quinta-feira, 19 de novembro de 2009

CONTEXTO, PORTANTO RELATIVIDADE

1. Se o sentido das palavras e das coisas varia consoante o contexto, elas são relativas a este. Relatividade, que não relativismo, pode ser um outro nome do que Derrida chamou desconstrução, isto é, o movimento de civilização (ocidental) que afirmou a historicidade e a textualidade como ‘ser e tempo’ do nosso tempo, digamos assim para também evocar Heidegger. Para se a entender, a relatividade ou desconstrução, terei que lhe dar algum contexto histórico.

Como a Filosofia grega inventou a alma fora do contexto
2. Alguém sentado à mesa num restaurante tem diante de si a mesa, a toalha, o prato, o garfo, a colher, a faca, o copo, o guardanapo, o arroz, o bife, o vinho, todos diferentes (a cada um sua palavra ou nome), formando um conjunto, ordenado na sua heterogeneidade. Isto é um contexto, espácio-temporal, que dura o tempo duma refeição, que a um romance basta evocar no início da cena, nomeando talvez uma ou outra das peças no decorrer dela, que um filme não pode deixar de mostrar nas mudanças de plano ao longo da respectiva sequência. Os textos narrativos e discursivos dizem o que se passa em contextos assim, em códigos que o Barthes 66, o da Communications 8, dizia ‘paramétricos’ porque sem alteração significativa ao longo da sequência, os quais fazem trança (tecido textil) com os códigos ‘sequenciais’ . Mesmo quando se trate de ficção, pode-se dizer que o contexto é ‘real’, como Lawrence Durrell na epígrafe do Quarteto de Alexandria: “a cidade é real”. A não ser que se trate de ficção fantástica, como a dos mitos, contra a qual a Poética de Aristóteles reclamava verosimilhança: ou seja, reclamava a verdade dos contextos.
3. Vamos agora à copa do restaurante. Ali, pilhas de pratos, depois os copos em exército, adiante as facas, depois as colheres, etc., trata-se agora de conjuntos, ainda ordenados, mas homogéneos; a todos os elementos de cada conjunto corresponde a mesma palavra: o nome ‘copo’ deixou de servir para distinguir os copos iguais uns dos outros. Podem-se contar todavia os que têm a mesma ‘forma’, a aritmética (ou a geometria das circunferências ou dos triângulos perfeitos) tendo induzido Platão a propôr uma ‘forma’ (eidos) eterna e perfeita de copo de que cada copo seria a cópia imperfeita. Neste ‘contar’ (computare) encontraríamos uma bissemia, o ‘contar’ uma história e o ‘contarem-se’ copos, equivalente ao duplo sentido do grego logos, que para o latim se traduziu e separou em discurso e razão. O primeiro desses sentidos diz o texto do particular em seu contexto: narrativo e discursivo do que se passa à mesa do restaurante; a razão diz o texto do geral das definições: gnosiológico , isto é dos entes (ou relações, virtudes...) fora dos contextos particulares, o texto do que se define e se arruma na copa.
4. Platão propôs que as tais ‘formas’ eternas tenham sido conhecidas pelas almas antes do nascimento e fossem susceptíveis de reminiscência: quis assim explicar o fenómeno que ainda hoje nos espanta, como é possível pensar e conhecer tão espontaneamente em nós, mais do que aprendemos dos outros, como é possível o que outros chamarão inspiração ou génio. Ora, esta alma pensante (de filósofo) que assim conheceu antes de nascer e que sobreviverá, imortal, além do corpo, é capaz de se arrancar ao seu contexto: “[...] é que realmente só o seu corpo é que está presente e mora na cidade, enquanto que o seu pensamento, considerando tudo aquilo [brigas, cargos, reuniões, festins] com desdém como coisas mesquinhas e sem valor, passeia por todo o lado o seu voo, como diz Píndaro, sondando os abismos da terra e medindo a extensão da sua superfície [geo-metria], perseguindo os astros no além céu [astronomia], escrutando de todas as maneiras toda a natureza e cada um dos entes inteiramente, sem nunca se abaixar ao que está perto dele”. Sem nunca se abaixar ao seu contexto: este, sendo particular, é mesquinho e rebaixado.
