segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Ocidente / não Ocidente


A propósito do livro 
Boaventura de Sousa Santos, Se Deus fosse um activista dos direitos humanos, Almedina, 2013


1. Comprometi-me, face ao estimulante prefácio deste livro de título bizarro, a comentá-lo se me suscitasse a isso. Não se trata em todo caso duma recensão, mas a tarefa é delicada demais. Por um lado, o autor põe o seu trabalho de sociólogo alter-mundialista ao serviço duma questão extremamente importante e extremamente complexa, como ele sabe e repete, e devo dizer, não só que me parece muito conseguida aos meus olhos de profano nestas questões e sem desacordos significativos em relação às suas análises[1], como me senti interpelado no inacabado duma obra que publiquei há 40 anos (Lecture materialiste de l’évangile de Marc. Récit, pratique, ideologie, Cerf, 1974), por ter tomado outros rumos impostos (mas com gosto meu) por uma carreira universitária inesperada, a leitura revelando como estou fora destas questões. Por outro lado, eu tenho trabalhado numa perspectiva filosófica diferente da que BSS pressupõe[2] e a distância entre ambas saltou-me a cada página, sem todavia que a crítica epistemológica da posição sociológica de BSS possa ajudar, por insuficiência minha, em questões tão importantes para grande parte da população mundial.
2. A questão é a de saber articular as lutas de libertação das diferentes gentes oprimidas (social, política, sexo, raça, colonização...) com os movimentos teológicos e espirituais que nelas se manifestam a favor dessa libertação, e bem assim despistar os fenómenos religiosos fundamentalistas que jogam a favor da opressão[3]. Limitar-me-ei pois ao ponto que me parece ser de divergência (sendo que BSS tem obra vasta que conheço mal), a maneira como fala de “monoculturas rivais”, a do Ocidente e as das sociedades não ocidentais, com o exemplo do colonialismo (p. 76-80), achando que “a força das novas concepções raramente residiu em si mesmas, mas antes no poder daqueles que as queriam impor” (p. 78). É o termo monocultura que me parece discutível, o ‘mono’ fazendo com que a cultura apareça aqui e ali como instância outra do que o económico, o politico e o social, à maneira como em antropologia se fala de simbólico e o marxismo falava de ideologia, isto é, como uma instância relativamente autónoma da sociedade. É entre monoculturas que se propõe a possibilidade de confronto ou de diálogo consoante, como se se tratasse do mesmo tipo de autonomia no Ocidente e em todas as sociedades não ocidentais. De facto, excepto possivelmente na questão dos direitos das mulheres e do feminismo como movimento de libertação, já que o patriarcado parece ser universal, há uma diferença grande entre a maneira como as sociedades asiáticas de grande civilização entraram em contacto com o Ocidente e como o fizeram as islâmicas, africanas e latino-americanas. Tanto o Japão como a China, e quão diferentes são, adoptaram as técnicas e as ciências duras do Ocidente e trataram de fazer a sua própria ‘libertação’, capitalista mas seguindo as suas tradições (ver as minhas tentativas de pensar as diferenças entre a história ocidental e uma civilização asiática: o contraste que há entre o alfabeto e a definição, por um lado, e a escrita chinesa, por outro[4]; ou entre o Ocidente e o Japão, sociedade não monoteísta[5]).
3. O que quereria sublinhar é argumentado no texto sobre a escrita chinesa. O que diz a razão da proeminência ocidental enquanto único conjunto de sociedades que produziu a modernidade tem a ver justamente com a sua história relativa ao saber, que BSS trata como se fosse uma sabedoria equivalente à das grandes literaturas asiáticas ou islâmicas. A invenção da definição pela escola socrática de filosofia gerou algo de inédito, um tipo de texto gnosiológico, sem a morfologia dos verbos narrativos, composto de argumentos sobre essências intemporais e incircunstanciais, arrancadas ao contexto das opiniões e narrativas. É aliás contra isso que joga a necessidade reclamada por BSS de contextualizar as questões de libertação, toda a problemática moderna da relatividade implica redobrar a atenção aos contextos. A outra grande etapa (em que o cristianismo teve um papel historicamente importante, apesar de vir a pagar o preço da secularização) foi a invenção do laboratório científico que introduziu na história gnosiológica um saber em que a matemática e técnicas convencionais de medição intervêm para produzir conhecimento, o que veio a permitir a invenção de máquinas, de transformações químicas inéditas, da electricidade, daquilo que o termo técnica costuma resumir. Ou seja, a tal ‘monocultura’ ocidental teve um papel único na história: conhecimento que transforma os usos sociais, reformula o social e por arrastamento os seus paradigmas de organização económica e politica.
