segunda-feira, 19 de maio de 2014

Piketty : o livro que faltava à Esquerda


1. Há vários anos já, como atestam alguns textos deste blogue listados no final deste, que me tenho atrevido a escrever publicamente sobre economia sem ser economista (nenhum número apareceu nesses textos) e advogado a necessidade duma reformulação da ciência económica, de ordem terapêutica ou pragmática, pois falta pensamento teórico de ordem económica à Esquerda, capaz de mobilizar estratégias e energias. Tratar-se-á de lhe dar orientações estratégicas adequadas aos tempos presentes de guerra de capitais financeiros desenfreada global e electronicamente desde que Reagan e Thatcher puseram Friedmann a mandar nas economias. O Capital no século XXI de Thomas Piketty, segundo a resenha de João Constâncio no Público de 16 de Maio, parece ser o livro tão esperado, que eu resumiria desta forma: sendo necessário o capitalismo ao desenvolvimento humano, ele só será viável democraticamente sob a forma da social democracia, com redistribuição por via de impostos dos capitais (acumulados), de maneira a garantir confortavelmente o Estado social e a impedir que a guerra dos capitais destrua as economias, a aliança entre empresas e famílias que é a sociedade moderna. O Estado tem o papel essencial de regulador, de maneira articulada com a escola e os médias democráticos para que uma opinião pública esclarecida possa apoiar e ser apoiada por esta reformulação da ciência económica.
2. Sem dúvida que são imensas as dificuldades para impor esta nova visão em sociedades interligadas cada vez mais por mercados sem cabeça central nacional, numa União Europeia ameaçada de nacionalismos egoístas, bem como numa globalização em que países emergentes de enormes populações procuram afirmar-se como potências. Mas o que me parece certo é que sem uma teoria económica contrariando as desigualdades criadas pelo “pensamento único” não há réstea de esperança possível. A convicção politica que a nova economia traga aos partidos de Esquerda será decisiva, não apenas nos seus círculos tradicionais mas também aonde um partido de centro direita se denomina de ‘social democrata’ e junto de quem se reconheça na doutrina social dos predecessores do novo Papa que denuncia corajosamente “a economia que  mata”, doutrina que pode ser revisitada como exigindo a redistribuição fiscal que tornará possíveis Estados sociais sustentados. Não apenas a Esquerda mas toda a gente “de boa vontade”, como dizia uma célebre encíclia de 1962, Pacem in Terris, todos os que se têm indignado com a visão da destruição das economias que tem feito a “Austeridade” dos pobres e remediados para devolver aos ricos, como se fossem estes que, sozinhos, tivessem enriquecido, como se, em época de robots e computadores, se preparassem para serem os seus únicos beneficiários. É uma excelente notícia quando a Troika se vai embora.
3. Voltarei a este texto para retomar de forma critica a comparação que J. Constâncio faz com Darwin, que falha quer com este quer com Peketty, mas não quis esperar por tão boa notícia.



http://filosofiamaisciencias2.blogspot.pt/2011_10_01_archive.html


segunda-feira, 12 de maio de 2014

Da Economia como ciência pragmática




1. Um velho texto de António J. Esteves, sociólogo da Universidade do Porto, que evoca as engenharias como “ciências de projecto” de Herbert Simon para incluir nelas a Economia, trouxe-me algo que procurava há vários anos. Segundo ele, “a determinação de ‘como as coisas podem ser’ e de ‘como devem ser’ para a realização de determinados objectivos delimita um conjunto de saberes que não se resumem às disciplinas científicas nem à sua ‘aplicação’”, diz Esteves, o projecto da Economia devendo ser “uma nova politica de bem estar social para um Estado” (H. Simon)[1]. Ciência de acção e portanto de mudança, pragmática assim, a sua verdade consistirá na transformação que ela consiga operar nas estruturas sociais sobre que incide, implicando a definição de objectivos.
2. Era esta descrição que me escapava, modesto fenomenólogo praticante de filosofia com ciências. Sendo uma ciência dos mercados, a economia é apenas uma ciência social entre outras que a ausência duma ciência global das sociedades capitalistas levou a ocupar esse lugar, indevidamente por certo mas a apelo do vazio. O seu carácter sectorial implica que os ‘objectivos’ a reconhecer-lhe não dependem exclusivamente dela mas de algo que a ultrapassa: a dupla grande crise que atravessamos, económica - financeira e climática, orienta o nosso olhar para o mais largo objectivo da Economia, a perpetuação da espécie humana, posta em questão por duas questões dramáticas, o enorme desemprego jovem (que futuro daqui a 30 anos?) e as consequências da progressiva alteração dos climas (que futuro daqui a 100 anos?). Estas duas questões impõem à Economia a consideração da nossa condição biológica como axioma imperativo, se dizer se pode: qualquer animal tem como problemas principais comer e proteger-se de ser comido e a sociedade começa por ser uma forma cooperativa mais económica de enfrentar esses problemas. No que dependa da Economia, há que garantir a alimentação (o “bem estar social” de que falava Simon, a que chamamos na Europa o Estado social) e a protecção de todos os cidadãos, a nossa liberdade (o Estado de direito). O imperativo estende-se à salvaguarda do planeta que nos dá a vida: a este nível, de que não me ocuparei, o papel da Economia será nomeadamente o de remover obstáculos derivados da arbitrariedade da especulação financeira.
3. Ora, a Biologia oferece também uma espécie de modelo para delinear os objectivos da Economia, à maneira da Medicina. Sabemos hoje que há uma inter-relação entre a determinação genética que diz respeito à reprodução das moléculas de cada célula do organismo e a circulação do sangue (que as alimenta a todas elas), a qual, instável, deve ter uma estabilidade homeostática cujos limiares, máximo e mínimo, são o objectivo médico, a nossa saúde: tensão arterial, seus teores variados (análises de sangue), mormente os de nutrientes e oxigénio. Para o que nos interessa aqui, este imperativo da saúde cifra-se em não se comer nem de mais nem de menos. O que nos tem chocado a todos nesta crise é ver-se a maior parte da população ser despojada mais ou menos brutalmente do que tem para viver, muitos do emprego, outros de parte do salário ou da pensão, enquanto que os muito ricos enriquecem e põem os capitais a darem dividendos lá fora.
4. O escândalo é que, aos olhos da Economia, isto parece ser apenas algo de lamentável, nem sequer ‘imoral’: o argumento com que nos enchem os ouvidos é o da ‘credibilidade’ junto dos grandes capitais especulativos, ditos ‘mercados’ como se fossem honestas mercearias. Ou seja, este baixar até à miséria de milhões de pessoas e a grande riqueza de poucos milhares não é nada que pareça dizer respeito à Economia enquanto ciência, algo que é deixado como preocupação aos políticos. Nela não haver respeito pelos limiares mínimos e máximos da Economia, faltar no seu arsenal axiomático o que define os seus objectivos enquanto ciência da ‘habitação’ (oikos, casa). No entanto, a crise ilustra como proceder na homeostasia social, na estabilidade instável (Prigogine) das conjunturas: garantir os mínimos (o Estado social) – que deverão ir até ao pleno emprego, diminuindo as horas de trabalho de todos para que todos o tenham – e corresponder a essas despesas com impostos (é a social-democracia) sobre a propriedade ‘privada’ (do social), a qual só vale por essa ‘privação’ que lhe dá contexto (ou seja, os impostos são devolução ao social duma parte do recebido dele). O nosso governo troikista, pelo contrário, forçou aquém dos mínimos sociais sem qualquer pudor, para garantir os máximos aos credores que vivem de especulação – jogam com títulos para lá, títulos para cá –, sem que a Economia enquanto ciência pareça ter algo a dizer a esse respeito, como se fosse apenas uma questão moral, ou o fatalismo de “as coisas serem como são”.
5. Não sou de economia nem de qualquer outra área social e percebo a dificuldade imensa de uma ciência económica global e que pretenda domesticar os capitais internacionais. Mas as crises são as sociedades a tornarem-se laboratórios exibindo o que falta às ciências, pedindo para as reformular, se ainda for a tempo. Ou para o que sobrar de espécie humana.

Público, 12 de Maio 2014 



[1] In M. Pinto e S. Silva, Metodologia das ciências sociais, 1986, p. 255-6

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Consciência e memória




(retorno à questão de “Memória em fenomenologia neurológica” neste mesmo blogue)

Neurónios e mente: Damásio renova a questão
O que a psicanálise complica ao neurologista
A bifurcação da linguagem
Retorno à questão da memória


