segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

1962. OS PARADIGMAS DE KUHN


1962. OS PARADIGMAS DE KUHN.
QUANDO HEIDEGGER ACABA
E DERRIDA COMEÇA LENDO HUSSERL

O conceito de paradigma em Th. Kuhn ou a física vista do lado da história
Husserl: A história da geometria vista do lado da filosofia
Ereignis e paradigma
O divórcio entre o laboratório e o mundo da vida


1. O que é que Kuhn tem a ver com a fenomenologia? per­guntar-se-á. Antes de vir à resposta nos limites do tempo dum congresso (sem portanto tra­tar da questão maior das relações entre ciências e fenomenologia nem na consequente revisão do conceito de fenomenologia a que essa questão obriga: encontrá-la-ão colo­cada no meu texto que está na página internética da Af­fen[1]): não vos escandaliza que, sinal dos tempos, já que tam­bém o atesta a mais recente literatura especializada, quando se faz um elenco largo das questões e ses­sões correspondentes num Con­gresso sobre “Fenomenologia hoje”, estejam lá todas as mais legí­ti­mas preocu­pações filosóficas da actualidade, com ex­cepção da que sem­pre comandou o fundador, a fenomenologia como de­vendo per­mitir organizar, fundar dizia ele, o campo frag­mentado das ciên­cias? Ora, eu tenho A estrutura das revoluções científicas de Kuhn como o maior passo dado nesse sentido, em história e epistemo­logia das ciências, na segunda metade do século XX. Fora da feno­menologia, é certo. Servir-me-á de pretexto a coincidência notá­vel (que não terá aqui nunca ne­nhum estatuto que não seja o da ca­suali­dade) de ele ter publi­cado a sua obra magna no mesmo ano em que a conferência Tempo e Ser de Heidegger acabou magnifi­ca­mente o seu percurso (que no tal texto sugiro ser de grande fe­cundida­de para repensar o mais do que nunca proble­mático campo das ciências actuais) e no mesmo ano em que Der­rida inaugurou pu­blicamente o seu, traduzin­do e introduzin­do A Ori­gem da Geometria, um texto de Husserl sobre a origem e trans­missão histórica da mais antiga das ciên­cias ocidentais. Já que dois destes textos tratam do problema da historici­dade das ciên­cias e o outro da historicidade radical do Ser, não será totalmente gratui­to tentar um exercício de comparação entre es­ses três tex­tos, con­temporâneos entre si e mutuamente se igno­rando, a bus­car lu­zes que as leitu­ras de uns deitem sobre as dos outros. Nos limites dos textos deste triplo quarentenário[2], esta maneira de procurar en­contrar a unidade possível poderá dizer-se assim: como é que a concepção kuhniana das ciências co­mo pa­radigmas poderá ser aceite na fe­nomenologia de hoje?

O conceito de paradigma em Th. Khun ou a física vista do lado da história
2. “[...] O termo paradigma recobre o elemento filosófico que está no centro deste [meu] livro”, escreve Kuhn no passo de citar Margaret Masterman[3] que “concluiu que este termo é utilizado pelo menos de 22 maneiras dife­rentes” (1983, p. 247). Tomo este par de afir­mações como sintoma duma certa insuficiência do pen­samento filo­sófico do autor, físico de formação que se tornou his­toriador das ciên­cias, essencialmente da física e da química. Ora, é esta exte­riori­dade de Thomas Kuhn à filosofia e à história que o torna inte­res­sante, como ele próprio várias vezes sublinha virem as re­volu­ções paradigmáticas de alguém que chega de novo ao para­digma, seja pela sua idade, seja pelo seu percurso. Já que é duma revolu­ção paradigmática na história científica das ciências que creio que se trata aqui. F. Gil, num texto de 1979, distingue dois tipos de disciplinas ocupando-se, na primeira me­tade do sec. XX, das ciências euro­peias: a história e a filosofia do conhecimento ou epistemologia, esta “tendo prati­ca­mente cessado qualquer in­ter­rogação sobre a possibilidade do co­nhecimento en­quanto tal”, voltada para “uma ciência aparente­mente em vias de acaba­men­to”, como que “uma reduplicação da própria actividade cien­tífica” (pp. 165-6), aquela “retraçando o desfile linear e racio­nal das teorias nas diversas disciplinas, a sua confirmação e a sua crítica pelos factos, e os reajustamentos e no­vas hipóteses que delas re­corriam” (p. 165). E assinala em seguida como os traba­lhos de G. Bachelard, de A. Koyré e outros, em geral filósofos de formação, vieram pôr em causa esta exterioridade entre história e filosofia das ciências. E é onde Kuhn se situa: como historiador que tem ne­cessidade de redefinir ciência para poder trabalhar na sua histó­ria ou, se se preferir, como historiador cujos resultados im­pe­lem para essa redefinição.