5. Aristóteles achou que Platão dera um passo fundamental - definiu as coisas, arrancou-as ao seu contexto e classificou-as pelas suas ‘formas’ -, mas errou ao separar estas das coisas, ao introduzir entre formas e coisas a diferença que há entre o céu e a terra. Grande filósofo das definições, o discípulo criticou e corrigiu o mestre, juntando cada coisa, na sua ‘substância’, com a sua ‘essência’, estas duas palavras latinas tendo em grego o mesmo nome (ousia), uma sendo ‘primeira’ e a outra ‘segunda’ (Categorias) . A ‘ousia primeira’ é singular, só existe em contexto de lugar e momento, onde os acontecimentos a afectam: ela tem constitutivamente acidentes, não pode deixar de os ter (tamanho e forma diferentes dos copos, serem de vidro ou de estanho; feitos por tal artesão, destinados à mesa do rei ou do escravo), mas por isso mesmo é susceptível de causalidade que a relaciona com outras ‘ousias’ (a dupla syntaxis aristotélica de duas causas, exemplificadas no parênteses acima: forma e matéria; motor e fim).
6. Ou seja, o contexto agora já não é mesquinho e rebaixado, mas é sempre particular - local e temporal - por definição (que é esta quem arranca do particular para o geral e para a intemporalidade das essências e dos silogismos), sempre aquilo que contam narrativos e discursivos. Por exemplo, das célebres dez categorias, a primeira é a tal da ousia primeira ou substância, cada pessoa ou coisa nela mesma, as outras nove descrevem os seus acidentes (para Aristóteles, tudo o que se pode dizer de algo cabe numa dessas nove categorias). Se é uma rapariga que se senta à mesa do nosso restaurante, ela será contada assim: alta e magra (quantidade), mais elegante do que é costume (relação), bonita e inteligente (qualidade), estava a comer (acção), suava com o grande calor que fazia (paixão), era domingo de Páscoa (tempo), o restaurante à beira do Tejo (lugar), sentada à mesa (posição), com um vestido comprido (posse). O pensamento filosófico está pois intimamente relacionado com os textos literários e quotidianos, se largou os contextos foi para melhor os pensar. O que se passou foi que ele criou o seu próprio texto (a que chamei gnosiológico), feito de definições e da lógica dos argumentos, e também o seu contexto social, o da escola, marginal aos contextos das casas e da cidade, e tendeu a funcionar cortado destes, mesquinhos e rebaixados, exibidos apenas como exemplos: como tenho feito aqui. Esta separação institucional - juntamente com as resultantes das traduções para latim que ocultaram esta relação ao literário (‘categorias’ e ‘acidentes’ tornam-se calão filosófico) e com a mistura da ‘universalidade’ e do ‘absoluto’ do cristianismo com as generalidades da filosofia - foi no entanto essencial para ‘construir’ a Europa, a nossa escola, as suas ciências, as suas filosofias dos sujeitos e dos objectos, das ideias, a técnica e a economia, o direito, o Estado e a democracia representativa, etc. O que se chama desconstrução é o ‘acontecimento’ de a civilização assim ‘construida’ estar - pelo seu desenvolvimento, que lhe deu uma certa ‘autonomia’ em relação à ‘natureza’ (n. 2 e 3) - a historicizar-se e a textualizar-se, a singularizar-se em (novos) usos, isto é a regressar aos contextos de que foi arrancada no alvor da filosofia e da geometria: como nas sociedades tradicionais estes contextos não mudam significativamente à escala de cada geração, este retorno acelerador da transformação dos contextos traz consigo uma relativização, oscilando entre relatividade e relativismo. É esta a questão que tentarei aqui tematizar um pouco.