Neurónios e mente: Damásio renova a questão
1. O que especifica os neurónios enquanto células é eles afectarem-se uns aos outros por múltiplas sinapses, permitindo a auto-afectação do humano (como de qualquer animal) e a sua hetero-afectação. Não li isto em nenhum livro de divulgação neurológica, deduzi duma definição de ser vivo por Derrida – “a auto-afectação é uma estrutura universal da experiência [...] só um ser capaz [...] de se auto-afectar, pode deixar-se afectar pelo outro em geral; esta possibilidade, outro nome da vida [...]”[1] (a dizer verdade, isto só é válido dos animais, não das plantas) – que era essa a especificidade dos neurónios dos seres no mundo que são os animais. Eis o que pode dar o devido valor à solução extraordinariamente simples que o último livro de A. Damásio, O livro da Consciência, trouxe à velha e dificílima questão da diferença entre o cérebro e a mente e à oposição alma / corpo donde aquela é a herdeira, que foi a de dizer – sem argumentar, mas dizendo-o várias vezes como algo que é óbvio – que à rede dos neurónios de cada um[2] apenas o próprio tem acesso, ao que se poderia chamar a sua ‘internalidade’ (da rede de relações sinápticas), e não o neurologista com os seus instrumentos de laboratório: é a esse acesso exclusivo que, sem dualismos, Damásio chama mente. Esta será o saber de si e do seu mundo ecológico. Genial simplicidade duma questão que embaralha os neurologistas, desde o incrível livro de J. Eccles e K. Popper (o título é revelador, The Self and his Brain!) até às buscas de ‘mecanismos’ cerebrais em redor do ‘eu’ e da ‘consciência’ que evoca Kandel no final do seu livro (Edelman e Crick).
2. Mas a simplicidade desta resposta esplêndida repõe velhas questões, nomeadamente a da memória. O que é esta e porquê é ela necessária e como escapam os respectivos neurónios à consciência. Ou seja, porque é que não estão todos os neurónios sempre ‘acesos’ como mente? A primeira observação a fazer é que um cérebro demora tempo a desenvolver-se – o que é verdade para qualquer animal, mas no caso humano aprende-se até ao fim da vida –, isto é, a tornar-se o órgão biológico e social que ele é. A rede neuronal que se vai instalando em suas sinapses com a aprendizagem, como mostrou Kandel com a sua lesma do mar, é algo de material, bioquímico, isto é espaço e tempo, a sua manifestação enquanto ‘saber’ também implica tempo, como falar ou ouvir, ou ler um texto, o tempo das palavras se seguirem umas às outras, embora sendo o cérebro–mente bastante mais rápido e não se trate só de palavras, claro, também de gestos usuais em sentido largo. Com efeito, não é possível ter um texto instantaneamente na mente, um resumo é outra coisa, o que chamamos uma ‘ideia’ do texto é uma aproximação. Isto para dizer que parece ser impossível que tudo o que sabemos na nossa rede neuronal nos seja simultaneamente presente num momento mental mais ou menos curto. Temos, bem pelo contrário, frequentemente a experiência de nos ser difícil lembrarmo-nos de algo que nos está interessando, de que quanto muito nos vêm apenas fragmentos. Essa totalidade ‘acesa’ seria aliás esmagadora da própria noção de ‘eu’, que também é temporal, implica articular sequências, antes e depois. Sendo tão extensa a rede neuronal, parece que só pode haver consciência se esta se demarcar na rede, como uma sua zona (oscilante, por certo, deslocável).
3. Já que a sequencialidade do ‘eu’ é também de grandes oscilações entre estádios da consciência: atenta, descansada ou relaxada, a dormir, com graduações entre estes três estádios, é bem de ver, mas que poderemos considerar como suficientemente significativos para o que pretendemos compreender, entre consciência e memória. Chamamos memória ao estado normal duma boa parte da rede neuronal que corresponde à parte que pode estar presente à consciência vigilante mas não está por inibição devida à atenção ou mesmo em relaxação. Esteve aquando da aprendizagem que a grafou, mas de tão repetida deixa de ser útil: se em cada coisa que fazemos tivéssemos a atenção de quando a aprendemos, se todos os neurónios estivessem mentalmente dispersos, nunca passávamos da cepa torta. Não só não está presente, como não depende dessa consciência vigilante a sua manifestação: como diz a palavra francesa para ‘recordação’, ‘souvenir’, literalmente ‘sub-vir’, é a memória que vem quando algo a acorda do seu estado habitual, o de latência, de estar escondida, à espreita ou não. À espreita, porque a consciência vigilante não pode exercer-se na sua actividade corrente sem o recurso constante ao seu ‘saber’ latente, que lhe ‘sub-vem’ sempre que é preciso para essa tal actividade, duma forma que parece ser extremamente variável e que não tem necessariamente que se explicitar antes de desaparecer novamente. Quando falo dum assunto numa aula, por exemplo, as frases que vou dizendo saem, como dizer?, do muito mais que sei dele e que joga no que digo sem se manifestar, manifestando-se em parte logo que uma pergunta a provoca. Há uma espécie de jogo permanente entre a atenção e a memória, com partes automáticas (as que dizem respeito às regras da língua, por exemplo) e outras não, que são suscitadas (citadas a sub-vir) mas têm a sua autonomia na maneira de virem, com lapsos e esquecimentos, por exemplo, num jogo intenso do que se chama ‘associação de ideias’, e com a incerteza de se poder contar com a fidelidade dela, que é o que nos faz levar uns apontamentos para a aula. É certo que a latência maior ou menor da memória tem a ver com a repetição dos respectivos grafos: as palavras correntes da língua estão sempre disponíveis automaticamente, assim como os gestos que repetimos quotidianamente, desde lavar os dentes a guiar. Do mundo neuronal que diz respeito a esta memória, por assim dizer sempre atenta, sempre a manifestar-se e a esconder-se, pode-se porventura dizer que faz com a zona consciente em cada momento um só mapa de grafos, à diferença da memória dum livro, dum filme, dum acontecimento singular que se vai esbatendo com o tempo, com acentos diversos consoante a força que tiveram, algumas memórias com certa frescura, outras desaparecidas quase.
4. Or que é a atenção? Digamos que é a maneira como esta consciência vigilante é chamada por uma situação do mundo em que se é, ainda que por vezes respondendo a necessidades próprias, como fome ou sede, mas para responder a essas situações (ir a um restaurante ou fazer uma refeição em casa) é sempre segundo possibilidades, minhas do meu mundo, ecoando na memória do que se aprendeu. Como todos sabemos pela experiência da nossa inexperiência: diante duma situação bastante nova, normalmente ficamos sem saber o que fazer de imediato (temos que perguntar). Pelo contrário, em situações conhecidas, embora complicadas, somos capazes de responder porque aprendemos, quando éramos mais novos e nos ‘chamavam a atenção’ (‘isso não se faz!’, ‘cuidado, isto faz-se assim!’). Esta expressão explicita o que me parece aqui importante sublinhar: o estádio da atenção da consciência, que por um lado é suscitado pela situação no mundo que nos ‘capta a atenção’, por outro precisa da relação à memória que sub-venha. Pode ser um perigo, que nos ‘concentra’ na situação em que estamos, palavra que diz o apagar de outras considerações, a predominância que restringe o campo da consciência (posso esquecer uma dor ou outra preocupação qualquer numa situação anómala). Poderemos então dizer que o que distingue este estádio de atenção ou consciência vigilante do estádio da relaxação – consciência desconcentrada em que a memória se aviva mais de incertezas e dispersões –, implicando a própria noção de atenção como ‘tensão’, será a necessidade de regras de conduta em tal situação, de cuidados a ter como se aprendeu. É esta tensão da atenção captada que exclui provisoriamente muito saber da memória quotidiana. É o paradigma dos usos, estas regras como lei social no que diz respeito ao fazer de cada dia, que joga aí o seu jogo, na tensão suscitada por uma situação de perigo, mas também pode ser, por exemplo, a leitura concentrada dum livro, que expulsa dela mesma a dispersão da memória relaxada, posso nem sequer ouvir a campainha da porta de tal maneira o livro me absorve a atenção; mas se se ouviu, então é a memória latente que desperta e a do que se estva a ler que passa a latente. Ora bem, o que Kandel mostrou, foi que o que se aprendeu para obviar a um perigo ou a uma carência e que faz memória, a inscreve como sinapse de grafo – mapa neuronal de grafos da nossa espontaneidade –, saber e força em cada um, que tanto é o que age neste uso, nesta conversa, como o que se retira enquanto memória latente.
5. Sem nunca saber dizer nada de localizações destes grafos que funcionam sempre em oscilações de espaço como de tempo, de zonas como de sequências, creio que fica uma extensão de memória menos actuante e por isso mais susceptível de falhar por vezes, mas que será memória ainda, mais ao sabor das ‘associações de ideias’ (‘é verdade, nunca mais me tinha lembrado disso’). E há a sua alternativa, a actuação tão insistente que se torna memória apagada, os neurónios que sabem da roupa que se tem vestida, de gestos dos pés ao andar, das coisas que se vêem todos os dias em casa e por isso não se repara nelas: essa é mais claramente memória apagada para não esmagar a consciência vigilante, claramente empurrada pelo que se aprendeu e se soube e se repete como se não se soubesse, apagada por inútil, fazendo parte da memória implícita de Kandel, mas diferente da memória que age em gestos habituados. Um outro exemplo: quando muito cansados nos pomos em posição de relax, sem pensar em nada e prestando atenção ao passar do sangue, numa têmpora por exemplo, consegue-se com a experiência vir a estar consciente da circulação do sangue por uma boa parte do corpo. É fácil de perceber que o apagamento dessa memória mental do sangue circulante é uma economia energética da rede neuronal a favor de maior concentração energética da atenção no mapa de grafos quotidiano. Difícil é, pelo menos ao leigo, saber como é que estes jogos energéticos de compensação se fazem, entre hormonas e neuro-transmissores.