3. É este estatuto de historiador que, para começar, me pa­rece dever ser posto em realce em vista da compreensão do con­ceito de paradigma. Como é que um historiador pode saber o que é ‘ciência’ ou ‘teoria’, delimitar o seu objecto de estudo si­tuado no passado his­tórico, pro­curando que seja este, e não os conceitos da sua actua­lidade de escritor, a fornecer o critério dessa delimita­ção? Um pouco como Lévi-Strauss buscou desoci­dentalizar-se para compreender as estrutu­ras das sociedades tri­bais, também aqui Kuhn como que busca despir-se da sua compe­tência de físico do sec. XX para po­der compreender os físicos e químicos de outros séculos[4]. Para isso, procura visar antes de mais, ao rés da história, o que os cientistas fizeram: o que experi­mentaram e escreveram, as suas performan­ces concretas, o ma­terial histórico que primeira e, por assim dizer, imediatamente se encontra. Estas performan­ces con­sistem em resolver aquilo a que chamará, de forma quase provo­catória, puzzles. Mas sem ne­nhuma maçã de Newton, isto é, sem andarem perdidos ao acaso, bem pelo contrá­rio, tendo um guia que mereça confiança na de­terminação dos enigmas que vale a pena procurar resolver: como sucede nos puzzles, em que se sabe de antemão que há uma e só uma solu­ção, que depende ape­nas do seu engenho no manusear das peças. Em que é que consis­te esse guia? Nos puzzles já resol­vidos, nas per­formances dos cientistas anteriores, já que se bus­carão solu­ções de maneira pa­recida com as soluções que estes já encontra­ram em seu tempo. E com esta expressão ‘em seu tempo’, encontramos um outro aspec­to essen­cial da actividade científica que Kuhn pôs em relevo de forma muito original: é que procurar soluções à maneira de como as ge­rações anteriores as encontra­ram é sublinhar o aspecto de ‘traditio’, de tradição entre gerações; as novas gerações continuam o labor de resolver puzzles das an­teriores, é assim que elas são instituidas em cientistas, se dizer se pode, isto é, os estudantes são feitos cientistas pela aprendizagem (correlato estrito da tradi­ção) e aprendem essencialmente resol­vendo exer­cícios científicos de dificuldade crescente, aprendem resolvendo puzzles. A impor­tância crucial do conceito de para­digma é a de ele ligar e dar uni­dade a tão variados aspectos da acti­vidade científi­ca concreta que o historiador encontra como suas fontes.
4. O termo é introduzido no início do 1º capítulo, referindo os exemplos históricos da Física de Aristóteles, do Almageste de Ptolomeu, dos Principia e da Óptica de Newton, da Electricidade de Franklin, da Química de Lavoisier e da Geologia de Lyell como performances que “serviram durante longo tempo para definir implicita­mente os problemas e os métodos legítimos dum domínio de in­vestigação para gerações sucessivas de investigadores. Se pude­ram ter esse papel, foi por terem em comum duas características essenciais: o que conseguiram era suficientemente notável para atrair um grupo coerente de adeptos a outras formas de activi­dade científica concorrentes; por outro lado, abriam perspectivas suficientes para fornecer a estes investigadores toda a espécie de problemas para resolver. Às performances que têm em comum estas duas características chamarei doravante paradigmas [...] englobando leis, teorias, aplicações e dispositivos experimentais, fornecem modelos que dão nasci­mento a tradições particulares e coerentes de investigação cientí­fica” (pp. 30-31)[5]. O verbo ‘atrair’ (attract) utilizado permite perceber o pa­pel do paradigma como ‘força de atrac­ção’[6] dos investigadores (suscitando vocações científicas, di­gamos) de maneira tal que é ele o laço que institui as comunidades de cientis­tas, que os liga. Institui os estudantes em cientis­tas pela aprendiza­gem desse paradigma, dos seus puz­zles e teo­rias respectivas: é o tema forte, e que foi muito discuti­do, da alte­ração da ‘visão’ do mundo ou da natureza pelo para­digma. Embora curiosamente Kuhn não men­cione aquele que é o exemplo histórico decisivo: são os efeitos re­ce­bidos no liceu do paradig­ma copérnico-galilaico-newtoniano que nos fazem ‘ver’ a terra a andar em torno de si mesma e do sol apesar da visão con­trária dos nos­sos próprios olhos, e isto sem que a esmagadora maioria saiba se­quer como é que Newton de­monstrou cabalmente o heliocentris­mo.
5. No início do pós-fácio, depois de o ter distinguido da no­ção de comunidade científica, Kuhn retoma a definição de para­digma para partilhar o conceito em dois sentidos diferentes: di­gamos que um é global, o outro local. “Por um lado, re­presenta todo o conjunto de crenças, de valores reco­nhecidos e de técnicas que são comuns aos membros dum grupo dado. Por outro lado, denota um elemento isolado deste con­junto: as soluções concretas de puzzles que, empregadas como modelos ou exemplos, podem substituir as regras ex­plícitas que subsistem na ciência normal” (p. 238). Ora, modelo ou exemplo é o sentido da palavra para­deigma em grego e Kuhn diz que foi o que o levou a escolhê-la (p. 254) para significar como as ciências re­solvem puzzles a par­tir de exemplos já resolvidos, assim como diz que “o pa­radigma enquan­to exemplo comum [aos cientistas] é o elemento central do que lhe parece ser o aspecto mais inovador e menos bem compreendido deste livro” (p. 255). Ora, pa­rece-me que a fonte de incompreen­são dessa novidade reside na im­possibilida­de de opôr no puzzle ou paradigma teoria e experiência (e bem assim sujeito e objecto), como faz a tradi­ção saida de Descartes, incluindo a empiris­ta, co­locando este par em exterioridade mútua (como sucede nas pro­blemáticas si­métri­cas da verificação e da falsificação)[7]. O pa­ra­digma não é a teoria oposta aos puzzles como experiência; mas também não é um único puz­zle: ele começa por ser as soluções de tais e tais puzzles na per­formance inauguradora (por ex. Newton, Lavoisier, Einstein...), isto é, a ma­neira como os diversos puzzles-paradigmas são ligados entre si. Cada puzzle só é um paradigma por ser o mesmo para­digma do que os outros e por todos serem um mesmo paradigma. As célebres anomalias serão justamente os não-puz­zles, não reso­lú­veis como os outros nesse mesmo para­digma, que resistem à li­ga­ção que ele opera. O que implica que os dois senti­dos de para­dig­ma da citação inicial deste parágrafo se­jam, polis­semicamente, como que o mesmo sentido: é esta mesmi­dade que há que escla­recer. É por isso que me parece las­timá­vel que o pró­prio Kuhn, a propósito de cada um destes dois senti­dos, tenha sido le­vado em 1969 a pôr em causa o bem fundado do termo de 1962 que se tornara emblemático da sua revolução em história e filo­sofia das ciências, pro­pondo “matriz disciplinar” para o primei­ro (p. 248) e “exemplo comum” para o segundo (p. 254). A ques­tão, como se pode ver na maneira como ele procura enu­merar os “diversos elementos” dum paradigma ou matriz dis­cipli­nar: gene­ralizações simbólicas, partes metafísicas dos para­digmas, valores, exem­plos (pp. 248-54), ou como procura na psico­logia dos estí­mu­los iguais para todos e sen­sações individuais uma ex­pli­cação da rela­ção dos paradigmas aos cientistas (pp. 261-9), a ques­tão é que manifestamen­te Kuhn não dispõe, no contexto da filoso­fia analíti­ca ambiente, de conceitos filosóficos para pensar a sua ge­nial des­coberta.