Como a Filosofia europeia inventou a ideia e o sujeito
7. Uma das invenções filosóficas mais importantes da Europa foi a da ‘ideia’, como representação mental dos objectos nos sujeitos, susceptível de ser universal e necessária, isto é transcendente como a razão: ‘como’ a alma imortal de Platão, por definição sem contexto, ‘como’ o Deus do cristianismo, a que Descartes a ligou como fonte dela na alma, garante da sua verdade, inata em nós e podendo ser critério de verdade quando ‘clara e distinta’. É um esquema com algumas parecenças com o da reminiscência platónica e o seu crítico, émulo de Aristóteles, chamar-se-á Kant, que aliás também só corrigiu os excessos ‘celestes’ dos dogmáticos, não abandonou as ‘ideias’ (era cedo demais, só Nietzsche e sobretudo Heidegger o farão). Tanto Descartes como Kant procuram resolver, à maneira moderna, o mesmo problema que Platão, o da espontaneidade do pensamento. Na senda da primeira crítica do aristotelismo escolástico encetada pelo nominalismo, pioneira das rupturas da física de Galileu e Newton e dos filósofos ingleses da liberdade individual - e numa civilização que estava abandonando o latim e começando a escrever em línguas vernáculas diferentes consoante os contextos geográficos (línguas pois ‘particulares’, obstáculo ao pensamento universal e necessário que se busca como razão) -, não lhes era possível proceder de outra maneira: a ‘ideia’, com o respectivo mecanismo da análise e da síntese, era uma ‘ferramenta’ filosófica indispensável nos arsenais tanto de racionalistas como de empiristas, e depois de idealistas.
8. Porquê era necessária? Para a construção da modernidade europeia, como disse acima, para desconstruir o contexto escolar do aristotelismo institucionalizado (dito escolástico, o que se torna pejorativo), cuja syntaxis das duas causalidades impedia quer a física quer a liberdade individual (por razões que seria longo expôr aqui). Sabe-se que a maioria dos grandes pensadores e sábios dos séculos XVII e XVIII são relativamente marginais às universidades (onde estudaram) . Ora, o mecanismo da análise e da síntese permite justamente, digamos assim, retirar as novas ‘ideias’ filosóficas e científicas do contexto escolar em que elas foram recebidas, reelaborá-las e recomeçar a criar um novo contexto, científico e filosófico: por exemplo fundamental, um novo contexto em que a ‘alma’, quase platónica ainda em Descartes, ligada a Deus, dará lugar ao ‘sujeito’ de Kant, autónomo e virado para o mundo.
9. Porque é que este exemplo é fundamental? Porque Kant reelabora aí, digamos assim, metade da nossa questão da relatividade contra o relativismo. Todos os grandes pensadores ou pensaram ‘contra’ o relativismo (Platão com a forma eterna, Aristóteles com a ousia, os Escolásticos, Descartes e outros Leibniz com Deus) ou cederam-lhe, em seu combate contra o dogmatismo (Locke, Hume). Kant tenta evitar ambos: a) nem Deus nem a alma imortal nem a ‘substância’ das coisas-em-si (o triângulo do que Heidegger chamou onto-teo-logia) são susceptíveis de experiência , exit dogmatismo; b) é necessário que o sujeito que conhece cientificamente (o seu modelo é a física de Newton) ocupe uma posição transcendental para se poder garantir a verdade da ciência e evitar o relativismo. Transcendental quer dizer um sujeito que, em certo sentido como a alma do Teeteto, se mantém fora do contexto, digamos que permanece numa posição de exterioridade em relação à realidade dos objectos a conhecer. Posição, por assim dizer monoteista, em que o sujeito substitui o Deus absoluto, herdando dele a universalidade e a necessidade racionais. Só que ‘limitado’ à experiência fenoménica, ‘finito’ pois, apesar de transcendental. Para evitar o relativismo, não havia outra solução (que se opõe também à relatividade). Como se viu com Hegel que, após a revolução francesa e nos começos da industrial, introduz a história na Filosofia e teve que a coroar com uma Ideia absoluta para evitar o relativismo, agora muito mais ameaçador do que o de Hume. Porque é a própria história que é relativa: feita de acontecimentos ou ‘acidentes’, de particulares, ela desafia a filosofia, a definição e a argumentação. Nietzsche tirará a conclusão, propondo o perspectivismo relativista: há que rebentar o todo em migalhas, rindo tragicamente, correndo o risco de enlouquecer, que estas coisas não são só para brincar.