4. Ora, é esta transformação exuberante que os médias actuais dão em espectáculo às gentes que não partilham dos benefícios dela, quer as classes trabalhadoras das sociedades ocidentais, quer as populações das outras sociedades que se descolonizaram em vista de virem a beneficiar dessa transformação. É este espectáculo mediático que é o grande engodo do capitalismo imperial. Se for certo que a religião é uma estrutura social holística ancestral, que releva de todos os antepassados e liga toda a população, pode-se pensar que nas sociedades cosmopolitas modernas secularizadas foi a escola obrigatória que se tornou holística em vez da religião privatizada; em seguida os médias em geral, desde os livros e jornais aos das imagens e músicas, constituem o laço social da secularização, constituem o novo “ópio do povo” (como os fundamentalistas americanos compreenderam despudoradamente). Embora sem deixar de suscitar ‘espiritual e politicamente’ os activistas de libertação de que BSS dá conta, incluindo uma bibliografia imensa e variadíssima.
5. Quando se diz que “os três princípios da regulação social moderna ocidental são o Estado, o mercado e a comunidade” (p. 120), não se percebe como é que este terceiro termo faz série ou paralelo com os outros dois, que são efectivamente transversais de regulação (de trocas e de ordem) às várias estruturas sociais. A “comunidade” consistirá na rede das ‘famílias’? Se for o caso, há que dizer que ela é trabalhada justamente pela escola, que recebe as crianças das famílias para as fornecer com saber mais ou menos adequado às instituições onde se trabalha, e que os médias de massas são as famílias que visam sobretudo: não ‘a comunidade’ mas a escola e os médias, com bem e com mal – a que ninguém escapa ainda que em graus e aspectos diferentes –, serão pois o terceiro grande laço social com o Estado e o mercado, os três laços transversais e holísticos que tornam tão difícil a libertação, tão problemática a eficiência dos direitos humanos.
6. A questão então a pôr é a do porquê desta dificuldade. Nós nascemos sem nenhum saber, a nossa autonomia virá do saber que aprendermos dos outros e se faça nosso[6]. Há neste processo que dura a vida toda um enigma fundamental, já que é o saber dos outros, de muitos outros, heteronomia, que se tornará saber nosso, autonomia: o que implica que os ‘outros’ que nos ensinaram se apaguem na nossa memória como condição de falarmos e pensarmos e amarmos por nós mesmos. Chegar a adulto é uma primeira ultimação deste processo que nos permite ser cidadãos livres e actuantes na nossa sociedade. Ora, encontramos nos evangelhos cristãos três alternativas de escolha espiritual – “Deus ou o dinheiro” (Mt 6.24, Lc 16.13), “Deus ou César” (Mc 11.17, Mt 22.21, Lc 20.25), “Deus dos vivos ou Deus dos mortos” (Mc 12.27, Mt 22.32, Lc 20.38) – que são perfeitamente actuais (não é necessário ser-se crente, leia-se a justiça e o amor do próximo como sentido bíblico da palavra ‘Deus’) e visam os feitiços das três instâncias ou laços de regulação social. Porquê chamar-lhes ‘feitiços’ sociais (termo português onde Marx foi buscar o ‘fétiche’)? Porque têm uma eficácia nos nossos desejos que justamente não se apaga, porque constantemente actualizados pelo jogo global dos médias, desviam os desejos para querer ganhar cada vez mais, para o poder (e o medo em consequência) e para o deslumbramento dos ‘deuses’ mediáticos, jogam como uma espécie de ‘aspirador’ de desejos heteronomizando cada um, impedindo as autonomias que poderiam criar comunidade em redor como libertação social. É uma eficácia anónima, interveniente no quotidiano sem necessidade da força de polícias da parte do capital e do poder, basta-lhes, além das burocracias integradoras, o jogo dos espectáculos, a força imensa dos luxos e sorrisos a fingir de alegria. Mas acrescente-se que estes feitiços também enfeitiçam e heteronomizam os ricos e poderosos, que por regra não têm vidas invejáveis, como de fora pode parecer.
