quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Da Physica de Aristóteles à Fenomenologia reformulada




1. “É preciso estilhaçar o todo”, proclamou Nietzsche contra Hegel. Está feito, é essa a nossa situação, condenados a não saber senão estilhaços. Sem que pareça haver quem se escandalize com esta derrota do pensamento, todos se resignam talvez sem darem por isso, compreendendo confusamente que este estilhaçar propício a todos os relativismos é efeito do desenvolvimento das ciências que se multiplicaram em especialidades incontáveis, incontroláveis, desafio a qualquer hipótese de saber unificado. Diante desta avalanche de saberes que os filósofos doravante ignoram, as filosofias recebidas, em torno do sujeito e do objecto, não tinham possibilidade de se defenderem – que o ‘sujeito’ é filho da ‘alma’, oposto ao corpo, à linguagem, ao trabalho, à sociedade, a todos estes ‘objectos’ que as ciências têm dado a conhecer –, perdida a capacidade sistemática de que Hegel terá sido o último artesão. Ora, foi o ‘todo’ dele, tentativa de domesticar o relativismo ao abarcar a história, reino da relatividade por excelência, da indeterminação, que foi visto por muitos, à tort ou à raison, como a fonte dos totalitarismos tremendos da primeira metade do século XX, que foram levados assim à recusa da própria empresa sistemática e da sua determinação.
2. Como responder a esta dupla desconfiança? À falta de tradição filosófica satisfatória sobre as novas questões científicas, só se pode obviar recorrendo ao saber oferecido pelas próprias ciências, pelas biologias, linguísticas e semióticas, antropologias, economias, ciências sociais, psicologias com neurologias, recorrer assim ao próprio material estilhaçado, às grandes descobertas das ciências do século XX, o que pode ser feito desde que se recorde que todas estas disciplinas tiveram origem na filosofia (além da geometria e da astronomia) e que só se puderam autonomizar das questões metafísicas com o corte de Kant entre filosofias e ciências: pode-se recuperar essa dimensão filosófica delas após que esse corte tenha conseguido os seus propósitos e manifeste agora, como seu efeito crepuscular, este escândalo dos saberes estilhaçados. E como o fazer? Só com recurso à filosofia que no século XX se deu como questão justamente essa articulação das “ciências europeias” em crise (Husserl) através dos seus discípulos dissidentes, Heidegger e Derrida, que puseram a ‘diferença’ antes da ‘substância’ e assim tornaram possível pensar uma sistematização que tenha a indeterminação no seu âmago. É que no fundo as ciências é de ‘estilhaços’ que se ocupam, é delas que nos dão a conhecer as artimanhas.
3. Aconteceu assim, à lenta experiência da escrita buscando, que o motivo derridiano de duplo laço se revelou adequado para explicar fenomenologicamente – aliança de filosofia com ciências – o movimento de tudo o que se mova, seja máquina, ser vivo ou estrutura social. Espanto dos espantos: encontrava-se uma réplica moderna inesperada para o que tinha sido a antiga Physica de Aristóteles, uma filosofia do ser em movimento (donde derivou uma metaphysica do ser enquanto ser) tornada caduca pelo progresso das ciências europeias, que nasceram dela e com ela romperam após uma longevidade de cerca de vinte séculos. É certo que ‘movimento’ e equivalentes noutras línguas modernas não incluem facilmente o sentido de ‘crescimento’ (duma planta ou animal) ou de ‘mudança’ (de qualidade: uma matéria que muda de forma, uma trans-forma-ção), como fazia o kinêsis grego, não impede que parece não ter havido, fora da Physica de Aristóteles (nem provavelmente no aristotelismo medieval, metafísico mais do que ‘físico’), nenhuma filosofia que tenha tomado a questão do movimento dos vivos como sua questão central, na modernidade que a partir de Descartes e Galileu reduziu o movimento ao deslocamento na extensão, no espaço (de tal maneira que uma boa Enciclopédia como a francesa Universalis não tem entrada para ‘mouvement’, remetendo para a cinemática, isto é, para a Física europeia).
4. Mas a análise desses movimentos chocou com uma dificuldade, senão uma aporia. A invenção da vida, da célula, foi a dum ‘mecanismo’, uma assemblagem de moléculas reunidas a partir dum mar de moléculas equivalentes, uma nova unidade capaz de se reproduzir adentro desse mar de moléculas, que a podem alimentar mas também destruir. O que significa que a célula é uma estrutura de auto-reprodução, uma estrutura conservadora, o que não anuncia nenhuma evolução, bem pelo contrário: a invenção da célula é a negação da futura evolução. Igualmente, uma espécie evoluída endogâmica é a negação da evolução que houve até ela ainda que os seus indivíduos sejam razoavelmente diferentes uns dos outros; a endogamia defende-a da introdução de genes que alterem a estrutura da espécie, igualmente conservadora: que os diversos órgãos e tecidos especializados funcionem como devem para garantir a auto-reprodução de cada indivíduo e não se metam a inovar, a cancerigenar. Também as sociedades tribais que Lévi-Strauss estudou são, disse ele, “frias” de resistirem a qualquer mudança, “contra o Estado”, acrescentou P. Clastres, o que não anuncia nenhuma história de sociedades complexas; e também nestas, casas, famílias ou instituições são estruturas de auto-reprodução quotidiana que exigem que os seus membros se conformem aos usos estabelecidos como rotina disciplinada e não se ponham a inventar comportamentos surrealistas, cada um seguindo a sua própria cabeça. Como é que conservação estrutural e inovação são logicamente compatíveis, é aqui a questão, que pedirá uma nova aliança entre filosofia e ciências (Prigogine), uma fenomenologia em que às ciências actuais se restitua a dimensão filosófica que tinham antes do corte kantiano entre ambas. Para entender essa aliança, haverá que abrir brevemente o espaço da desconstrução da ontoteologia (Heidegger) e respectivo logocentrismo (Derrida) da tradição filosófica e científica ocidental, iniciada pela fabulosa invenção da definição por Sócrates, Platão e Aristóteles, como se fez o percurso histórico entre duas filosofias do movimento.

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