A relatividade de Galileu e de Einstein
10. A ciência do movimento que é a física europeia estará na raiz oculta do gesto kantiano de despedir o Deus cristão do seu projecto de conhecimento. Galileu exemplifica com barcos o que aqui faremos com comboios, que nos são mais familiares. Dois comboios estão parados numa estação, em sentido inverso, um deles começa a andar: nenhum dos passageiros, só com o olhar (sem estremecimentos do seu próprio comboio), pode saber se é o seu ou o outro. Se vai a 300 km/h, os postes eléctricos e as árvores correrão nas janelas a essa mesma velocidade, enquanto que o vidro e o caixilho da janela estão parados. Um comboio que passe à mesma velocidade irá a 600 km/h. O movimento não é absoluto, é sempre relativo a um contexto exterior ao móvel: em relação a si, o móvel está parado. O movimento da vida também: ser novo é relativo a ser velho e vice-versa, há sempre alguém mais novo e alguém mais velho do que nós, o cedo do dia é relativo ao tarde da noite, a doença à saúde, e por aí fora.
11. Einstein, que não foi ele que crismou a sua física de ‘física da relatividade’ e não terá mesmo gostado do nome, radicalizou esta perspectiva de Galileu (que Newton tinha limitado com uma noção filosófica de ‘espaço absoluto’), ligando o tempo ao espaço, a energia à massa ou matéria, a força da gravidade à aceleração e ao espaço-tempo. Mas também evitou o relativismo. O sentido de ‘relatividade’ aqui é o seguinte: só se pode conhecer fisicamente um movimento relativamente a um referencial (os eixos cartesianos OXYZ em metros, por exemplo, e um eixo temporal de segundos), ou seja a um contexto de medição por unidades convencionadas. No exemplo acima, só se sabe a velocidade do comboio medindo a distância percorrida na unidade de tempo num referencial parado. Esse referencial, por seu turno, anda no espaço - movimento orbital da terra - a mais de 100.000 km/h, o que se despreza quando se calcula a velocidade do com¬boio, que é relativa à estabilidade terrestre. Ora, o que Einstein procurou foi evitar este relativismo e buscar equações físicas valendo em qualquer referencial, ou seja validar por assim dizer absolutamente a ciência física. Exemplos: a velocidade dos fotões, ‘partículas-sem-massa’ da luz, 300.000 km/s, não dobra para 600.000 quando dois fotões se cruzam em sentido contrário, como sucede aos comboios; aquela velocidade é uma constante ou limite absoluto das velocidades (que permite assim medir distâncias astronómicas válidas em qualquer referencial, a do sol à terra, por exemplo: 8 minutos-luz). Segundo um físico contemporâneo, também há valores mínimos absolutos para a massa, o comprimento e o tempo (as constantes de Planck) . Outro exemplo ainda: um fotão em relação a si próprio como referencial acha-se parado (como um passageiro para o seu comboio), relativamente a ele o tempo não passa, não existe.
12. Voltemos ao transcendental de Kant: que poderá ele significar para nós hoje, que temos razões de sobra - os triunfos inegáveis da técnica saída da física e da química - para perceber que, no que à ciência diz respeito, Hume se enganou algures no seu diagnóstico relativista? Procuremos um exemplo. A lei da gravitação de Newton diz que qualquer grave cai para a terra com a mesma aceleração (9,8 m/s2), seja qual fôr a sua massa. Ou seja, um pedaço de ferro, um papel e o fumo dum cigarro, largados juntos, caiem juntos para a terra, à mesma velocidade. Bem, não é esta a nossa experiência na realidade de cada dia, como é evidente. Então, Newton? Ele responde: ‘o ar opõe maior resistência ao papel do que ao ferro e até mesmo empurra para cima o fumo, que é mais leve do que ele. A minha lei só se verifica no vazio’. Se formos a um laboratório (ou ao Pavilhão do Conhecimento no Parque das Nações) ver essa experiência num espaço sem ar, veremos com os nossos olhos conformar-se a lei de Newton para o ferro, o papel e o fumo. Qualquer lei da física só é experimentalmente ‘verdadeira’ no laboratório, não na realidade (onde as diversas leis da física se conjugam, consoante o aleatório dos contextos), isto é, fora do contexto da realidade quotidiana. O laboratório é filho legítimo da definição socrática: ele é estruturalmente necessário à física, já que cria as condições de determinação necessárias à experimentação, condições essa que não existem no contexto da realidade, sujeita a aleatórios incessantes, os tais acidentes que Aristóteles distinguira das essenciais ousias. Poder-se-ia dizer que Kant, ao querer teorizar o conhecimento científico, teorizou as condições laboratoriais dele: o trans- de transcendental dirá justamente o passo dado da realidade para saltar os muros do laboratório, a separação das equações matemáticas e da aparelhagem técnica de medida em relação à dita realidade de cada dia, de cada humano em seu trabalho, de cada comunidade na sua língua e cultura ‘particulares’, de todo este mundo numénico de que se ocupa a razão prática. Não há pois transcendental kantiano (gnosiológico) sem os muros do laboratório a separarem-no do contexto quotidiano de que falam os narrativos e os discursivos.