6. Resumindo-a: o paradigma é, por um lado, o que liga os pa­radigmas de cada puzzle resolvido em laboratório, necessaria­men­te fragmentário (“o problema resolvido é a unidade de base”, p. 231, eu subl.), aos dos outros puzzles, formando para o histo­riador uma unidade científica, sincrónica e diacrónica, digamos em categorias saussurianas (“uma unidade fundamental para o que estuda o desenvolvimento científico”, p. 31, eu subl.)[8]; por outro lado, é o que atrai e liga os diferentes cientistas dum labo­ratório, assim como os vários grupos de labo­ratórios e departa­mentos universitários duma dada geração e de várias ge­rações. Como é que o historiador pode saber se se trata ou não do mesmo paradigma? O critério será obviamente o das discussões en­tre cien­tistas e o seu alcance em relação aos puzzles, em que o que decide são as rupturas históricas, as revo­luções científicas. O que implica uma das limitações desta aborda­gem do historiador: Kuhn coloca sistematicamente o paradigma ao nível da consciência que os cientistas têm dele, das suas convicções e crenças.
7. Telegraficamente e sem poder explicar aqui o que enten­do por ‘gesto filosófico’, evocarei o paralelismo do gesto de Kuhn com dois gestos da fenomenologia. Posta em paralelo com a in­tencionalidade husserliana, a maneira como Kuhn acede sem mais delongas aos puzzles como exercício científico permite pensar a ruptura que ele es­tabeleceu na história-epistemologia das ciên­cias como o “re­torno às próprias coisas” das ciências, ao seu pró­prio exercício la­borato­rial, e portanto a dessubstancialização da concepção de ciência[9]. E por outro lado, a ma­neira como ele se situa radi­calmente como historiador, aquém da problemática epistemológi­ca com origem cartesiana, é um gesto que até certo ponto pode ser posto em paralelo com um dos úl­timos textos de Hus­serl, A Ori­gem da Geometria, que procu­ra assentar “a pos­sibi­li­dade de qual­quer coisa como uma história da ciên­cia”(Derrida, 1962, p. 5).

Husserl: A história da geometria vista do lado da filosofia
8. Com efeito, diz Husserl no início: as “nossas considerações conduzirão aos mais profundos problemas de sentido, problemas da ciência e da história da ciên­cia em geral, e mesmo finalmente duma história universal em ge­ral, da tal maneira que os nossos problemas e as nossas explicita­ções sobre a geometria de Galileu têm uma significação exemplar” (1962, p. 174). É que as ciências e a fi­losofia são, em suas histórias greco-europeias, o que garantem a universalidade da história oci­dental, o que permite aquilo a que hoje em dia se chama globalização. Mais adiante, ele aproxima-se de Kuhn ao dizer a novida­de do seu ques­tionamento, pela conver­gência entre as duas dis­ciplinas relativas às ciências que F. Gil as­sinalou: “[...] é certo que a epistemologia não foi nunca considera­da como uma tarefa pro­priamente histórica” (p. 201). Meditemos no título do texto. 1) A que é que Husserl chama Geometria? Que a citação aduzida acima fale da geome­tria de Galileu, por assim di­zer o inventor do que chamamos físi­ca, mostra que o sentido hus­serliano de geometria não é o da dis­ciplina que conhecemos no li­ceu, mas o que ela teve ao longo da história ocidental: a matemá­tica só ganhou estatuto dis­ciplinar autónomo na segunda metade do sec. XIX, Voltaire por exemplo fala de Descartes e de Leibniz como geómetras, quem lê o Discurso sobre duas novas ciências de Gali­leu admira-se de ver as questões físicas serem demonstradas “more geometrico”, e até a física da relatividade de Einstein se ca­racteriza por a restrita ter geometrizado o tempo e a velocidade e a generalizada ter geome­trizado a força da gravidade e a acelera­ção. Ora, é a história toda desta disciplina, desde a sua invenção, atribuida a filósofos gregos anóni­mos anteriores a Euclides, até aos nossos tempos modernos, que é o escopo de Husserl: que ele assim aceite o mesmo nome de geo­metria, diz como o filósofo faz confiança - ao invés de Kuhn, o historiador - ao que se mantém como a mesma disciplina ou ciência em tão longa sequência, ape­sar das várias rupturas ‘paradigmáticas’, mormente a de Galileu [10]. 2) E porque é que a sua ori­gem lhe interessa? Por causa do que chama a “crise das ciências europeias”, isto é, cito Derrida, o “divórcio entre, por um lado, a actividade teórica e prática da ciência no próprio esplen­dor do seu progresso e dos seus sucessos e, por outro lado, o seu sentido para a vida e a pos­sibilidade de ser re­lacionada à totali­dade do nosso mundo” (1962, 10): alienação objectivis­ta, tecni­cização, ocultação, ir­respon­sabilidade do cientista, o nosso mundo tornado incom­preensível, são denún­cias que vêm já desde as primeiras páginas de Lógica formal e lógica transcendental (1929). Um pequeno manuscrito de 1934, A Terra não se move, é sugestivo: “a Terra em si mesma nem se move nem está em re­pouso, é antes de mais em relação a ela que mo­vimento e repouso ganham sentido” (Husserl, 1989, 12). Sentido em re­lação aos nossos olhos, poder-se-á dizer, pois que se trata dum filósofo que privilegia a percepção: divórcio pois entre o que ve­mos e o que nos ensinam, como eu lembrava acima. Para Husserl, esse divórcio só pode ser colmatado por uma reactivação do acto filosófico origi­nário da geometria.