O que a psicanálise complica ao neurologista
6. E aquilo a que a psicanálise chama ‘inconsciente’? que não é apenas o ‘não consciente’ (que em rigor coincide com o sentido primeiro da palavra ‘memória’, a latência) mas algo que é impedido de ser consciente, que seria perigoso se o fosse, como sucede no que se chama habitualmente loucura, pior do que uma bebedeira, que triunfa todavia nos sonhos. Julgo que se pode fazer um paralelo com a memória do tempo de infância (in-fante é o que não fala), da aprendizagem da fala, de que normalmente ninguém se lembra, provavelmente porque justamente anterior à linguagem com que a memória funciona: não será memória impedida por outrem mas incapaz por si, podendo porventura ter algum papel nos sonhos. Ora, os sonhos são o terceiro estádio da consciência; quando se dorme, não se deixa apenas o ‘mundo’ exterior de usos a fazer mas também a consciência de si e as suas memórias, até as mais íntimas e secretas, e é aonde então, em vários períodos do sono, surgem cenas inesperadas e incompreensíveis a maior parte das vezes com outras gentes em jeitos diversos; aí, segundo Freud, prevalecem imagens e sensações, visuais sobretudo, da ordem do ‘concreto’, em que mesmo quando há palavras ditas ou escritas estas valem como imagens (de voz ou de grafia). Tratar-se-á então de um estádio em que prevalece a situação arcaica da memória, como seríamos se não houvesse nem linguagem nem as variadas regras dos outros usos quotidianos. Será a memória da não lei, da não regra, não testável por definição pelo neurologista, como aliás se rebela fortemente ao psicólogo e ao psicanalista. Será então o que justifica o lugar dado às regras dos usos na sua relação entre memória e consciência vigilante: é o que chamei mapa dos grafos que se apaga quando se adormece, a nossa lógica vigilante, a memória antropológica. Isto representa uma hipótese de compreensão da lógica da psicanálise, que justamente releva da consciência vigilante (não se faz psicanálise a dormir!), mas que também desconfia dela. O que constitui o laboratório da psicanálise percebe-se: é um divã que não sendo para dormir se aproxima da relaxação do sono, e uma regra contra as regras sociais, tendente a ‘desarmar’ a consciência vigilante das suas ‘armas’ quotidianas: ‘diga tudo o que lhe vier à cabeça, não me esconda nada, ainda que lhe pareça estúpido, sem interesse, obsceno, contra a lógica e a moral sociais’, isto é, contra os usos de cada dia. Com ênfase nos sonhos e na sua interpretação, a ‘análise’ vasculha as zonas da memória de relaxação entregue ao ‘delírio’ das associações de ideias. Ora, o que posso saber de um ano e meio de análise, é que este jogo de memórias estranhando-se é progressivo mas bastante lento em seu aproximar-se das zonas que resistem a vir à memória, que interrompem com silêncios ou choros ou denegações e outros actos falhados e assinalam bloqueios da memória, forças mais fortes que resistem. Se se retiver de Kandel que um pequeno acontecimento traumático leva a abrir uma sinapse (ou mais), dir-se-á que a força que agrediu o neuronal ao se gravar se transformou em força de reacção, de defesa ou de ataque: recebida passivamente de fora, virou actividade para fora, segundo a lógica de toda e qualquer aprendizagem. Então, no caso das resistências que não conseguem dizer-se explicitamente, haverá que dizer que o seu efeito terá sido diferido e deslocado, sublimado. E que isto se passou ao longo dos tempos, com repetições de forças nas mesmas zonas e repetição do diferir e deslocar, que terão sido os usos que se foram aprendendo e triunfaram na cena social do paradigma dos usos, reconhecido após ter sido incitado e corrigido. Com o longo tempo e o aleatório dos percursos, pode o que ficou bloqueado vir a doer de tanto  pisado, ao contrário de outros que poderão vingar em suas habilidades espontâneas. O que assim se sugere é que o tempo da passagem da pertença ao seio da mãe, parto, desmame pelo andar, mexer e falar ao ser no mundo do paradigma de todos é o das muito difíceis aprendizagens, dos primeiros grafos e sinapses que vão ser alicerces de muitos outros, e que estes prevalecerão sobre aqueles primeiros, ainda impotentes face ao que os posteriores conseguem. Seria essa impotência que ficaria marcada como in-consciência, incapacidade de chegar à consciência do que terá ganho um estatuto de alicerce dinamizador, se dizer se pode. Os prazeres passivos de se ser parte da mãe, do seu seio, ficam interditos pelo que se vai ganhando como possibilidades activas e seus novos e menores prazeres: são as regras destas possibilidades, deste ‘poder’ ser no mundo, que impossibilitam o retorno ao que fica marcado como incestuoso.
7. Mas é óbvio que disto tudo os neurologistas não poderão saber, resulta da paciente ‘análise’ de discursos no divã, do neuronal ‘mental’ a que só o próprio tem acesso. E quando se os vê a fazerem certas experiências de laboratório e concluírem que Freud estava errado, o mínimo que se pode achar é que provavelmente nunca leram o seu admirável Interpretação dos sonhos, que não fazem a mínima ideia da diferença entre o seu laboratório químico eléctrico de experiências relativamente curtas e o longo tempo das caminhadas psicanalíticas, um outro mundo. Basta ler o capítulo sobre os sonhos de M. Jouvet em O sono e o sonho, de como não consegue retirar da sua análise de dois mil e cinquenta sonhos mais do que duas considerações relativamente anódinas e comparar com o livro de Freud para se medir a diferença. Que também é de paradigmas incomensuráveis, como dizia Kuhn, muito mais do que a incomensurabilidade entre físicos de gerações diferentes.

A bifurcação da linguagem
8. Uma das possibilidades da linguagem dos humanos é a de permitir ‘suspender’ o contexto situacional do falante e do ouvinte (do escritor e do leitor) em vista de ‘criar’  um acontecimento de palavras trazendo consigo o seu contexto : dois bons exemplos são, quer o contar uma narrativa do passado ou uma ficção, quer o que se chama pensar, incluindo sonhar, desejar, imaginar outras possibilidades do que as do contexto situacional, do ‘aqui e agora’. O ‘discursivo’ (que Benveniste distinguiu do ‘narrativo’) permite dois modos dos verbos : o indicativo presente que, com outros índices de locução (‘eu’, ‘tu’, ‘aqui’, ‘agora’, e outros), reenvia ao seu contexto, ‘indica’ o que está ‘presente’ a esse discurso falado, e o conjuntivo, que reenvia a esta capacidade de pensar em outra coisa, guardando todavia o suporte do ‘eu’ da enunciação e a relação ao ‘tu’. Da mesma maneira, a narrativa evocada pode guardar este suporte (auto-narrativa, a respeito do locutor), que no entanto estruturalmente ele exclui. Que nome dar a esta possibilidade das nossas palavras de ‘suspenderem’ o nosso contexto situacional e de nos arrebatarem para algures, absorvidos por exemplo na leitura dum romance apaixonante ? Bifurcação ? Jogando com dois dos sentidos da palavra ‘sentido’, poder-se-ia com efeito falar de bifurcação do sentido : o que nos orienta no espaço, direita, esquerda, à frente, atrás, em cima, em baixo, norte, sul, este, oeste, por um lado, e por outro o que, sentido do discurso, nos dá uma outra possibilidade ao nosso ser-o-aí, a de se ser algures, num outro aí. Bifurcação : ao mesmo tempo aqui-presente e algures.
9. Esta bifurcação far-se-ia entre o nosso contexto situacional, o nosso ‘aqui e agora’, e o contexto contado pela palavra ou pelo escrito. Este tem a potência de nos raptar daquele, de nos absorver, de nos bifurcar[3]. Pode-se presumir que seja necessário normalmente um ponto de partida no contexto situacional para que haja esse ‘ir-se’ da bifurcação, algo, acontecimento mínimo, que faça interrupção, que faça ‘associação’ entre um elemento do contexto e o que está em jogo na palavra, dita ou silenciosa : um encontro com alguém, tal coisa que acene à memória, ou muito simplesmente uma associação de ideias.  Esta é tão frequente que temos que admitir que o nosso estado normal seja o de estar sempre já em bifurcação de sentido, digamos assim, entre a situação do contexto e a do discurso[4], a chamada consciência. Prevenção dum ‘acidente’, a expressão  ‘dá atenção !’ lembra com insistência que há que estar atento ao contexto quando se está algures, nas nuvens.

Retorno à questão da memória
10. O que esta questão da bifurcação implica é que ela vem-se estabelecer lentamente com a aprendizagem da fala e, com os outros usos, andar, mexer nas coisas, brincar, a atenção sendo constantemente ‘chamada’ por quem educa para o contexto presente, este é também coberto pelas palavras que o nomeiam, o que o povoa e nele se faz. Se dissermos que estamos, quando acordados, sempre numa ‘paisagem do nosso mundo’, em interior ou em exteriores, e que os nossos ‘sentidos’ acordados são esse mundo que lhes é dado e que muda sempre que nos movemos, e que é nessa paisagem que somos possibilidades de usos, o que a linguagem aprendida traz à bifurcação é que esse ser em paisagem e em possibilidades é coberto pelas palavras e pela sintaxe das frases que dizemos, de maneira tal que praticamente nada do que era in-fância antes dela lhes escapa (a não ser eventualmente certos gostos visuais e auditivos que venham a manifestar-se em talentos de desenho ou música, que em certas pessoas parecem inatos). Mas o que se chama língua materna será a língua da saída da mãe para o das falas e dos usos: ela orienta o que se vê, ouve, diz e faz: o que corresponde ao que Derrida escreveu: “na língua não há fora de texto”. E será o que ‘après coup’ torna impotentes os neurónios cujas principais sinapses se instalaram na in-fância, incapazes de virem jogar directamente qualquer jogo na consciência atenta mas porventura indirectamente (por deslocamentos e metaforizações, em termos freudianos) na consciência relaxada.
11. Conjecturo que é difícil nestas coisas saber se as sinapses dum dado neurónio são todas da mesma idade ou se podem ter anos de diferença, o que poderá invalidar algumas destas hipóteses. Mas esta in-fância seria por um lado o que a psicanálise busca atingir, os seus efeitos, e por outro, paradoxalmente, corresponderia à concepção dominante de todos os neurologistas que li (Eccles, Changeux, Vincent, Edelman, Berthoz, Jouvet, Damásio, Kandel…), o de não terem em conta a linguagem como aprendida e que lhes baralhará as contas todas.