O sol anda ou eu é que sou louco?
13. Chegamos assim à difícil questão da relatividade do nosso conhecimento em relação aos nossos contextos. A história da queda do ferro, do papel e do fumo é significativa: se alguém sem nenhuma formação escolar assiste a esse espectáculo num laboratório, provavelmente julga que está a ver mal ou que se trata de magia ou de milagre, sei lá! Mas há um exemplo que nos toca a todos os escolarizados: a astrofísica de Copérnico, Galileu e Newton ensina-nos o duplo movimento da terra em torno de si mesma e em redor do sol, mas nós vemos todos os dias o contrário, que é o sol que anda em torno da terra. É uma questão de relatividade, já sabemos: se estivéssemos no sol, veríamos a terra a girar e o sol parado. Acresce que a grande maioria das pessoas nem sequer conhece a sua demonstração, relativamente complicada, que Newton estabeleceu enfim. Acreditamos na ciência contra a evidência dos nossos olhos, ao contrário dos não escolarizados que continuam a pensar que é o sol que anda, porque é o que vêem os olhos deles.
14. Ora, se eu visse a terra andar à volta do sol ou de si mesma, como a física pretende, eu estaria louco, teria perdido a cabeça que tinha ido para o lado do sol, tal como a alma do filósofo no Teeteto deixava o corpo para voar pelos ares. O projecto do saber que Platão abriu com a sua alma largando o contexto do corpo chegou com a astrofísica ao paradoxo de esta vir a provar a quem ficou no contexto que o que ele está vendo é errado (foi sempre errado para todos os humanos de todos os tempos) e que o certo é o contrário, que se não vê.
15. É esta estranheza que há agora que procurar compreender: a verdade dos olhos ‘contra’ a verdade das ciências. Haverá uma clivagem irredutível entre, por um lado, aquilo que sabemos por experiência, com estes olhos que a terra há-de comer, estas mãos e estes ouvidos, este corpo que somos, e por outro aquilo que aprendemos da ciência que se faz em laboratórios, em condições de determinação que lhes dão possibilidades de conhecimento que se podem revelar totalmente contrárias ao nosso conhecimento experimental. Não creio que se trate da velha oposição objectivo / subjectivo, já que este conhecimento experimental é o de todos os humanos, mesmo o dos astrónomos (como o da culinária ou o da condução de automóveis: conhecimento ‘igual’ para todos). A clivagem é entre, por um lado, o que aprendemos experimentalmente, à nossa custa, no nosso contexto de vida, e se torna saber espontâneo em nós, e, por outro, o que aprendemos vindo da ‘autoridade’ dos outros, por exemplo escolarmente, por leituras ou documentários cinematográficos, fora do nosso contexto. Sem que haja oposição, tentarei mostrá-lo, entre estas duas aprendizagens irredutíveis entre si que constituem o nosso saber.

Falar e pensar com as palavras dos outros
16. Para fazer o seu poema, dizia há tempos Manuel Gusmão, o poeta não dispõe senão das palavras dos outros. E Nietzsche: “o pensamento vem quando ‘ele’ quer, não quando ‘eu’ quero” (Para além do Bem e do Mal, § 17): não sou pois ‘causa’ dele, o ‘meu’ pensamento não é totalmente ‘meu’, veio-me, aconteceu-me. Na raiz: tive que ouvir, bébé, os outros a falarem em suas múltiplas vozes se grafando no meu cérebro, deixando rastos nele, para que esses rastos depois tenham começado a me darem voz e fala, minhas, dizendo em mim ‘eu’. Da segunda pessoa à primeira pessoa. Mas não só língua me vem, também saber e, para começar, saber-fazer os usos de cada dia, aonde justamente experiência vou adquirindo, de que saberei falar espontaneamente - em meu nome, com minha habilidade e talento, no meu contexto de habitação - do que aprendi e experimentei (na minha tribo, aldeia, bairro, escolas, empregos, percursos de viagem e de férias, e por aí fora). Doutro lado, ouço narrativas de acontecimentos passados noutros lugares e épocas, noutros contextos pois; ouço-as e repito-as, como ficção, e se do outro contexto não tenho experiência, entendo-as, inevitavelmente, a partir do meu contexto (ver n. 4). É a linguagem pois que é estruturalmente ficção, que permite dizer o ausente com as mesmas palavras do presente e comparar contextos, não nos deixa presos ao nosso, abre-nos horizontes (como a alma de Platão). Mas também é ela a ficção (aprendida, trazendo já saber-fazer dos outros) que nos permite dizer o nosso contexto presente.