9. A abordagem é portanto inversa da de Kuhn: onde o his­toriador privilegia as rupturas paradigmáticas, o fenomenólogo privilegia, mais do que a continuidade, a mesmidade da idealida­de geométrica em toda a sua tradição histórica. “O teorema de Pi­tágoras, toda a geometria só existem uma vez, [...] [esta] é idênti­camente a mesma na ‘língua original’ de Euclides e em todas as ‘traduções’ ” (1962, 179-180). Seja um exem­plo banal, inspirado de Ricœur: onde toda a gente via ‘redondos’ (nas rodas, por exemplo), o inventor da geometria ‘viu’ o círculo como idealidade, e assim também todos os geómetras que vie­ram a seguir. Quaisquer que tenham sido as inovações posteriores, elas tiveram sempre que integrar o sentido da tradição anterior. A geometria (e as mate­máticas em geral) teve sempre um privilégio para Husserl, “como ramo duma filosofia”, diz a Krisis (cit. Derrida, 1983, 18), porque, “ciência pura da essência” (id., 28), não necessita de redu­ção eidética, “nenhuma experiência enquanto experiência [...] tem nela o papel dum fun­damento” (ibidem). O que a intencionalidade fenomenológica exi­ge que se faça, em vez do recurso ao Deus veraz de Descartes ou à Razão infinita de Kant, aquilo que Husserl faz em A Ori­gem da Geome­tria, é a redução histórica da tradição em vista da reactiva­ção dos actos históricos da fundação originária, e é aonde ele en­contra a lin­guagem e a notação escrita como condições ‘sine qua non’ da tra­dição dessa objectida­de ideal.
10. Derrida: “Husserl insiste: enquanto não pode ser dita e escrita, a verdade não é plenamente objectiva, isto é ideal, inteli­gível para toda a gente e indefinidamente per­durável” (id., 87). As ciências exactas supõem também “a univocidade da expressão lin­guística e o garantirem-se produtos ex­primáveis de maneira uní­voca” (Husserl, 1962, 188), o que, acres­cente-se, é conseguido pela definição. A escrita, que torna “possíveis as comunicações sem alo­cução pes­soal, mediata ou imediata”, “comunicação em modo vir­tual” (id., 188), permite, diz Derrida, o que J. Hyppolite evo­cou como um “campo transcen­dental sem sujeito [...] em que o sujeito seria constituido a partir do campo transcendental” (Derrida, 1962, 84-5)[11]. “O campo da escrita tem por ori­ginalidade poder dis­pensar, no seu sentido, qualquer leitura ac­tual em geral” (id., 85), poder garantir a trans­missão do texto e da sua verdade além da morte do que o escre­veu, ‘além’ que pode ser de várias gerações. Mas também por isso mesmo, acrescenta Derrida, corre o perigo “dum de­sapa­recimento da ver­dade. [...] O que desa­parece é o que é des­truído mas também o que cessa, de forma intermitente ou defini­tiva, de aparecer de facto sem ser todavia atingido no seu ser ou no seu sentido de ser. Determinar o sentido deste ‘desaparecimento’ da verdade, tal é o mais difícil dos pro­blemas postos por A Ori­gem e por toda a filo­sofia husser­liana da história” (id., 91).
11. É neste ponto que a comparação com Kuhn pode ser tentada. O perigo constituido pela linguagem e pela escrita, que são por um lado inerentes à historicidade da geometria e por ou­tro reali­dades mundanas[12], não é um perigo qualquer, é o de não poder deixar de haver aquilo a que Husserl chama sedimentações: já em cada geómetra que, após ter dormido ou se ter ocupado de ou­tra coisa (id., 189), tem que reactivar as evidências, mas muito mais na transmissão por aprendizagem, que se faz “de maneira pas­si­va” devendo ser “convertido em retorno na actividade cor­res­pon­dente: é a facul­dade de reactivação, origina­riamente pró­pria a qualquer humano enquanto ser falante[13]; [...] a evidência da forma­ção geométrica vindo à enunciação sedimenta-se, por assim dizer. Mas o leitor pode [...] reactivar a evidência” (id., 186-7). É este pe­rigo, devido às oscilações da vida quotidiana de cada cientista (que não vive sempre no laboratório) e sobretudo à aprendizagem das proposi­ções geométricas (que sempre se efec­tua em sedimen­tações, isto é passivamente, e que podem nunca ser activadas), é este perigo que justifica em última análise a pró­pria ne­cessidade da fenome­nologia que chega sempre atrasada (Derrida), após a ca­tástrofe. Ora, a catástrofe aconteceu: é a situa­ção em que “a geo­metria seria uma tradi­ção tornada vazia de sentido, da qual nos seria absolutamente impossível [...] saber se ela tem ou teve al­guma vez um sentido autêntico e efectivamente recuperável. Mas é, hélas, a nossa si­tuação e a de todos os tempos modernos” (Husserl, 1962, 195).