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[1] De la grammatologie, p. 236, citado in Belo, 2007, 3. 12. Digo isto para ajudar a perceber que a fenomenologia pode ser interessante para os neurólogos.
[2] Dos mosquitos aos humanos, acrescente-se como prolongamento do óbvio
[3] É aonde residiria, parece-me, a ‘verdade’ do que se chama idealismo, cujo erro consise em dividir ou separar a bifurcação entre ‘corpo’ e ‘alma’, extensio et cogito, finalmente objecto et sujeito. Em Husserl : região natureza e região consciência.
[4] Limito-me aqui ao discurso, mas este ‘lá’ pode ser também música, jogo de imagens, cálculo matemático.

O Capital como ‘cabeça’ do Corpo social comum




“Quando a cabeça não tem juízo,
o corpo é que paga”
(A. Variações)

Capital vem do latim caput (cabeça)
1. O capital financeiro deu-se um ‘mercado’ de capitais donde vem provocando crises graves às economias nacionais, onde os Estados, asfixiados por dívidas demais que ele, capital, frequentemente publicitou (sem andar por distinções entre as dívidas dos Estados, da banca ou das empresas privadas): é o problema politico mais grave actualmente, na medida justamente em que as instancias politicas são também vítimas e as internacionais parecem impotentes. Queria aqui reflectir sobre esta questão ao nível fenomenológico, tanto quanto for capaz.
2. Será necessário circunscrever a sua dimensão de ‘propriedade privada’ quando o capital se encontra, especulativo, fora da sua aplicação empresarial e das relações de contrato com os cidadãos colaboradores na empresa, buscando predatoriamente aonde ir caçar lucros que o aumentem, sua única meta, dela mesma anti-social. Ora, o capital é exclusivamente social, não vale nada for dos valores das línguas de preços dos verdadeiros mercados, aonde se trocam produtos de produção empresarial. Na dupla relação entre empresas de produção e venda de mercadorias e famílias de reprodução de sujeitos e compra de mercadorias, há que incluir a escola e o mercado: aquela transforma os filhos das famílias para poderem vir a trabalhar nas empresas (e outras unidades sociais) e este, com os salários pagos, asseguram a vazão do produzido no que as famílias (e outras unidades sociais) necessitam. Escola e médias, por um lado, administração do Estado por outro, são com este mercado de coisas as três instâncias de regulação do comum da sociedade.
3. O capital (com a banca) é necessário para fomentar as empresas de produção, que não podem começar antes de chegarem ao tempo das vendas dos seus produtos sem recursos financeiros, próprios ou emprestados pela banca. Esse capital inicial busca ter lucros para poder prosseguir a sua produção e pagar o que lhe foi emprestado, lucros esses que só são apurados depois do pagamento da matéria prima importada, dos salários aos cidadãos que colaboram na produção, incluindo o ‘patrão’, da amortização dos empréstimos e do pagamento dos impostos; o destino desses lucros, o que sobra de todos os custos e retornos, é o de aumentar o capital, podendo obviamente ser investido noutras produções, buscando o seu aumento, novos lucros.
4. Esse investimento noutras produções pode fazer-se comprando ‘acções’ de empresas, ou outros ‘títulos’. O termo ‘acções’ parece dizer a relação desse investimento com a produção, agi-la, dizer pois a relação intrínseca da finança à economia, que o papel daquela é estruturalmente o de fazer ‘agir’ a economia, que sem capital à cabeça não se pode fazer (mesmo em economias colectivistas, tem que haver capital inicial). E o outro termo, ‘título’, que tem um campo mais alargado, que significa ele em finanças? Etimologicamente significa ‘cabecinha’, reenvia pois para ‘capital’ como ‘cabeça’ mas secundariamente, com diminutivo. Num livro, ‘título’ é uma expressão muito curta (donde porventura o diminutivo) o corpo do texto muito mais lato, que pode assim ser dito ou chamado por essa ‘cabecinha’ (nos livros antigos maiores do que hoje em geral). Parece óbvio concluir que ‘capital’, como ‘título’, joga na correlação da ‘cabeça’ com o ‘corpo’, dizendo para começar que não há um sem o outro, isto é insistindo no carácter intrínseco da relação da finança à economia, mas acrescentando que é à cabeça que compete mandar no corpo.
5. Sim, mas não só nem directamente, que o ‘corpo’ enquanto unidade de produção de coisas para vender os seus produtos são muito variáveis e têm pois lógicas técnicas de produção específicas a que a lógica do capital, a mesma em qualquer mercado, é alheia: digamos que é a lógica do engenheiro que liga o ‘corpo interno’ enquanto unidade de produção. A lógica do capital tem a ver com o mercado de venda e compra, com os preços enquanto língua do mercado, é a lógica do economista que liga a unidade de produção ao mercado em que ela se insere. Há pois uma dupla ligação, a do ‘corpo’ (forças produtivas, na teoria marxista) como ‘motor’ do mercado social e a da ‘cabeça’ (relações de produção marxistas) que distribui as mercadorias à maneira dum ‘aparelho’ que visa as melhores vendas, secundado pelo discurso publicitário que se dirige aos compradores possíveis, num campo de concorrência estruturalmente aleatório. Entre engenheiro que busca a melhor qualidade do produto e economista que busca o seu menor preço, há um conflito permanente, um procurando limitar ao máximo os custos dos materiais e tempo de produção de que o outro necessite. Igualmente conflito na repartição das mais valias conseguidas entre lucros do capital e salários dos cidadãos que trabalham na produção, sem que haja nenhum critério científico ou técnico que decida: a decisão é sempre politica, revela-se no contrato de trabalho e nas lutas ou concertações que visam o acerto de uns e outros, o capital comandando em épocas de desemprego grande como hoje, os cidadãos podendo impor lutas mais ou menos severas fora dos tempos de crise e em épocas de inflação.
6. O que é o dinheiro de que o capital é feito? É uma convenção do poder politico que constitui moedas cunhadas/assinadas (escudo, dólar, euro...) de unidades aritméticas (que se podem somar, diminuir, multiplicar e dividir) para regular as trocas de produtos, quer a sua venda consoante os tempos de produção e salários e os custos materiais e energéticos (e outros, administrativos, laboratórios, etc.), quer por via dos salários, o poder de compra dos cidadãos. Há que insistir sempre que se trata de ‘cidadãos’, que tanto o quadro dos contratos de trabalho como das condições de venda são regulamentados pela autoridade politica, que são votados os seus dirigentes em função, em grande parte, da maneira como esta regulação corresponde a um Estado de direito. Qual é a diferença entre o dinheiro e outras inscrições, como as palavras, as notas de música e os números usados em outras esferas, como medidas técnicas, cientificas e outras? Todas formam sistemas diferenciais que permitem que cada unidade sua jogue consoante o seu lugar em relação às outras. Mas enquanto que palavras, notas e números são de uso geral e gratuito para poderem formar obras (textos, sinfonias, canções) que poderão resultar em vendas e compras, as moedas e notas (e cheques, depósitos bancários) são imediatamente um poder de compra de quem sejam propriedade, anónimas as moedas e notas (e por isso susceptíveis de serem roubadas, por exemplo), como condição de poderem circular de mão e mão no mercado em que se compra e se vende.
7. A propriedade privada do dinheiro é pois parte da sua definição. E o que significa que ela seja ‘privada’? Significa que o dinheiro só vale como parte do conjunto da produção social, da economia concreta em seus altos e baixos, crises e prosperidades, que é desse conjunto e da sua língua de preços (que todos aprendemos a conhecer) que ela é ‘privada’ para ser ‘apropriada’ pelo seu ‘proprietário’ de ocasião. É-lhe intrínseca, ao dinheiro, esta relação ao que se pode chamar o ‘bem comum’ da sociedade: só vale por ser ‘privação’ dele. Isto é, da mesma maneira que se disse acima que o capital enquanto ‘cabeça’ é intrinsecamente parte do ‘corpo’ económico, também o dinheiro, qualquer moeda, nota ou cheque com cobertura, é inseparável do ‘bem comum’ do corpo social, é o que significa o nome da moeda que se acrescenta ao numeral, ‘mil escudos’ ou ‘quinhentos euros’ (se hoje, uma nota de ‘mil escudos’ não vale para comprar é porque a rede monetária dos escudos já não existe: essa não existência do todo desfaz a menção ‘mil escudos’ que continua lá escrita, apenas com valor de memória).
8. A apropriação do capital como dinheiro apaga esta relação à esfera económica que o constituiu, de que é privação: o termo propriedade privada tornou o adjectivo uma espécie de reforço do substantivo, como se o que de si é meio de troca, as notas sempre de mão em mão, se tornasse pela propriedade parte íntima do proprietário, como seu ‘poder’ de compra, potencial que ele conjuga: ‘eu posso comprar X’. X pode ser ‘pão para os meus filhos’, um carro utilitário, um carro de luxo, uma casa de fim de semana fora da cidade, e por aí fora: a partir dum limiar variável, da utilidade passa-se à exibição, do carro ou do iate ou das viagens que se faz, como antes os palácios, as roupas e as carruagens, o aparato que se dá a ver e a invejar em diversos níveis de concorrência social. Uma boa parte do jogo das bolsas releva desta cena mundana, a certos níveis internacionalizada e inclusive com ‘rankings’ das maiores fortunas (quando a burguesia se pauta(va) pelo secretismo das suas contas, que permite deixar jogar as aparências, as revistas de modas).
9. A outra parte do jogo das bolsas é a dos guerreiros que procuram o poder que hoje predomina, o financeiro, onde a concorrência é feroz e não dissimulada. O que então se dissimula é a relação dos capitais que se arriscam com o ‘bem comum’ que os tornou possíveis: num duelo, não tem a menor importância que as pistolas venham da mesma fábrica, os capitais são armas entre adversários, as crises económicas que provocarem serão danos colaterais (como bombas sobre civis) da ‘grande guerra’ em que vivemos mais manifestamente de há uns 30 anos para cá, desde que as tecnologias electrónicas se tornaram armas novas do capital contra os cidadãos que com ele colabora(va)m. E como as bolsas também se tornaram electrónicas e aceleraram as trocas entre ‘títulos’, cada vez menos sobra tempo para auscultar a relação dessas ‘cabecinhas tontas’ com os seus ‘corpos’ económicos. O dinheiro é porventura o laço social que mais força tem, de que todos dependem directa e quotidianamente, o que o torna – “equivalente geral” das mercadorias, dizia Marx – o feitiço dos desejos de cada um, que ainda por cima é aritmeticamente verificável, atrai uns para as bolsas, outros para as lotarias, muitos para todo o tipo de ladroagem, quer a literal, a das ruas, quer a elegantemente chamada corrupção.