17. Posso assim interpretar o ‘discursivo’ de Benveniste, o texto que se estrutura em torno do eixo da enunciação: eu / tu, aqui / agora, presente do indicativo e modos conjuntivo e imperativo; é o texto que tem a sua autoridade declarativa no contexto de quem o enuncia dizendo ‘eu digo aqui e agora que P’; é a base do cogito de Descartes. Quanto ao ‘narrativo’, ele estrutura-se no contexto dum lugar e momento (marcado por códigos topológico e cronológico), em torno do pretérito perfeito do acontecimento narrado, sem nenhuma das marcas da enunciação discursiva: “os acontecimentos parecem contarem-se a si mesmos [...] fora da pessoa dum narrador” (Benveniste). É por isso que eles podem ser facilmente contados saltando de contexto em contexto, como ficção, a sua autoridade conhecendo uma graduação, desde as narrativas contadas por testemunhas (que posso verificar no meu contexto) até às literaturas antiga ou asiática, aos mitos arcaicos, etc., com as diferenças de civilização se acentuando e a consequente estranheza dos seus códigos textuais a marcar as distâncias. Enquanto que o discursivo é irrepetível ‘de jure’, a não ser como citação narrativa: ‘ele disse em tal lugar e momento que P’.
18. Quer a repetição narrativa quer a dos usos quotidianos se misturam na aprendizagem progressiva dos saberes de cada um, mistura essa que contribui para a sua singularização, com seus talentos e defeitos, mas sem que se possa deslindar nitidamente nesse saber singular - fora a memória que ocasionalmente fique de tal ou tal aprendizagem - o que é experiência pessoal e o que é saber de outrem apreendido. Porque é condição essencial para que o que de outrem aprendi se torne meu saber, que posso enunciar espontaneamente como ‘meu’, que haja esquecimento absoluto dessa aprendizagem. Se eu ouvisse os vestígios das vozes dos que me ensinaram as primeiras palavras e saberes, seria alucinado, louco (é o que nos sucede em sonhos, aliás). Para que os rastos ou vestígios dos outros em meu cérebro (§ 16) falem em mim dizendo ‘eu’, têm que se apagar - serem esquecidos enquanto vestígios: ‘dos outros’ - para a consciência, para que esta seja ‘absoluta’ (sem laços), solta, possa falar-pensar a partir de si só, ao modo da crença firme, do solo em que me apoio para falar espontaneamente pela minha cabeça, na primeira pessoa, podendo dizer que estou certo do que digo, ou do que nego, ou da incerteza do meu ‘talvez’, ou ainda que não minto, que não estou doido . Só por via deste esquecimento absoluto, pôde Descartes afirmar o ‘cogito’ como fundamento, que a filosofia nunca reconheceu esta clivagem até Freud.