12. Se culpa há, ela é de Galileu, invocado nas primeiras li­nhas do texto juntamente com “os herdeiros ulteriores dum saber geométrico mais antigo”, quer se tratasse “de puros geómetras ou fizessem aplica­ções práticas da geometria” (id., 173). Ora bem, creio que é nesta distinção que está o busillis, já que desde o princípio que a geo­metria foi utilizada em aplicações, o próprio nome grego desta ciência diz que ela se faz por ‘medidas da terra’, assim como o nome ‘matemática’ diz a aprendizagem. Aplicação e aprendizagem impli­cam linguagem e escrita, e ainda escrita matemática, feita de al­garismos, letras e sinais de opera­ções, pa­lavras sem fonemas, di­gamos, convencionadas univoca­mente, com que se escrevem as frases que chamamos equa­ções. Univocamente, sublinhemos a exigência husserliana: se há algo que é unívoco, na geometria como na física, são por excelên­cia justamente as suas equações, com variáveis e constantes, e as medidas que, com instrumentos adequados, se fazem das experi­mentações laboratoriais, com grande sucesso, reconhece Husserl, hélas: “[...] nós vemos no ensi­no elementar da geometria e nos seus manuais, o que nós aí aprendemos efectivamente é a sa­ber manejar, no interior duma metodologia rigorosa, conceitos e proposições prontos-a-utilizar” (id., 195), isto é a ciência normal de Kuhn, a resolução de ‘puzzles’, a física sedimentada. Derrida não tem dificuldade em assinalar em vários textos de Husserl como este considera que são “a exac­tidão e deductividade da geome­tria”, ciência da espacialidade da natureza, que “escondem a ver­dadeira natureza” (Derrida, 1962, 13). Isto é, é a estrutu­ra exacta da escrita matemática e da mensurabilidade laboratorial que tanto tornam possí­vel a sedimentação, a habitua­ção da ciência normal, como desneces­sária a reactivação das evi­dências, a não ser em épocas de crise. Para Kuhn, reside aqui a própria vantagem e originalidade das ciências físicas.
13. Isto quer dizer que, apesar da inversão quer das abor­dagens quer das valo­rizações, Husserl e Kuhn acabam por se encontrarem no diagnóstico da historici­dade oscilante das ciências (entre sedimentações e reactivações num, nor­malizações e revoluções no outro). E torna-se possível uma primeira caracterização do conceito de pa­radigma: o seu núcleo duro é o que os físicos fazem com matemá­tica e instrumentos de medida conectados às experiências labora­toriais; mas quanto à respectiva leitura interpretativa há uma oscilação que o paradig­ma conterá: entre a interpretação ingénua, digamos, do que é o tempo, o espa­ço, a massa, a temperatura, etc, que se medem no dia a dia labo­ratorial (se não houvesse nenhu­ma interpretação das equações, estas não seriam nada, não have­ria experiências), e os debates de maior qualida­de epistemológica de alguns físicos, oscilação, em termos de Husserl, entre sedimen­tações e reduções reactivando evidências. Nos tempos de crise, diz Kuhn. Não, responde Husserl, a crise resi­de no divórcio entre os laboratórios e a cena da reali­dade das nossas vidas, onde as ciên­cias têm as suas aplicações e de que elas, enquanto ramos da filo­sofia, deveriam contri­buir para nos dar um melhor conhecimento. Pode-se dizer que Heideg­ger pensou algo de parecido em 1927, quando trocou Hus­serl e o primado das suas idealidades científi­cas pelo mundo vivi­do dos humanos. Vamos apanhá-lo à chegada, 35 anos mais tarde, em 1962.

Ereignis e paradigma
14. O texto da conferência Tempo e Ser é extremamente abstracto, quem o conhe­ce pensará que não tenha nada a ver com as questões de Kuhn. Após uma introdução, com referência tam­bém à globalização[14], ele consta de uma só questão (histórica, que no II Heidegger tudo é histórico) em três partes: a ver com o ser (Heidegger, 1976, 20-25), com o tempo (id., 25-36) e com o que os dá - um-com-o-outro -, o Ereig­nis (id., 36-48). Há (es geben, é dado) o ser, há o tempo, nenhum deles ‘é’, nenhum existe, não são entes ou fenómenos que se pos­sam encontrar. E o Ereignis será o ‘Es’, o Ele impessoal que os dá.
15. “Um dar que só dá a sua doação, mas que, dando-se as­sim, se retém e se subtrai, chamamos-lhe destinar. [...] o ser que há [é dado] é o destinado” (id., 23). E continua: “história do ser quer dizer destinação do ser” (id., 24), com épocas (épochê, em grego), num gesto de ter em conta as origens gregas quase paralelo ao de Husserl, que visa a Filosofia e com ela toda a civilização moderna, portanto incluindo as ciências, com “recobrimentos” a “destruir” (o motivo célebre do esquecimento do ser) que não estão longe das sedi­mentações husserlianas. “Ser quer dizer: vinda do ser, desdo­bran­do-se em presença, deixando-se desdobrar em presença, ser-pre­sente: parousia.” (id., 26). São os entes que são presentes, o ser é simulta­neamente a vinda dos entes à presença (-ousia) e o dei­xar que essa vinda se faça (par-), simultaneamente a doação e o seu retiro.
16. A parte respeitante ao tempo, inédita, creio, e não trata­da no seminário que em seis sessões comentou a conferência, é de leitura delicada. Heidegger retoma as três dimen­sões do tempo, o por-vir (ausente, ainda não presente), o ter-sido (ausente, já não presente) e o presente, a unidade entre os três sendo dita das Reichen (id., 30), arriscando-me a traduzir por recção, no duplo sentido da direcção onde se tende (o sentido) e da regência da re­gra[15]. A recíproca recção entre as três dimensões: o Aberto, permite o jogo (Tempo-Espaço)[16]. Ora, a recção do ter-sido é impedida, a do por-vir reservada (id., 35), o que me arrisco a interpretar com exem­plos: na ‘simples’ pedra, quase não haveria jogo, nem impe­dimen­to nem reserva, o ter-sido tenderia ‘totalmente’ para o por-vir; nos ‘complexos’ vivos e nos humanos implicar-se-ia uma comple­xida­de de temporalidades, retenções diversificadas e re­servas de possibilidades de estratégias, por exemplo, no espaço aberto de liberdade, regras que jogam em situações aleatórias (basta pensar num automóvel). “A aproximação do que sobrevém, en­quanto ainda não presente, traz e produz simultaneamente o que já não está presente, o ter-sido - e inversamente o que já não está pre­sente, o ter-sido, procura o por-vir” (id., 31-2). No pri­meiro caso, como uma recordação permite entender o que vem inespe­rada­mente; no segundo, como se projecta algo para o fu­tu­ro. No co­mentário posterior, Heidegger sublinhará a novidade deste texto, em que o ser é pela primeira vez determina­do como ‘presença’, é no tempo que ele repousa. “O tempo verdadeiro, conclui-se, é a proximidade do desdobra­mento de ser [a vinda à presença, a par-ousia] a partir do presen­te, do ter-sido e do por-vir [...]” (id., 36). ] Isto é, a radical tem­pora­lidade ou historicidade do ser: ele é vinda à presença.