10. Contra a idéia fácil de que vivemos numa civilização ‘materialista’, esta separação entre finanças e economias, entre capital e vidas diárias, entre ‘cabeça’ e ‘corpo’, é claramente um idealismo, as idéias que querem comandar às necessidades vitais. Não se trata, como se pretende por vezes, de uma oposição entre Deus e o Dinheiro, mas do Dinheiro ocupar o lugar de Deus, ‘equivalente geral’ ou feitiço a que todos sacrificam, uns por necessidade, outros por devoção. Quando a cabeça não tem juízo – se separa do corpo – este é que paga.
11. Donde vem esta separação? Chama-se ‘capital’ à cidade com ofícios especializados, cabeça dos campos em redor que a alimentavam, centro do poder político. Esta primeira separação foi reforçada pela industrialização que veio a destronar as grandes propriedades rurais como principal fonte de riqueza aristocrática: burguesia é a população dos burgos, das cidades, é ela que capitaliza quer a capital e o seu Estado moderno, quer os capitais da indústria. 1) O primeiro tempo (máquina a vapor, carvão e ferro, primeira química e primeiras máquinas), que dura até aos inícios do século XX, é o do patronato, o ‘patrão’ como ‘pai’ da fábrica e conhecedor dos fabricos como condição do laço técnico que garante a qualidade dos produtos, em tempos em que não há ainda engenheiros especializados cientificamente. Embora a relação com os trabalhadores fosse tudo menos relação com cidadãos, e houvesse pois imperativos drásticos sobre eles que tornaram essa primeira época dramática, a paisagem exibindo claramente a oposição entre a burguesia em seus bairros da cidade e o proletariado nas suas redondezas miseráveis sem higiene, há uma preponderância do laço técnico como que predominante: abriam-se fábricas de produtos que se sabia fazer e se buscava aperfeiçoar, empiricamente em geral e sem grandes dimensões. Havia pois cuidado do patrão-cabeça com o corpo da produção, onde ele passava o dia todo, como regra mais zeloso dos produtos do que dos produtores. 2) O segundo tempo (aço e betão armado, electricidade, iluminação e elevadores, grandes cidades e classe media de escriturários), o dos engenheiros que vão se especializando e dos gestores que rodeiam a administração capitalista, com muito maior dimensão e variedade de produção, uma hierarquia de competências do alto para a zona de produção, é já de aquisição de autonomia do capital em relação à produção, de acento nos lucros a maximizar, acento pois da separação mas com a lentidão das comunicações que tem que atravessar os vários níveis hierárquicos, para cima como para baixo, as responsabilidades intermédias relativamente cerceadas. 3) O terceiro tempo é o da dominação da electrónica que permitirá desmontar hierarquias e acentuar autonomias de gestão mais facilmente controladas com a comunicação quase instantânea, desmembrando produções através de pequenas empresas clientes com tarefas precisas, muitas vezes antigos operários especializados da empresa mãe. É quando o controle dos custos técnicos, dos engenheiros pelos economistas se acentua fortemente, as respectivas especializações reforçadas aumentando as ignorâncias das dos outros. Foi quando a teoria monetarista e neo-liberal se desenvolveu e cativou Thatcher e Reagan, incitando ao grande voo dos capitais-cabeças à procura de títulos, de capitaizinhos, quando os números do capital se impuseram às economias, as fizeram vergar.
12. É a grande separação idealista, a das cabeças sem corpo – o que se chama especulação – e dos correlativos desempregados, pedaços de corpo que este perde pelo slogan guerreiro da competitividade, em que os salários dos cidadãos viram custos anónimos a amortecer ao máximo, slogan esse que será virado também para tudo o que é administração pública e dá a esta um ar de que, em vez da respectiva ‘coisa pública’, se deve afirmar a mesma razão do que a dos que buscam lucros acima de tudo. A ideologia é a de que baixar os custos aumenta o rendimento, a racionalidade das coisas, mas quem vela pelos cuidados da qualidade é que se apercebe, como os economistas não, da degradação das vidas, da habitação que deveria ser o escopo da ciência que tem por nome a regra (nomos) da habitação (oikos, casa). Como rebatê-la, à separação, controlar os seus excessos guerreiros? Não será guerrear contra quem tem o poder da cabeça, mas haveria que revolucionar a economia como ciência, voltando-a justamente para a habitação dos cidadãos, colocando os seus ‘interesses’ económicos e financeiros, o seu equilíbrio democrático, como meta científica, pegar pelo corpo de maneira a esvaziar parte do poder do capital através das potencialidades económicas da habitação.
13. Não pode o fenomenólogo pretender essa tarefa sem estultícia e ridículo. Delineemos brevemente o motivo fenomenológico dos duplos laços sociais, a partir do que acima assinalámos para a empresa de produção (§ 5). Quem trabalha insere-se de duas maneiras no mercado, como produtor que recebe um salário e como familiar que compra os produtos de que há necessidade em casa. Se as empresas, com todas as outras unidades sociais que dão emprego, estão ligadas entre si pelo mercado, pelas suas vendas e pelas compras de produtos estranhos à sua produção, também esse laço enlaça de outra forma a rede das famílias que compram. Duplo motor das sociedades modernas, o da produção, de coisas e serviços por um lado, o da reprodução de sujeitos por outro. O mercado, obviamente que hoje fortemente internacionalizado, é assim um dos aparelhos de regulação desse grande duplo laço social. O Estado forma um outro aparelho de regulação da ordem do conjunto ‘nacional’, assim como a escola e os médias na língua da sociedade são o terceiro aparelho que enlaça igualmente o conjunto motor, através das suas diferenças que são aqui também claramente acentuadas segundo os percursos escolares, tal como as diferenças de posição e de salários na produção. Os duplos laços antropológicos são muito complexos nas sociedades modernas, mais óbvios nas primitivas e nas de agricultura predominante: estes três laços de regulação dos caminhares (aparelhos) são transversais ao duplo motor (que dá o movimento), as instituições de trabalho e as famílias, duas redes reproduzindo (toda a produção é reprodução) como se fossem um ‘corpo’, o motor da sociedade enquanto viva no quotidiano e de geração em geração. Do lado da rede das famílias, os laços privados de cada uma enxertam-se na aprendizagem dos seus usos de cada familiar, alarga-se de forma mais atenuada ao círculo de amigos ou de hobbies, à aldeia (cujo laço em que todos se conhecem se pode tornar intolerável e levar a uma emigração libertadora) ou ao bairro (as cidades mais anónimas), além de círculos administrativos que se alargam geograficamente, da junta de freguesia, da câmara, da região, do pais, da União Europeia
14. A escola e os médias, como instituições, são tornadas vivas por muita gente, professores, escritores, artistas, jornalistas, sem ‘monarcas’, apenas alguns mais conhecidos, cada um fala e escreve segundo sabe e pode. O Estado, com regimes diversos – rei de fachada ainda nalguns lados, presidentes da república de poder regulado noutros –  tem em todo o caso uma população variada de agentes ‘políticos’, juristas, deputados, ministros, etc., que contrabalançam o poder, que não o deixam nunca ser de um só (mesmo os ditadores precisam das sua ‘cortes’ de apoios firmes), mas o laço político da ordem social joga-se sobretudo pelas consciências cívicas dos cidadãos, mais do que pelo temor da repressão. A preponderância ganha nesta terceira fase da industrialização, electrónica, pelas instâncias especulativas de capitais em guerra sobre o Estado, enquanto regulador democrático que deve zelar pela habitação de todos e sobretudo dos mais fracos, e sobre a escola, isto é, sobre a ciência económica enquanto devendo orientar a regulação dos mercados como ‘governo da habitação’, essa preponderância é a ‘causa’ preponderante da crise crescente: os três laços transversais deverão equilibrarem-se, controlarem-se uns aos outros, à maneira, se comparar se pode, dos três poderes democráticos de Montesquieu, acrescentando-se a força crítica dos movimentos sociais.
15. Voltemos à crise. Sabemos que, no que diz respeito às dívidas e ao seu pagamento, só se encontrarão soluções, mais tarde ou mais cedo de preferência, a nível de soluções de instituições europeias que joguem efectivamente os tratados de solidariedade: em tempos, Rui Tavares chamava a atenção para que, entre os objectivos da União Europeia, está “o pleno emprego”, isso lembra-nos que o emprego é parte essencial da democracia, juntamente com o Estado social. Mas no que estará mais ao nosso alcance, haverá que pegar pela questão mais óbvia dos efeitos da crise, os números impossíveis do desemprego que derrotam toda e qualquer pretensão à democracia, já que não se é claramente capaz de atribuir um subsídio razoável de desemprego a todos os cidadãos que estão privados de salário. Então, se olharmos para os salários que há numa dada zona – no laço duma junta de freguesia ou duma câmara municipal talvez – e os multiplicarmos pelas horas de trabalho anuais, por exemplo, que eles representam, poder-se-á dividir esse resultado pela soma dos que trabalham e dos que querem trabalhar sem poderem, com níveis diversos de qualificação certamente (o que não facilitará as coisas), e estabelecer os horários de trabalho que permitam que todos tenham emprego e salário: haverá diminuição deste para os que estão empregados, como se tem feito para o pessoal da função pública e para os pensionistas, mas com diminuição do tempo de trabalho como compensação, isto é, maiores fins de semana e férias, que implicarão a invenção de maneiras de viver sem grandes despesas (o que nem toda a gente  consegue, mostra a realidade dos recém reformados). Como preconizava André Gorz há mais de trinta anos, haverá que criar solidariedades nesse sentido, por exemplo, tipo bancos de horas. Inviável no imediato, dir-se-á, mas é certo que tem havido empresas que, com problemas de diminuição de encomendas a curto prazo, têm preferido diminuir o tempo e o salário de todos em vez de despedir, na esperança de recuperação posterior. Ou seja, é a própria crise que pode despoletar soluções destas, não à maneira de legislação geral atribuindo menos horas de trabalho para toda a gente, mas de forma empírica e por zonas geográficas que comportem alguma viabilidade: as juntas de freguesia são um laço social ténue, que joga por exemplo em dias de eleições; ganharia uma força maior se pudesse encarregar-se de questões desta ordem, sabendo-se que elas implicam que os interessados o sejam de facto.