19. Que aquilo que eu digo se diga em palavras que não são minhas mas de todos, em palavras que aprendi, que o meu saber me veio muito mais dos outros, com autoridade deles, do que do que eu próprio tenha verificado e experimentado, disso eu tenho sem dúvida alguma pouca memória parcial (como quando faço uma citação com as devidas aspas), mas nunca enquanto falo por mim. Isto é, o meu saber é uma amálgama imensa de citações ‘esquecidas’ de que o são: o que só posso saber na terceira pessoa, em forma de argumentos gnosiológicos, isto é como algo que vale para todos os outros humanos também. Em todos os contextos e paradigmas. E assim sei também que todos falam na contingência histórica dos seus contextos e paradigmas, posso até ser capaz de interpretar ou descontruir em parte esses contextos: sei que todo o texto é histórico e portanto relativo. Mas que também o meu contexto seja relativo, só o sei de ‘fora dele’, só o sei na 3ª pessoa: não posso desconstruir o meu contexto ou paradigma. Reencontramos a clivagem do sol ou da terra a se moverem: por um lado, eu vejo que é o sol que anda, por outro, demonstram-me que é a terra; mas a experiência de os meus olhos verem o sol a andar é condição arcaica de eu poder compreender que se trata duma ilusão do movimento relativo .

Transcendentalidade: não, mas quase
20. A conclusão a tirar é que não poderemos tornear sem mais a maneira como Kant teve que manter a noção metafísica de transcendentalidade para poder compreender o pensamento físico (as suas leis universais e necessárias em qualquer contexto, isto é em qualquer laboratório) sem cair no empirismo (§ 9). Pode-se dizer que é o próprio laboratório, com o seu paradigma, feito de matemática e convenções de unidades de medida universais e de aparelhagem adequada às medidas e experimentações, e com os seus muros garantindo as condições de determinação (de eliminação do aleatório), que coloca o cientista em posição de transcendentalidade. Ou quase. Porque essa transcendentalidade é historicamente construida, e portanto não escapa à relatividade (que aliás foi a física a primeira a enunciar, Galileu padeceu bem por isso), não é uma ‘verdadeira’ transcendentalidade. Nem se mantém quando o cientista sai do laboratório e se põe a contemplar um lindo pôr de sol. É por isso, diga-se de passagem, que os determinismos decretados por muitos cientistas não são válidos senão dentro do laboratório, condição de ciência, não lei da realidade extra-muros, aonde os nossos olhos valem e as regras da língua se adequam ao aleatório dos contextos e situações.
21. Por outro lado, a escola que nos ensina e demonstra (ou deveria fazê-lo) as ciências da modernidade e as suas leis, laboratorialmente validadas (de que as técnicas dão aliás testemunho aos nossos ‘olhos’), a escola tem um papel esmagador no saber que temos, enquanto especialistas de certos ramos e enquanto gente culta, o qual saber vai obviamente muito além do que experimentámos fora dos livros, das imagens e das aulas. Mas esse saber está integralmente contido na experiência de aprendizagem, sem a qual não podemos dizer nenhum ‘eu sei que P’ significativo no mundo das especializações ou da cultura. O que implica que a escola tem um papel equivalente ao do laboratório do cientista (este prolonga a escola aliás), de instituinte dum saber ancestral (ainda que recente) vindo de outros, com autoridade: ela também coloca as nossas enunciações em posição de quase-transcendentalidade. Mais uma vez, o ‘quase’ indica a contingência histórica e singular da instituição dos saberes e também das aprendizagens, a relatividade radical destes saberes ‘na terceira pessoa’, em clivagem estrutural com o ‘eu penso’ da espontaneidade da consciência. Nesta clivagem entre os rastos dos outros e o seu apagamento essencial, da qual deriva uma outra clivagem, entre a memória (o subconsciente de Freud) e a consciência, creio que reside o enigma mais forte dos humanos, de que os motivos da alma e do sujeito foram expoente em suas épocas.