17. O Ereignis (acontecimento em alemão: ‘ser’ e ‘tempo’ in­dissociavelmente) é o que dá tempo-e-ser, os faz vir à presença no que lhes é próprio, os dá; mas sendo ‘onde’ tempo e ser têm lugar, o Ereignis não é, nem ente (substancial) nem temporal, não é um ‘acontecimento’, não é sus­ceptível de presença, é portanto necessariamente retirado: é a doação que é retirada para que os entes sejam eles próprios, na sua própria temporali­dade. O termo que introduz este motivo da propriedade é Eignen (a partir de ‘eigen’, próprio), “fazer vir a si mesmo em sua pro­priedade” (id., 42). “[...] destinação e recção repousam no mo­vi­mento de fazer vir a si na sua propriedade”, por isso “é neces­sário que o retiro per­tença ao próprio do apropriamento” (id., 44). A doação dá ser ao ente temporal, o seu retiro deixa-o ser ele próprio: assim ele é desti­nado em sua autonomia.
18. O que é que me dá di­reito a interpretar o Ereignis em direcção das ciências? Antes de mais, o paralelismo acima releva­do com a ‘démarche’ de Husserl, a indi­cação das épocas da história do Ser, onde as ciências têm lugar, a época da técnica que delas resultou, o que ele chamou Gestell, cor­responde ao Ser da nossa civilização, prefigurando o Ereignis como uma nova época (cf. id., 301-6). É por isso legíti­mo que o conhecimento humano científico das coisas faça parte dele. É assim que eu leio na direcção das ciên­cias - talvez não exclusivamente - um passo do comentário sobre a conferência em que se explicita que nesta “nada é dito da presentidade característica dos diferen­tes domí­nios do ente; isso permanece uma tarefa do pensamento: deter­minar o não-retiro dos diferentes domínios das coisas”[17] (id., 83).
19. Vamos então à interpretação que proponho, no meu modo de coxear, um pé dentro da filosofia e um outro fora, neste caso nas ciên­cias. Eu diria, com o risco de chocar os heideg­geria­nos, que Zeit und Sein ‘conta’ o nascimento e o cresci­mento duma leoa: como ela é dada e vem à presença - ente tem­poral - no parto doutra leoa sua mãe; como ela depois, na tempo­ralidade da sua vida, se alimentará. O que eu pretenderia ilustrar é o im­pedimen­to do ter-sido e a reserva da possibilidade do por-vir. Uma leoa tem várias temporalidades: a da circula­ção do sangue e a da res­piração, quase sincrónicas, que se jogam enquanto dorme ou caça, come ou se relaxa com o leão, enquanto que estas ou­tras temporalida­des - que se repetem em ciclos, de ter-sido em por-vir - é que não podem ser simultâneas, entre elas há oscila­ção, umas são re­tidas, impe­didas, para que outras sejam: por exemplo, retidas as hormonas da fome enquanto se caça, retido o sono que ameaça (hormonas específi­cas) se há que fugir dum predador (como nós numa direc­ta por tarefa urgente ou numa insónia por preocupa­ções graves). Ou seja, o passado não pode jogar ‘todo em simultâ­neo’, à maneira quase das pedras, e isso é correlativo com a re­serva de possibili­dades do ‘por-vir’, por exemplo das estratégias de espera que passe o grande rebanho de gazelas para assaltar uma das últimas, deixando ou­tras possibilidades para outra al­tu­ra. O parto de leõ­zinhos é uma dessas situações, em que uma leoa retém algumas das suas tem­poralidades, supondo a da cópula me­ses antes, para que aqueles nasçam, sejam dados, venham à pre­sença, na sua ‘propriedade’ ou singularidade de serem tal e tal leão/leoa. Quanto à ali­mentação: um tipo equivalente de oscila­ções, com re­tenções e re­servas, para que da substância das presas se faça a ‘própria’ substância do que come: eis o que se poderia chamar, como carac­terística essencial dos animais, a alimentacio­nalidade: a substância de si próprio vir de outrem, pelo nascimen­to uma vez, pela alimentação dia­riamente em seguida até morrer. Ora, o que é que dá estes ‘acontecimentos’ de propriação? O que Heidegger chamou Ereignis permite também pensar aquilo que os biólogos chamam ‘espécie biológica’ leonina: sem se confundir com ne­nhum leão ou leoa e não se dando sem eles, não sendo nada, nem ente nem temporal, é o que dá ente e tempo a cada um destes indivíduos, cuja doação não pode deixar de ser retida.
20. É possível que nem Husserl nem Heidegger o reconhe­cessem - quem sou eu para falar assim? -, mas esta diferença ereignisiana entre a espécie biológica e os ‘acontecimentos’ (nasci­mento e alimentação) dos indivíduos temporais que ela dá é her­deira directa, por um lado, da diferen­ça fenomenológica que re­sulta da redução husserliana e, por ou­tro, da diferença ontológi­ca. De maneira que para chegarmos en­fim à compreensão do mo­tivo kuhniano de paradigma, haverá que tentar entender como é que essa diferença se entende das ciências exactas, da maneira de trabalhar dos cientistas. Quando houve a ‘invenção’ da física (herdada da filosofia, geometria e mecâ­ni­ca), com Galileu e sobre­tudo com Newton, digamos de forma simplificada, a performance deste - já complexa, articulando tem­poralidades diferentes, expe­rimentações e discursos interpretati­vo destas, conjunto de vários puzzles - deu-se como unidade-pa­radigma que atraiu e reuniu cientistas em torno da tentativa de resolução de novos puzzles, cada um destes, neles mesmos unida­des-base, estendendo o pa­radigma na abertura de novas direc­ções. A observação do histo­riador só encontra estas unidades-base, já que o paradigma ereignisiano não é senão a doação delas essencialmente dissimu­lada, retirada: doação quer das técnicas de medida, de experimen­tação e de escrita, quer dos textos das an­teriores performances (anteriores unida­des-base), quer dos cien­tistas enquanto saber-ler-e-fazer física, isto é, resolver puzzles. Assim como a espécie biológica, não ‘existindo’ como ente substancial e temporal, é o que é o mesmo em todos os leões e leoas, também o paradigma, não ‘existindo’ como ente substancial e temporal, é o mesmo em todos os puzzles, a mesma “unidade fundamental” em qualquer das “unidades bases”. Retomando o exemplo da leoa, o nascimento equi­valeria à formação do cientista, apren­dendo através de puz­zles esco­lares e depois laboratoriais, aprendizagem essa que é to­talmente recebi­da de outrem (físicos-mestres) e o torna capaz de ‘acontecimen­tos’ que o paradigma dá, com a doação retida[18]. Trata-se no­va­mente de alimentacionalidade, pela qual cada cien­tista, antes de qualquer iniciativa científica, é totalmente feito - ‘nele próprio’, na singula­ridade do seu talento - pelos outros cientistas que leu e com quem apren­deu, o que continuará ao longo da sua carreira de in­vestigador, ‘alimentando-se’ do que vai experimentando, lendo e discu­tindo. A ciência normal tem assim uma tendência enclausurante que diminui drasticamente o leque das oscilações interpretativas, reduzindo-as a sedimentações evidentes e efica­zes. Como se a temporali­dade se tornasse uma só, com a coerên­cia sólida duma pe­dra: o que Husserl abominava.
21. O que é que pode quebrar esta solidez e pre­cipitar uma crise? Provavelmente três tipos de factores, quiçá se intercruzan­do: melhorias técnicas na experimentação, mormente com melho­ria de escalas (telescópios, microscópios...), descoberta de novas equações (Einstein), incidência de paradigmas exteriores, científi­cos (química molecular em biologia) ou até filosóficos (irre­versi­bilidade do tempo em Prigogine). Que alguma destas ‘estra­nhezas’ se venha inscrutar num novo paradigma e que os cientis­tas já formados no anterior não sejam capazes do novo nascimen­to (ou do novo regime alimentar) que aí se implica, é provavel­mente o que explica a tese da inco­mensurabilidade dos paradig­mas, que justamente se atém à consciência dos cientistas, como atestam os debates e a grande oscilação da crise inter-paradig­mática. Limite quiçá do historiador, no escrúpulo da sua obser­vação, que poderá multiplicar as nuances de rupturas para­dig­máticas e que terá tal­vez maior dificuldade em compreender unidades pa­radigmá­ticas maiores: na sincro­nia, à maneira dos epistemas de M. Foucault, ou na diacronia, à maneira das épocas de Heideg­ger ou da mesmi­dade da geo­metria greco-euro­peia de Husserl, à maneira pois de filósofos in­terrogando a histó­ria, mais atentos porventura às heranças que es­capem à consciência dos que resol­vem puzzles.

O divórcio entre o laboratório e o mundo da vida
22. A crise das ciências europeias é um divórcio instaurado sobretudo por Galileu, o texto com esse nome detalha-o longa­mente: entre, por um lado, a matematização da natureza executa­da com fórmulas, medidas e experimentações, colocando explicita­mente com grande clarividência a técnica como inerente à física de Galileu (Husserl descreve, sem o explicitar, o laboratório como estrutura essencial da actividade científica: o que a filosofia não tem, apenas um ‘escritório’) e, por outro, o nosso mundo da vida quotidiana, o mundo das intuições pré-científicas. Eu creio que é um diagnóstico forte[19], de que o Gestell, segundo Heidegger, a domi­nação do nosso mundo pelos dispositivos da técnica, é uma se­quência. Uma das vantagens de isolar a necessidade do labora­tó­rio nas ciências (os paradigmas só valem adentro dos laborató­rios, o que Kuhn não entendeu) seria a de obrigar a pôr a questão dessa neces­sidade e da denegação que ele representa ao discurso determi­nista dos cientistas: é justamente por a cena da realidade, do nosso mundo quotidiano, não ser determinada estri­tamente mas conter o imenso aleatório dos ‘acontecimentos’ que o Ereignis hei­deggeriano doa escondendo-se - o que aí se diz, com a radical temporalidade do ser, é que não há senão acontecimentos, com regras e aleatório, como nos jogos mas também nos automó­veis da técnica -, é por isso mesmo que é necessário o laboratório como lugar de criação de condições estritas de determinação. A denega­ção dos cientistas é eles estenderem ao mundo de todos os dias essa determinação ou causalidade que descobriram, sem te­rem em conta a necessidade dos muros do laboratório, da separa­ção radical assim criada. Uma parte do divórcio de que Husserl se queixa resulta portanto deste mal-entendido filosófico de fundo: “[...] a substituição, diz ele, - que se cumpre em Galileu - pela qual o mundo matemático das idealidades, que é uma substrução, é tomado pelo mundo real, o que nos é dado verdadeiramen­te como perceptível, o mundo da experiência real ou possível, em resumo, o nosso mundo-de-vida quotidiano” (Husserl, 1976, 57). O que permanece criticável em contrapartida em Husserl é pensar que esta ‘crise das ciências’ (e da filosofia) possa e deva ser ‘resolvida’ pela filo­sofia sozinha antes das ciências[20], no antes das ori­gens da geome­tria e da física de Galileu. Creio, pelo contrário, que só tendo em conta algu­mas das principais descober­tas científicas ao longo do mesmo sé­culo XX em que a fe­nomeno­logia se desdobrou, é que uma fenomeno­logia-com-ciências poderá trabalhar filosofica­mente na difícil e urgentíssima so­lução dessa crise. Todavia isso só me parece pos­sível a partir dos tra­balhos posteriores de Derri­da, que o que aqui tentei dizer pressu­punha. Mas em 1962 ele não era ainda Derrida.