Post-scriptum
16. Nós, povos da periferia europeia, estamos a sofrer uma guerra devastadora, efeitos colaterais da grande guerra dos capitais, tal como as houve, militares, na primeira metade do século XX. Concomitante com ela, já que se trata duma guerra com suporte electrónico falado em inglês, sofremos igualmente o domínio da língua inglesa nessas tecnologias, juntamente com a dívida colossal, como se houvesse uma ocupação e nos fosse muito difícil organizar a resistência. O novo império, o Gestell de Heidegger, é por ora americano, com o chinês no encalço. Ora o pensamento inglês (como aliás o chinês) é empirista, os americanos são facilmente engenheiros (como os Romanos o foram, sustentados pela cultura grega) e dependem da cultura europeia, do acabamento da metafísica (Heidegger ainda). O que significa este? Não é apenas a marginalização do pensamento francês e alemão (os intelectuais dessas línguas estão a render-se aos pensamentos únicos que não pensam?), é também o predomínio da metafísica empirista no além da tecnologia-capital, estrutura esta imune à metafísica especulativa. Ou não? Estrutura sem cabeça? Ou o capital cabeça de que o corpo é a tecnologia? Com ela, a velocidade da electricidade tornou-se pressão sobre o tempo, tudo à pressa no espaço urbano.
17. Ora, assim se abrem margens desempregadas, com menos tempo de emprego, susceptíveis de liberdades novas, para lazeres calmos, leituras e artes, desporto praticado sem espectadores, retorno a coisas esquecidas, culinárias, agriculturas, meditações, sei lá!


sábado, 8 de março de 2014

TIMOR, UMA ESTREIA MUNDIAL


texto publicado no Público por altura da independência de Timor 

1. Não sendo diplomata, estratega, jornalista ou historiador, ar­riscan­do-me pois a ser desmentido por algum especia­lista, creio que este pro­cesso timorense é uma novidade na história deste sécu­lo e que, mais do que a última descoloni­zação do sec. XX, talvez se trate da primeira dum novo tipo no sec. XXI. 0.4% da popu­lação dum dos maiores Estados do mundo conseguiu, num contexto de re­pres­são extremamente feroz, al­cançar a inde­pendên­cia por meios democráti­cos extremamente límpidos; o pro­cesso opôs a con­cepção ocidental de política a uma concepção asiá­ti­ca tradicional e teve o apoio unânime do Conselho de Segurança da ONU, sendo uma das suas fases de maior sus­pense o espectáculo de um Presi­dente da Re­pública, com todo o seu go­verno e altas pa­tentes milita­res em grande estadão, a levantar a ban­deira branca diante das te­levisões do mundo inteiro. Já se vira algo assim?
2. O Estado indonésio é multiétnico, como se sabe, embora cerca de dois terços da população (nas duas ilhas maiores, Java e Sumatra) tenha uma longa história cultural ligada às grandes civili­zações continentais, nomeadamente à Índia, cujas influências foram recobertas, desde o tempo das descobertas ocidentais, pelo Islão e pelo colonialismo holan­dês. Aliás, esta implantação do islamismo, geograficamente ‘aberrante’, parece sintoma dum atraso histórico da unificação das popula­ções dessas duas grandes ilhas, em relação às grandes nações asiáticas. A ilha de Timor, nas suas duas meta­des, faz parte dum conjunto de dezenas ou centenas de etnias (os nú­me­ros variam com as fontes), numa imensidade de ilhas mais pe­que­nas que a Indonésia sempre teve dificul­dade em con­gregar, onde justa­mente o Exército tem um  papel predomi­nante, o de uma es­pécie de ‘partido único’, de garante da unidade à força (as milícias fazem parte disso). Ora, na Ásia da China e do Vietname, este gi­gante frágil era o aliado dos Estados Unidos (e da Austrália) desde que Suharto, em 1965, massacrara cerca de um milhão de militantes e simpatizantes co­munistas pró-chineses. Eis uma das condicionan­tes fun­damentais da questão de Timor.
3. A outra é a extrema dificuldade dos ‘pequenos’ se fazerem ouvir no concerto dos medias, como sabe o desconhecido que publi­ca livro, disco ou filme que não vá segundo os ventos de feição dominantes, ou quem faz uma campanha de marketing com poucos meios; dese­jos e cunhas não intervêm, e sorte é só às vezes.  Ques­tão: como fazer ouvir Timor? Houve o massacre de Sta. Cruz e o Prémio Nobel, depois mais nada.
4. O factor decisivo em relação à primeira condicionante foi o PREC surgido na Indonésia com a queda de Suharto; até aí, os es­forços diplomáticos portugueses, fossem do PSD fossem do PS, não deram frutos nenhuns, que só depois foram possíveis e nas condi­ções que se sabem, as que os indonésios, sem pressões ainda sobre eles, puderam impôr. É que na al­tura só nós, praticamente, é que prestávamos atenção. Ainda que se possa e deva discuti-lo, foi o acordo de Maio que tornou possível o recensea­mento de toda a po­pulação, o referendo com 98% de votan­tes e com os 78.5% a dize­rem ‘sim’ à independência. Depois, foi esta votação esmagadora e o massacre que se seguiu, que mostrou, agora sim a todo o mundo, as razões muitos fortes dos ti­morenses quererem viver sozinhos. E foi então que todo o mundo viu, Clinton e os outros também, o que se estava a passar em pleno Oceano Pacífico: 0.4 % contra 99.6 %, um David / Golias entre asiáticos, mas em que o fraco estava armado pela ONU com a razão ocidental, a razão democrata dos direitos humanos, e o forte massacrava sem dó nem piedade, à maneira an­tiga dos exércitos coloniais (incluindo o português há trinta anos).
5. Estou em crer que foi este confronto espectacular de civili­zações - diria Huntington - que obrigou a deci­dir os “senhores do mundo”: as convicções mais fortes do Ocidente (que, contra os cí­nicos, também fazem parte dos interesses “materiais” estratégi­cos dos americanos) estavam a ser esmagadas na paisagem política asiática. E é por isso que me parece que as críticas sobre a “inge­nuidade” dos diplomatas diante dos Indonésios são críticas “ingénuas”. O ofício dos diplomatas foi o de tentar meter a razão diplomática possível no aleatório duma relação de forças extrema­mente desfavorável. O outro lado também estava a negociar (e di­vidido, como se viu depois que o governo não controlava os milita­res), também calculou mal, esperava conseguir alcançar uma espé­cie de empate com o medo que as milícias inspirassem aos eleitores. Foi a amplidão da derrota que ditou a amplidão do massacre. Sem o acordo que houve, e porventura sem a infe­liz cláusula reservando a segurança aos malfeitores, ainda se estaria a negociar; em Novem­bro, a filha de Sukarno, com minoria de deputados, a precisar de coligações e de se conciliar a tropa, que sempre se disse contra o referendo, acabaria com as negociações em nome da democracia interna da Indonésia, e da sorte de Timor só continuariam a saber os portu­gueses e pou­cos mais. Teria sido essa a vitória diplomática de Ali Alatas! Este argumento é triste: fazem parte intrínseca dele os milhares de mortos a quem ninguém ressuscita. Mas a história dos humanos fez-se as mais das vezes com dores destas para que al­gum bem possa vir, para que agora a independência de Timor seja irre­versível. E isto porque quer os Estados Unidos quer a Austrália fo­ram capazes de joga­rem a fundo contra os seus interesses estra­tégi­cos na região.
6. O que creio ser, senão totalmente inédito, pelo menos ex­trema­mente raro. E por isso mesmo significativo: são as razões de justiça nas relações internacionais que poderão ter dado um salto para a frente. Ora, a estabili­dade e a força do direito e das institui­ções internacionais, mormente da ONU, são porventu­ra o problema mais urgente da actualidade internacional. E é de es­perar que, com a globalização das TV, surjam no futuro, não os dois, três, dez Vietnames que o Che Guevara em tempos desejou, mas dois, três, dez Timores bus­cando a sua independência, sair de­baixo da alçada de qualquer exército de povos “irmãos”.
7. O caso de Timor não é único, há outras etnias, maiores até, na própria Indonésia, mas também noutros lados, o Tibet, o Da­guestão, e tantas e tantas pela África pós-colonial fora. Toda a gente responsável tem dito, desde o caso da ex-Jugos­lávia, que não se deve mexer nas fronteiras pós-coloniais. Se estes conglomerados frágeis, instáveis e capazes por vezes de surtos de violência im­previsível, começam a desmantelar-se como nos Bal­cans, se sucede isso à Rússia e à China (por muito que o nosso co­ração esteja com os de Tianamen), à África, que caos tremendo não será?  É esse o grande medo da estratégia americana em relação à Indonésia, Ti­mor nada pesa ao pé deste pesadelo.
8. Ora, qual parece ser o pro­blema? Na Europa, levaram-se alguns séculos para se fazerem Estados-nações, com predomínio das línguas duns sobre as dos outros, que vira­ram minoritárias, mas esse tempo de consolidação nacional foi também o da formação da civilização industrial. As coisas foram lentas, violentas (com revo­luções) mas foram a par; os outros países tendem a acelerar e a precipitar. Entre os povos não-ocidentais, prati­camente só as gran­des civilizações asiáticas, e sobretudo o Japão, tinham já algu­mas condições de unificação nacional para formarem rapidamente Esta­dos modernos. A África, como se tem visto sobejamente nos úl­ti­mos 40 anos, está nos antípodas: o problema deles é como passar rapidamente, em quantas gerações?, de sociedades tribais de há al­gumas décadas a sociedades modernas. O mí­nimo que se pode dizer é que ninguém sabe responder a isto. E também ninguém sabe, jus­tamente porque essa perspectiva é catastrófica para o planeta, di­zer se a independência étnica não será uma dessas con­dições.
9. Foi esse medo, e não a ‘hipocrisia’, quem impediu os Clin­tons e outros de se ocuparem de Timor, e até da Bósnia e do Koso­vo, da mesma maneira que é o sabe­rem que eles têm esse medo que permite aos Milosevic e aos Wiranto a confiança na sua impunida­de. Nós, eu e você leitor, que não somos senhores do mundo, temos um problema para os nossos desejos, e os jovens talvez empenha­mentos futuros em ONGs: devemos querer que haja mais e mais Timores? ou devemos temê-los? Deveríamos querer que, da próxi­ma vez, a ONU possa intervir mais pacificamente, com acordos correctos, sem milícias fantoches, que o direito internacional possa estar à altura das circunstâncias sem as dezenas de milhar de mor­tos. Pode ser que Timor tenha sido uma estreia mundial para mui­tos desses pequenos povos oprimidos que, se não me enga­no, fa­rão boa parte da actualidade internacional do século que aí vem.