22. O que é então o que Derrida tem procurado pensar como desconstrução, na sequência, senão de Galileu e de Kant, pelo menos na de Nietzsche, Husserl e Heidegger, de Saussure e Freud, de outros ainda? Tentemos dizer assim. Nas sociedades tradicionais, a transcendentalidade do que aí se aprendia era recebida de ‘todos’ os antepassados (sociedade holística: ‘holon’ é o ‘todo’ em que todos estão integrados ancestralmente): com suporte na linguagem, que pode articular contextos diversos por as suas palavras e regras serem as mesmas para todos, e que articulava o plano do sagrado comum, que na civilização monoteista medieval era o do Deus transcendente, criador de todas as coisas . O movimento formidável, revolucionário no forte sentido da palavra (da revolução industrial), de transformação dos contextos das sociedades modernas por obra, quer dos laboratórios científicos donde sairam as técnicas que mudaram as paisagens geográficas e citadinas, quer das escolas donde sairam os indivíduos especializados que as habitam, trouxe a mudança dos usos quotidianos que nos mudaram também aos que assim usamos. Tal transformação, fruto da ruptura moderna europeia, só foi possível pelos efeitos da filosofia e da ciência gregas, dessas ficções esplêndidas que foram obra da definição: a alma, a ideia e o sujeito; todas, como disse inicialmente, abstraídas do contexto dos usos quotidianos, isto é, colocadas em posição transcendental aos contextos dos usos, mas agora (singularidade do século XVII) com as línguas vernáculas a fazerem também elas parte desses usos particulares . Foi assim que a modernidade - sendo a transformação substancial dos contextos, quer dos usos, quer dos humanos que usam, escolarizados e empregados segundo as suas especialidades - se historicizou e textualizou, como dissémos no início. Não há mais possibilidade de sagrado holístico como outrora: de forma muito geral, pode-se chamar ‘cultura’ ao que substituiu o sagrado, cultura que continua a ser recebida de antepassados, os que fizeram inventos e descobertas, mas que têm agora nome e obra, que são múltiplos sem que ninguém os conheça em totalidade (holon) nem lá perto; em que a atitude crítica é intrínseca à cultura, incessantemente objecto de escolha e avaliação (o que justamente era ‘heresia’ na civilização medieval holística).
23. É este o mundo da relatividade, aonde não há mais totalidade integradora : praticamente (quase) tudo foi construido historicamente a partir das ficções anteriores, e foram estas que foram desconstruidas, mas sem se anularem os efeitos de separação. Como é que este motivo da desconstru¬ão evita o relativismo? na consideração desta não-anulação, marcando continuidades sob as rupturas: a quase-transcendentalidade é uma dessas marcas. Ela significa que, ao não podermos mais pensar em termos de alma, de ideia e de sujeito, que foram rebatidos nos contextos donde ficcionalmente tinham sido arrancados outrora (como aqui se tentou mostrar com as palavras dos outros e a aprendizagem), não podemos negligenciar os efeitos históricos da transcendentalidade apesar da desconstrução. Que sabemos que se trata de uma ficção, quando reconhecemos que continua a ter pertinência histórica no devir da nossa civilização, eis o que marca o ‘quase’.
24. Dito de outra maneira: uma verdade relativa é um paradoxo, já que a ‘verdade’ é para valer enquanto tal em diversos contextos e a relatividade implica a variabilidade com os contextos. Este paradoxo é inerente à definição que vimos ter constituído a filosofia, arrancando ao contexto para criar um texto de essências e argumentos intemporais, um texto escrito em tal lugar e momento por tal pensador, portanto histórico, contingente, capaz de afirmar coisas intemporais, e até ‘eternas’ ou ‘absolutas’. Os nossos textos filosófos e científicos serem capazes de ‘verdade’ arranca-os ao seu contexto, mas como sabemos que são históricos, não podem ser totalmente arrancados ao seu contexto. 'Verdade relativa' diz esta situação paradoxal e incómoda, a quase transcendentalidade.
25. Visto do lado da sucessão de gerações, o ‘trans’ é o passo que ‘passa além’ da morte de uma geração, que se grafa nas aprendizagens da outra; o ‘quase’ será então o sabermos do apagamento absoluto desses grafos, da sua contingência, nas consciências novas, que falam, que agem, que inventam, e que para isso conseguem soerguer-se ‘fora do seu contexto’, como a alma de Platão. É o que lhes permite falar e inventar quase-absolutamente, à maneira de quem tem ‘ideias’. Eis o que parece dar ironicamente razão aos mais opostos dos pensadores europeus clássicos, o Descartes do cogito e o Hume do conhecimento como ficção: cada um deles terá destacado um dos lados da clivagem dos humanos, mas ignorando o outro. Freud foi o primeiro a ligar ambos, tendo mostrado como nos nossos sonhos, interpretados a partir das associações de ideias na relação terapêutica, o apagamento dos rastos dos outros ainda é visível, e tendo chamado inconsciente ao que desse apagamento é absoluto: ele exprime-se como recalcamento do incesto, interdito no contexto da sexualidade familiar. Os argumentos aqui utilizados são todavia autónomos em relação aos da psicanálise.

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