Derrida, J., 1962, “Introduction” à Husserl, E., 1962
Gil, F., 1979, “História das ciências e epistemologia: apresentação do debate Popper-Kuhn”, in M. M. Carrilho (ed.), História e prática das ciências, A Regra do Jogo
Heidegger, M., 1976, “Temps et Être”, trad. F. Fédier, in Questions IV, Gallimard, pp. 11-51, “Protocole d’un Séminaire sur la Conférence ‘Temps et Être’”, trad. J. Lau­xerois et Cl. Roëls, ibidem, pp. 52-97.
Husserl, E., 1962, L’Origine de la Géométrie, tr. et introd. de J. Der­rida, P. U. F., 1962; texto de Husserl nas pp. 173-215
Husserl, E., 1976, La Crise des Sciences Européennes et la Phéno­ménologie Transcendantale,trad. G. Granel, Gallimard,
Husserl, E., 1989, La Terre ne se meut pas, Minuit
Kuhn, Th., 1983, La Structure des Révolutions Scientifiques, tr. L. Meyer sur l’ed. améri­caine de 1970, Champs-Flammarion
[1] http://www.fenomenologia.ubi.pt
[2] Contando embora com o pós-fácio de Kuhn de 1969 (pp. 237-284, ed. cit.).
[3] “The nature of a paradigm”, in I: Lakatos e A. Musgrave (ed.), Criticism and the grouth of knowledge, Cambridge, 1970.
[4] Ele dá o exemplo de como, entre os que se iniciam à história da física, os estudantes formados em física são os que têm mais dificuldades à partida, porque “conhecem a resposta justa” posterior (1983, p. 228, n.3).
[5] Também no prefácio, os paradigmas são performances históricas: “as des­cobertas científicas universalmente reconhecidas que, durante um tempo, fornecem a uma comunidade de investigadores problemas-tipo e soluções” (idem, p. 11).
[6] O que me parece susceptível de fazer este conceito jogar um papel alar­gado no conceito sociológico de instituição, enquanto ‘unidade social’ das sociedades industriais, diferente das ‘casas’ tradicionais e das ‘famílias’ modernas, onde se entra por nascimen­to ou casamento.
[7] Com uma posição ecuménica entre os dois autores, F. Gil aparenta, no texto citado, não ter dado por esta diferença ‘incomensurável’ entre Kuhn e Popper.
[8] Que estas duas “unidades” sublinhadas sejam uma mesma unidade, é a minha tese aqui.
[9] F. Gil (p. 167) considera, nos seus prolegómenos à apresentação do debate Popper / Kuhn, que já um grupo de historiadores das ciências (E. Burtt em Inglaterra, A. Koyré em França, A. Maier na Alemanha) deram um passo no sentido de substituir a ontologia substancial e qualitativa por uma outra relacional e quantitativa. Terão portanto iniciado a dessubstancialização da concepção de ciência que opera este retorno aos paradigmas de Kuhn, como igualmente o fez a intencionalidade husserliana.
[10] Tratada longamente na II parte da Krisis.
[11] Ilus­trá-lo-ia o caso de Blaise Pascal, que não foi à escola porque o pai se encarregou exclusi­vamen­te da edu­cação dele e que, aos 12 anos e às escondidas do pai, se torna ‘geómetra’ lendo os Elementos de Eucli­des.
[12] “[...] todas as heranças culturais [...] se tornam, graças a uma incarnação sensível, por exemplo pela linguagem e pela escrita, perceptíveis [...] e operativamente manejáveis” (Husserl, 1976, 31).
[13] “A redução [eidética] é implicitamente operada, sim­plesmente exercida e ainda não explicitada, desde que se conside­ra a linguagem por ela mesma” (A. de Muralt, cit. p. 58).
[14] “A tentativa de pensar o ser sem que seja uma fundação do ser a partir do ente [...] torna-se uma necessidade, porque sem isso, parece-me, não há mais nenhuma possibilidade de trazer propriamente ao olhar o ser do que é hoje em torno de todo o globo terrestre” (Heidegger, 1976, 13).
[15] No dicionário: “passar, estender [a mão]; ir, estender-se”; parece corresponder à raiz latina reg (rec, rig, rg), ligada à noção de ‘conduzir a direito’: direcção e reger (do rei, com o sentido de guiar direito, como também régua e regra) permite recção, propondo o tradutor fran­cês uma palavra caída em desu­so, ‘porrection’, que dizia o ritual litúrgico de estender os braços em frente em sinal de entrega.
[16] “den Zeit-Raum”; em Le Principe de Raison, “den Zeit-Spiel-Raum” (Gallimard, 1962, p. 150).
[17] Julgo que uma boa parte do trabalho filosófico de Derrida depois de 1962 pode ser interpretada como uma resposta a esta injunção, embora não à maneira como Heidegger a previria.
[18] No que diz respeito à aprendizagem da língua, gosto de citar a palavra de Ma­nuel Gusmão dizendo que o poeta não dispõe, para fa­zer o seu poema, senão das pala­vras dos outros.
[19] É ele, penso, o responsável primeiro do terrível fenómeno das poluições.
[20] “Só uma questão-em-retorno radical sobre a subjectividade, entendo eu sobre a subjectividade que torna possível de maneira última qualquer validade-do-mundo com o seu conteúdo, e isto em todas as modalidades pré-científicas e científicas, questão que alcança também o quê e o como das performances racionais, pode tornar compreensível a verdade objectiva e atingir o último sentido de ser do mundo” (id., 80). “Uma tal maneira de esclarecer a história por uma questão-em-retorno sobre a fundação original dos fins que ligam a cadeia das gerações vindouras na medida em que eles continuam a vida deles nelas sob formas sedimentadas, mas que ao mesmo tempo podem ser sempre reacordados e restituidos de novo à vida pela crítica [...]” (id.,82-3).

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