O pensamento das Mulheres


texto inédito com alguns anos, que foi resposta a uma pergunta duma jornalista do D. Notícias, que utilizou em seguida o que quis em artigo seu (julho 2005)

1. Há que completar a questão: ‘será que as mulheres pen­sam de maneira diferente dos homens?’ É esta a questão que está em aberto e para a qual as respostas, necessariamente plurais, vão continuar por várias gerações, creio. Sem este acrescento – com a pressuposição de que os homens pensam, e então as mu­lheres? – a pergunta seria ignóbil.
2. Depois há que desconfiar das categorias ‘mulheres’ e ‘homens’: um camponês e uma camponesa, supondo-os inteligen­tes, estão mais perto um do outro no pensar deles do que do seu ‘par de sexo’ de um casal de médicos, também supostos inteligen­tes, e estes igualmente.
3. Em seguida, o que é que se entende por ‘pensar’? Se se lhe der um sentido razoavelmente exigente, o de inventar pensa­men­tos que venham a ter futuro, então quase ninguém pensa, nem eu nem você, e aí não se sabe se o sexo terá algum significa­do. Se entendermos ‘pensar’ em sentido da vida quotidiana, de capacidade de ajuizar e decidir nas dificuldades inéditas que ela ponha, julgo, da minha experiência e observação e do que leio em livros e vejo em filmes, que facilmente as mulheres são mais es­pertas e rápidas do que os homens, talvez porque foram obriga­das por uma longa tradição patriarcal a serem manhosas para le­varem a água ao moinho de­las: muitos provérbios sublinham essa manha, que por vezes até ajuda aos maridos no campo deles. Mas não é sempre assim, também se encontra o contrário.
4. Se viermos enfim à questão da escrita literária, das artes, das ciências ditas duras, das matemáticas, a primeira constatação a fazer é, parece-me, que as mulheres foram sistematicamente arredadas delas durante séculos e ainda não deu tempo para se criarem tradições femininas nesses sectores. Ora o que chamamos pensa­mento implica essencialmente tradição e sua aprendizagem (aprende-se a pensar lendo e ouvindo pensamento), e esta ainda se faz em grande parte por género, entre mulheres, entre homens. A educação mixta é muito recente em todo o mundo ocidental, os primeiros frutos dela têm levado a maioria das mulheres para os campos intelectuais mais adequados às tradições femininas, como se conclui do tipo de profis­sões que se têm feminizado mais rapi­damente. Nas profis­sões que mais têm resistido, começa a haver mulheres que se revelam profissionais de valor mas que são ainda minoritárias, o que lhes dificul­ta muito ganhar mestria no pensar. Por isso, a questão está aberta às gerações fu­turas: elas mostrarão se vai continuar a ha­ver carreiras intelectuais predo­minan­te­mente femininas e outras masculinas.
5. Dito isto, a questão mais difícil é a das diferenças. Por exemplo que sem dúvida você conhece melhor do que eu, há es­critoras que reivindicam uma escrita feminina e outras que se lhe opõem, há quem diga que as escritas de Proust, Bernardim Ribeiro e outros homens são femininas. Se se quisesse pôr a (invenção da) mate­mática num pólo (de razão) e a poesia no outro (de letra) e distri­buir homens e mulheres segundo esses pólos, encontram-se tam­bém muitos homens do lado de cá, como sem­pre foi, mas também muitas mulheres boas ensaistas a revela­rem-se tão incapazes de poesia como muitos homens.
6. Escrevi no texto que me citou, a propósito da Luce Irigaray, que as questões que ela colocou nos seus primei­ros tex­tos – justamente sobre a feminidade e a sexualidade femi­nina – me resistem muito fortemente: elas levar-me iam a crer que cer­tas regiões do pensamento ou certas maneiras de as abor­dar po­derão ser onde esta diferença melhor se revele. Mas não estou certo de que não se trate apenas de defeito meu. Há mulheres fi­lósofas que também lhe resistem, a tomam por ‘essencialista’, isto é por defensora duma oposição essencial entre os dois sexos. Não julgo que haja posição neutra que permita decidir.   

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Ocidente / não Ocidente


A propósito do livro 
Boaventura de Sousa Santos, Se Deus fosse um activista dos direitos humanos, Almedina, 2013