7. Ainda um ponto de discórdia parcial quanto à noção de “injustiça cognitiva” que me parece despropositada, dado o § 3 acima. A “monocultura ocidental” seria “injusta”, em sentido equivalente às injustiças de exploração social, de sexo e raça e colonização, relevaria de algo que se acrescenta à ‘cultura’ como força extra, armada ou política, que se imporia a “culturas inferiores”. Creio que a afirmação é defensável em relação à missionação católica e protestante que acompanhou a colonização, clero de mãos dadas com os colonos, e devastou culturalmente as sociedades autóctones, os indígenas americanos tendo sido dizimados[7] no primeiro século de conquista das Américas por portugueses e espanhóis e uma boa parte dos africanos escravizados e emigrados à força[8]. Mas a essa missão, monoteísta entre Bíblia e filosofia grega, resistiram claramente islâmicos, hinduístas, budistas, confucionistas, as respectivas literaturas pedindo meças às ocidentais, o que indica os limites duma tal noção de “injustiça cognitiva”. Ora, essas civilizações, a islâmica com maiores dificuldades, é certo[9], abriram-se completamente às invenções técnicas e científicas do Ocidente, sem ressentimentos diante do que seria uma ‘injustiça’ devida a desigualdade cultural.
8. O que receio, eu que tenho trabalhado em questões que relacionam filosofia e ciências (e cristianismo) na história do Ocidente e que me deslumbro com os grandes apaixonados dessa história, é que uma tal concepção altermundialista faça olhar com ressentimentos estapafúrdios essa nossa história que fica aquém da história da guerra, das conquistas e das explorações comerciais e coloniais, embora possa ter beneficiado delas financeiramente e em termos mineiros. O que me confrange, isso sim, é que essa história fabulosa, hoje fecunda mundialmente, tenha desaguado em boa parte na brutalidade da guerra dos capitais, destrutiva das economias dos próprios países ocidentais, a começar pelos Estados Unidos, devastando as ecologias cujos segredos foram sendo desvendados. O que me confrange é ver a maneira como as estruturas financeiras, guiadas por M. Friedman e sopradas pelas inovações electrónicas, caíram nas mãos de gente ignorante, já não proprietários privados ávidos mas gestores que não vêem senão ecrãs de números astronómicos e taxas que lhes prometem uns milhõezinhos nos bolsos a troco de brilhantes esquemas de extorsão. Ser isto o desfecho (actual) de uma tão grande aventura intelectual, tanta burrice, tanta miopia, brada aos céus!



[1] A excepção é em relação à piada esquerdista de mau gosto sobre uma « profecia cumprida » que pressupõe a equivalência entre Bush e Obama e que Republicanos e Democratas andam de braço dado (p. 66), o que claramente a nota 66 da p. 72 desmente.
[3] Sobre a diferença entre ‘espiritual’ e ‘religioso’ ver texto no blogue nº 2 citado, embora esse meu texto não pareça adequar-se sem mais ao que está aqui em jogo, já que se refere ao cosmopolitismo das sociedades ocidentais e ignora as questões alter-mundialistas.
[5] www.philoavecsciences2.blogspot.pt/2008/08/le-japon-une-socit-non-monothiste.html
[6] É onde reside a grande ignorância da modernidade ocidental sobre as sociedades, reputadas como ‘conjuntos de indivíduos’.
[7] Literalmente: reduzidos a um décimo da população, segundo os cálculos de Pierre Clastres (A sociedade contra o Estado).
[8] Um exemplo notável de ‘eficiência’ das culturas indígenas é o livro do etnopsiquiatra Tobie Nathan, trabalhando com emigrantes africanos perturbados e utilizando mitos e rituais que estudou junto dos feiticeiros locais para os ‘curar’, à maneira duma psicanálise transplantada..
[9] Devido ao monoteismo e ao peso antropológico das estruturas familiares (“harém dos primos”, escreveu G. Tillon). O seu fundamentalismo, tal como o cristão americano, resulta da percepção das liberdades ocidentais vistas nos médias que atraem os jovens. Ora, estas são consequência, quer da técnica, autonomizadora dos indivíduos (máquinas libertam músculos e acrescem saber), quer da escola e dos médias, pelas suas incidências na transformação dos usos, organizações e entretenimentos sociais. A moral tradicional resiste à modernidade, como foi o caso do catolicismo: será uma questão de gerações?

Sem comentários: