro (Mateus, 6,24), contra o poder imperial de César (Marcos 11,17) e contra o Deus dos Mortos, o do Templo e dos sacerdotes (Marcos 12,27). Habituou-se, quem teve educação cristã, a esta linguagem, mas ela era tão radical que só foi historicamente possível porque no contexto do anúncio – boa nova, alegrai-vos – da iminência do fim do mundo, que a primeira carta de Paulo, aos cristãos de Tessalónica, antecipa com a imagem apocalíptica duma subida em bando dos cristãos para os céus: “nós, os vivos, que estaremos para a Vinda do Senhor [...] seremos reunidos [...] e levados sobre nuvens para encontrar o Senhor Jesus nos ares” (cap. 4,15-17), maneira hebraica de imaginar a ‘transcendência’ como ruptura radical da imanência. Que este fim do mundo não tenha acontecido levou a que os cristãos abandonassem a ‘ressurreição’ e fossem atraídos pela ‘alma imortal’ do platonismo, que permitia escapar à clausura social do império romano (mulheres e escravos tinham alma, tão imortal como as dos patrícios), como outros cultos faziam doutras maneiras. As igrejas virando ‘religião do império’ e depois da cristandade medieval, a ‘transcendência’ em relação à ‘imanência’ social, religiosa ou imperial, passou a ser reconhecida nas experiências excessivas da alma, que se desenvolverão ao longo da história ocidental em movimentos espirituais diversos, mosteiros e outros, e aquando do (re)nascimento da Europa, na Reforma protestante e seus posteriores ‘réveils’.
9. Compreende-se assim que o que aqui se chamou ‘espiritual’ não se confunde com o ‘religioso’, ancestral por estrutura, é corte com ele como com o mediático, em busca duma liberdade ligeira. Mas como toda a linguagem cristã da transcendência, Creador, ressurreição, alma (imortal ou não), incarnação, e por aí fora, se tornou filosoficamente caduca, já que ligada intrinsecamente ao sistema filosófico greco-europeu, à ontoteologia, haverá que olhar de formas diferentes as escapadelas espirituais, alargadas claramente hoje a opções de entrega social, que aliás vai prescindindo progressivamente de referência cristã, mas também a formas de paixões, artísticas ou de ofícios, que implicam rupturas difíceis. Nem tudo isto será ‘espiritual’, dirá com razão o leitor, como reconhecê-lo? A conversão que rompe com os feitiços torna-se manifesta na fecundidade em torno dele ou dela que transborda além das suas forças, uma ‘transcendência’ se manifestando na pobreza e nudez dos meios usados, em contraste com os critérios de eficiência predominantes. Quando se tem como referência os textos evangélicos, o que neles se lê como apelo espiritual mais forte é o de amar o seu próximo como a si mesmo, que tanto é a coisa mais difícil do mundo como está ao alcance de quem quer que seja, pobre ou rico, culto ou iletrado, o que muitas vezes leva à avaliação das necessidades e desejos dos chamados ‘pobres’, os fora da tribo. Paradoxo da fecundidade: larga-se a tribo para se esforçar de lhe devolver os que ela excluíu.
10. Se há um enigma da aprendizagem como fecundidade social, há um super-enigma do desaprender em vista duma fecundidade de outro grau, ético. Se com Derrida, se falou de vestígio (trace) para a aprendizagem dum duplo laço, o da sua espontaneidade e o que o liga aos mestres apagados, há agora que evocar Levinas que, a propósito do santo falava duma trace diachronique, dum passado que nunca foi presente, isto é que não conheceu a sincronia dum presente, que não passou por uma aprendizagem. F. Bernardo definiu assim o desígnio do filósofo francês: “pensar como a inquietação, o sobressalto, o cuidado obsessivo do sujeito pela sorte do outro, se faz sentir nele mesmo, independentemente da sua vontade”.
11. Desde Lutero, chamava-se a isto vocação: o não se poder fazer mais nada senão ‘isso’ que se busca, sem que se saiba como nem porquê, não se larga o barco mesmo na tempestade, de tal forma ‘isso’ é maior do que si próprio e o leva por caminhos inesperados, impossíveis, revelando forças ignoradas no momento em que se está perto de naufragar. A esta força mais forte do que as suas se pode aplicar o termo de sopro, que dissemos na etimologia do spiritus, do pneuma, do ruah, com a vantagem de ser um termo que evoca a respiração enquanto fenómeno biológico, que tem a ver com a energia de qualquer animal. O sopro é o que nos falta quando estamos cansados, seja de rude trabalho manual ou de lento esforço de escrita ou pintura. Há pois que evitar um corte entre o que propus como aprendizagem e esta fecundidade mais além do nosso quotidiano. Freud propôs o motivo de sublimação como um deslocamento de energias de libido para tarefas de ordem cultural, marcando assim uma continuidade nesse deslocamento, mas deixou o motivo sem análise (que outros terão feito?). Haveria que ter em conta a intervenção de factores vindos de fora susceptíveis de acordar desejos a sublimar, talvez ter em conta o motivo heideggeriano de possibilidade como relevando tanto do humano como do mundo que ele é, ‘podendo’ em dado momento duma vida abrir-se um outro horizonte, até aí não existente. É frequente com efeito nas biografias dos excessivos que um acontecimento, um encontro com alguém, tenha tido o efeito de desencadear uma metanóia, uma vocação inédita fortemente singular. Haveria pois uma bifurcação e não uma linearidade. E talvez haja que acrescentar que essa bifurcação, tendo um tempo em que se manifestou, não foi uma estrada que então se abriu a percorrer, não havendo estrada já feita, a bifurcação reaparecerá frequentemente em novas possibilidades. E então o sopro não é apenas ‘energia’ (nem a sublimação) mas avaliação do que há que fazer, do como continuar, o sopro como fôlego que não cessa. Impedir que o sopro seja uma ‘transcendência’ – a não ser a do próprio caminhar diferente, fora dos usos – será pedir-lhe que não seja ‘aprendizagem’ (não creio que se possa dizer que o recém-nascido no parto aprende a respirar) e portanto não apenas ‘tribal’, do mundo, mas também não seja ‘decisão’ de quem já sabe para onde vai, mas “inquietação”, como dizia Bernardo. A permanência dum fôlego nunca está garantida, há-de sempre voltar a soprar, mas não é a vontade do próprio que sopra, não é ela quem decide, como diz a bela palavra cristã ‘graça’. Ora, numa escala ética baixinha, qualquer um de nós vive assim, recebe sopros que fazem fazer, mesmo quando estamos cansados mas ‘tem que ser’.



[1] De la Grammatologie, Minuit, 1967, p. 91-95.
[2] Derrida, La différance, Marges. De la Philosophie, Minuit, 1972, p. 20.
[3] Impressos de fora sobre os neurónios (passividade) criando sinapses (Kandel), são no entanto a actividade deles.
[4] É certo que há coisas boas nos médias por vezes, falo na dominante dos que estão submetidos à lei de financiamentos dependentes de números de ‘clientes’. 

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