quarta-feira, 6 de agosto de 2014

“A fé nas coisas criadas” de Cl. Magris


“Não é necessária fé em Deus, basta a fé nas coisas criadas, que consente que nos movamos entre os objectos persuadidos de que eles existem, convencidos da irrefutável realidade da cadeira, do guarda-chuva, do cigarro, da amizade”.

1. Esta citação de Cláudio Magris do Danúbio[1] iluminou-me sobre o meu percurso de vida, como raramente me sucede.
2. Tive sempre alunos para apreciarem o meu ensino, mas constatei que quase sempre os melhores tinham vindo à filosofia por razões de ordem existencial, o que os levava a preferir, em vez das minhas preocupações filosóficas com ciências e civilização, alianças com literatura e outras artes, de que eu era demasiado ignorante para que o meu ensino lhes fosse útil. É que eu não viera à filosofia por razões existenciais, essas consumira-as jovem, se dizer se pode, na minha adesão muito forte ao cristianismo, que deste nem sequer as questões filosóficas de ética me sobraram.
3. É certo que o autor desce das coisas aos objectos, as ‘coisas criadas’ são ilustradas bizarramente com uma cadeira, um guarda-chuva e um cigarro, e com uma não-coisa, a amizade (que foi o tema do primeiro texto que publiquei). Esses ‘objectos’ dificilmente podem ser considerados ‘coisas criadas’, a não ser pelo marceneiro e outros fabricantes. O que me iluminou fez pois um deslocamento dos exemplos, para o que excitou sempre a admiração de Aristóteles, os vivos que nascem e se alimentam e crescem e morrem, os humanos que além disso aprendem usos e os ensinam, entre os quais as falas e os textos, as sociedades que assim fazem muito lentamente história. O que me fascinou foi o movimento autónomo dessas coisas como sua ‘criação’, indeterminadas e doadas por outras igualmente indeterminadas, desde a luxúria das plantas – desmedidas em ramos, folhas, flores, frutos – sem saírem do seu lugar de raiz até ao enigma dos humanos, de cada um em seu rosto e habilidade, dos menos dotados aos que achamos geniais. Essa autonomia é doada por uma heteronomia que se retira para que a autonomia não seja vã, mas doada por iguais em espécie, não por um demiurgo.
4. E o que me revelou Cláudio Magris? Que a minha ‘fé’ actual, o que da antiga se fez paixão vital, assentava nessa compreensão do movimento autónomo das coisas em suas alianças e rivalidades, que dessa compreensão recebera uma serenidade – que chamaria ‘liberal’ – perante o que sucede, em que tão importante é o que há que fazer como deixar que o suceder se faça. Que encontrara aí, sem saber que o procurara, as minhas razões de ordem existencial. Por isso o ‘criador’ da ontoteologia (o que determina as ‘coisas criadas’) se despegou lentamente sem custo, deixando-lhe apenas o rasto no rosto vulnerável, como Levinas nos ensinou. A fecundidade dos santos.




[1] P. 51 da tradução de Miguel Serras Pereira, (sic) idea y creacion editorial

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