Identidade ?
1. Será que tem sentido perguntar o que é que
caracteriza um humano como sendo o mesmo, ele mesmo, o que é que nele
‘responde’ ao nome próprio? Em ‘caracterizar’ há ‘carácter’, inscrição durável,
que se presta ao ‘idem’ (mesmo, em latim) de identidade. Sem dúvida que o
programa genético, da espécie mas também da tribo, da família e com marcas
individuais, que se repete em todas as células com excepção das que se prestam
à reprodução de outro indivíduo (curioso!), esse programa de várias mesmidades
biológicas e sociais e que vai até à individualidade, faz parte da resposta. E
mais? O sangue (há vários tipos e não coincide sempre com o da mãe) que vai a
cada célula e por aí faz laço, será parte da identidade? Feito de células que
se reproduzem e alteram pois, que são aliás substituíveis numa transfusão, não
parece pertencer. Nem o jogo hormonal, que parece fazer parte da anatomia e
fisiologia da espécie, não ter individualidade que não seja a dum jogo que
responde a variações aleatórias, se presta. Isto é, parece não haver nada mais
de biológico estritamente que se preste, a não ser que se tenha em conta que as
células do sistema neuronal, os neurónios, são permanentes, não se reproduzem
(pelo menos significativamente, para o caso que nos interessa, digo isto para
ter em conta uma notícia qualquer de jornal há algum tempo).
2. Ora, ter em conta os neurónios é ter em conta o
social dos usos que neles se inscreve, o que se aprende e cria sinapses (E.
Randel), os grafos da memória (Changeux). Ora, estes sim, perduram a vida toda
como língua e a cultura tribal que com ela vem, os usos elementares que se
repetem no quotidiano dos anos todos da vida, as especializações de ofícios que
se vão tendo e aperfeiçoando, e por aí fora. É certo que há sempre coisas que
se perdem por falta de prática, mas o que se vai ganhando como ser no mundo tribal (chamo tribo ao ‘nosso’ mundo, da famílias em que se nasce e
cresce e da(s) que depois se cria com outra pessoa, dos colegas de escola e de
trabalho, dos amigos e conhecidos, de vista e encontros mas também dos médias,
sei lá) estrutura-se de uma maneira que cria um estilo de fazer e dizer, que sabemos nosso e os nossos
reconhecem e têm em conta nas suas
relações connosco. Ora, a memória é algo de irrepresentável, nunca ninguém sabe
da sua como um todo, ela vem como ‘subvir’ (fr. souvenir) por associação com o
que sucede e suscita as lembranças necessárias para agir e reagir; por outro
lado, ela perde-se no sem fundo da infância das primeiras aprendizagens e nos
deslocamentos que se fizeram e fazem, lugar do que Freud chamou ‘recalcamentos’
(a conjugar no plural para cada um, justamente por causa dos deslocamentos
tribais). Não tem princípio nem fim, como as nossas conversas aleatórias,
leituras e audições, todo este mundo de linguagem em que estamos sempre a
entrar e a sair, com fios emaranhados que se perdem e reatam sem darmos por
isso. Identidade? Talvez melhor estabilidade relativa, que vai oscilando ao longo do tempo, ganhando-se
memórias novas e perdendo antigas, crescendo mas também variando. Certamente
que isto, esta memória não controlada e esquecida a maior parte do tempo,
irrepresentável (como também não podemos representar um livro que acabamos de
ler, ou de escrever, não podemos tê-lo ‘presente’ na memória como um todo), faz
parte da nossa ‘identidade’, ou talvez que sejamos nós que fazemos parte dela.
Mas será porventura o estilo
dessa memória, por vezes dito carácter em termos morais, que melhor ‘pendant’
faça com o ADN para nos identificar, a cada um de nós.