1. Comprometi-me, face ao estimulante prefácio deste livro de título bizarro, a comentá-lo se me suscitasse a isso. Não se trata em todo caso duma recensão, mas a tarefa é delicada demais. Por um lado, o autor põe o seu trabalho de sociólogo alter-mundialista ao serviço duma questão extremamente importante e extremamente complexa, como ele sabe e repete, e devo dizer, não só que me parece muito conseguida aos meus olhos de profano nestas questões e sem desacordos significativos em relação às suas análises[1], como me senti interpelado no inacabado duma obra que publiquei há 40 anos (Lecture materialiste de l’évangile de Marc. Récit, pratique, ideologie, Cerf, 1974), por ter tomado outros rumos impostos (mas com gosto meu) por uma carreira universitária inesperada, a leitura revelando como estou fora destas questões. Por outro lado, eu tenho trabalhado numa perspectiva filosófica diferente da que BSS pressupõe[2] e a distância entre ambas saltou-me a cada página, sem todavia que a crítica epistemológica da posição sociológica de BSS possa ajudar, por insuficiência minha, em questões tão importantes para grande parte da população mundial.
2. A questão é a de saber articular as lutas de libertação das diferentes gentes oprimidas (social, política, sexo, raça, colonização...) com os movimentos teológicos e espirituais que nelas se manifestam a favor dessa libertação, e bem assim despistar os fenómenos religiosos fundamentalistas que jogam a favor da opressão[3]. Limitar-me-ei pois ao ponto que me parece ser de divergência (sendo que BSS tem obra vasta que conheço mal), a maneira como fala de “monoculturas rivais”, a do Ocidente e as das sociedades não ocidentais, com o exemplo do colonialismo (p. 76-80), achando que “a força das novas concepções raramente residiu em si mesmas, mas antes no poder daqueles que as queriam impor” (p. 78). É o termo monocultura que me parece discutível, o ‘mono’ fazendo com que a cultura apareça aqui e ali como instância outra do que o económico, o politico e o social, à maneira como em antropologia se fala de simbólico e o marxismo falava de ideologia, isto é, como uma instância relativamente autónoma da sociedade. É entre monoculturas que se propõe a possibilidade de confronto ou de diálogo consoante, como se se tratasse do mesmo tipo de autonomia no Ocidente e em todas as sociedades não ocidentais. De facto, excepto possivelmente na questão dos direitos das mulheres e do feminismo como movimento de libertação, já que o patriarcado parece ser universal, há uma diferença grande entre a maneira como as sociedades asiáticas de grande civilização entraram em contacto com o Ocidente e como o fizeram as islâmicas, africanas e latino-americanas. Tanto o Japão como a China, e quão diferentes são, adoptaram as técnicas e as ciências duras do Ocidente e trataram de fazer a sua própria ‘libertação’, capitalista mas seguindo as suas tradições (ver as minhas tentativas de pensar as diferenças entre a história ocidental e uma civilização asiática: o contraste que há entre o alfabeto e a definição, por um lado, e a escrita chinesa, por outro[4]; ou entre o Ocidente e o Japão, sociedade não monoteísta[5]).
3. O que quereria sublinhar é argumentado no texto sobre a escrita chinesa. O que diz a razão da proeminência ocidental enquanto único conjunto de sociedades que produziu a modernidade tem a ver justamente com a sua história relativa ao saber, que BSS trata como se fosse uma sabedoria equivalente à das grandes literaturas asiáticas ou islâmicas. A invenção da definição pela escola socrática de filosofia gerou algo de inédito, um tipo de texto gnosiológico, sem a morfologia dos verbos narrativos, composto de argumentos sobre essências intemporais e incircunstanciais, arrancadas ao contexto das opiniões e narrativas. É aliás contra isso que joga a necessidade reclamada por BSS de contextualizar as questões de libertação, toda a problemática moderna da relatividade implica redobrar a atenção aos contextos. A outra grande etapa (em que o cristianismo teve um papel historicamente importante, apesar de vir a pagar o preço da secularização) foi a invenção do laboratório científico que introduziu na história gnosiológica um saber em que a matemática e técnicas convencionais de medição intervêm para produzir conhecimento, o que veio a permitir a invenção de máquinas, de transformações químicas inéditas, da electricidade, daquilo que o termo técnica costuma resumir. Ou seja, a tal ‘monocultura’ ocidental teve um papel único na história: conhecimento que transforma os usos sociais, reformula o social e por arrastamento os seus paradigmas de organização económica e politica.
4. Ora, é esta transformação exuberante que os médias actuais dão em espectáculo às gentes que não partilham dos benefícios dela, quer as classes trabalhadoras das sociedades ocidentais, quer as populações das outras sociedades que se descolonizaram em vista de virem a beneficiar dessa transformação. É este espectáculo mediático que é o grande engodo do capitalismo imperial. Se for certo que a religião é uma estrutura social holística ancestral, que releva de todos os antepassados e liga toda a população, pode-se pensar que nas sociedades cosmopolitas modernas secularizadas foi a escola obrigatória que se tornou holística em vez da religião privatizada; em seguida os médias em geral, desde os livros e jornais aos das imagens e músicas, constituem o laço social da secularização, constituem o novo “ópio do povo” (como os fundamentalistas americanos compreenderam despudoradamente). Embora sem deixar de suscitar ‘espiritual e politicamente’ os activistas de libertação de que BSS dá conta, incluindo uma bibliografia imensa e variadíssima.
5. Quando se diz que “os três princípios da regulação social moderna ocidental são o Estado, o mercado e a comunidade” (p. 120), não se percebe como é que este terceiro termo faz série ou paralelo com os outros dois, que são efectivamente transversais de regulação (de trocas e de ordem) às várias estruturas sociais. A “comunidade” consistirá na rede das ‘famílias’? Se for o caso, há que dizer que ela é trabalhada justamente pela escola, que recebe as crianças das famílias para as fornecer com saber mais ou menos adequado às instituições onde se trabalha, e que os médias de massas são as famílias que visam sobretudo: não ‘a comunidade’ mas a escola e os médias, com bem e com mal – a que ninguém escapa ainda que em graus e aspectos diferentes –, serão pois o terceiro grande laço social com o Estado e o mercado, os três laços transversais e holísticos que tornam tão difícil a libertação, tão problemática a eficiência dos direitos humanos.
6. A questão então a pôr é a do porquê desta dificuldade. Nós nascemos sem nenhum saber, a nossa autonomia virá do saber que aprendermos dos outros e se faça nosso[6]. Há neste processo que dura a vida toda um enigma fundamental, já que é o saber dos outros, de muitos outros, heteronomia, que se tornará saber nosso, autonomia: o que implica que os ‘outros’ que nos ensinaram se apaguem na nossa memória como condição de falarmos e pensarmos e amarmos por nós mesmos. Chegar a adulto é uma primeira ultimação deste processo que nos permite ser cidadãos livres e actuantes na nossa sociedade. Ora, encontramos nos evangelhos cristãos três alternativas de escolha espiritual – “Deus ou o dinheiro” (Mt 6.24, Lc 16.13), “Deus ou César” (Mc 11.17, Mt 22.21, Lc 20.25), “Deus dos vivos ou Deus dos mortos” (Mc 12.27, Mt 22.32, Lc 20.38) – que são perfeitamente actuais (não é necessário ser-se crente, leia-se a justiça e o amor do próximo como sentido bíblico da palavra ‘Deus’) e visam os feitiços das três instâncias ou laços de regulação social. Porquê chamar-lhes ‘feitiços’ sociais (termo português onde Marx foi buscar o ‘fétiche’)? Porque têm uma eficácia nos nossos desejos que justamente não se apaga, porque constantemente actualizados pelo jogo global dos médias, desviam os desejos para querer ganhar cada vez mais, para o poder (e o medo em consequência) e para o deslumbramento dos ‘deuses’ mediáticos, jogam como uma espécie de ‘aspirador’ de desejos heteronomizando cada um, impedindo as autonomias que poderiam criar comunidade em redor como libertação social. É uma eficácia anónima, interveniente no quotidiano sem necessidade da força de polícias da parte do capital e do poder, basta-lhes, além das burocracias integradoras, o jogo dos espectáculos, a força imensa dos luxos e sorrisos a fingir de alegria. Mas acrescente-se que estes feitiços também enfeitiçam e heteronomizam os ricos e poderosos, que por regra não têm vidas invejáveis, como de fora pode parecer.
7. Ainda um ponto de discórdia parcial quanto à noção de “injustiça cognitiva” que me parece despropositada, dado o § 3 acima. A “monocultura ocidental” seria “injusta”, em sentido equivalente às injustiças de exploração social, de sexo e raça e colonização, relevaria de algo que se acrescenta à ‘cultura’ como força extra, armada ou política, que se imporia a “culturas inferiores”. Creio que a afirmação é defensável em relação à missionação católica e protestante que acompanhou a colonização, clero de mãos dadas com os colonos, e devastou culturalmente as sociedades autóctones, os indígenas americanos tendo sido dizimados[7] no primeiro século de conquista das Américas por portugueses e espanhóis e uma boa parte dos africanos escravizados e emigrados à força[8]. Mas a essa missão, monoteísta entre Bíblia e filosofia grega, resistiram claramente islâmicos, hinduístas, budistas, confucionistas, as respectivas literaturas pedindo meças às ocidentais, o que indica os limites duma tal noção de “injustiça cognitiva”. Ora, essas civilizações, a islâmica com maiores dificuldades, é certo[9], abriram-se completamente às invenções técnicas e científicas do Ocidente, sem ressentimentos diante do que seria uma ‘injustiça’ devida a desigualdade cultural.
8. O que receio, eu que tenho trabalhado em questões que relacionam filosofia e ciências (e cristianismo) na história do Ocidente e que me deslumbro com os grandes apaixonados dessa história, é que uma tal concepção altermundialista faça olhar com ressentimentos estapafúrdios essa nossa história que fica aquém da história da guerra, das conquistas e das explorações comerciais e coloniais, embora possa ter beneficiado delas financeiramente e em termos mineiros. O que me confrange, isso sim, é que essa história fabulosa, hoje fecunda mundialmente, tenha desaguado em boa parte na brutalidade da guerra dos capitais, destrutiva das economias dos próprios países ocidentais, a começar pelos Estados Unidos, devastando as ecologias cujos segredos foram sendo desvendados. O que me confrange é ver a maneira como as estruturas financeiras, guiadas por M. Friedman e sopradas pelas inovações electrónicas, caíram nas mãos de gente ignorante, já não proprietários privados ávidos mas gestores que não vêem senão ecrãs de números astronómicos e taxas que lhes prometem uns milhõezinhos nos bolsos a troco de brilhantes esquemas de extorsão. Ser isto o desfecho (actual) de uma tão grande aventura intelectual, tanta burrice, tanta miopia, brada aos céus!



[1] A excepção é em relação à piada esquerdista de mau gosto sobre uma « profecia cumprida » que pressupõe a equivalência entre Bush e Obama e que Republicanos e Democratas andam de braço dado (p. 66), o que claramente a nota 66 da p. 72 desmente.
[3] Sobre a diferença entre ‘espiritual’ e ‘religioso’ ver texto no blogue nº 2 citado, embora esse meu texto não pareça adequar-se sem mais ao que está aqui em jogo, já que se refere ao cosmopolitismo das sociedades ocidentais e ignora as questões alter-mundialistas.
[5] www.philoavecsciences2.blogspot.pt/2008/08/le-japon-une-socit-non-monothiste.html
[6] É onde reside a grande ignorância da modernidade ocidental sobre as sociedades, reputadas como ‘conjuntos de indivíduos’.
[7] Literalmente: reduzidos a um décimo da população, segundo os cálculos de Pierre Clastres (A sociedade contra o Estado).
[8] Um exemplo notável de ‘eficiência’ das culturas indígenas é o livro do etnopsiquiatra Tobie Nathan, trabalhando com emigrantes africanos perturbados e utilizando mitos e rituais que estudou junto dos feiticeiros locais para os ‘curar’, à maneira duma psicanálise transplantada..
[9] Devido ao monoteismo e ao peso antropológico das estruturas familiares (“harém dos primos”, escreveu G. Tillon). O seu fundamentalismo, tal como o cristão americano, resulta da percepção das liberdades ocidentais vistas nos médias que atraem os jovens. Ora, estas são consequência, quer da técnica, autonomizadora dos indivíduos (máquinas libertam músculos e acrescem saber), quer da escola e dos médias, pelas suas incidências na transformação dos usos, organizações e entretenimentos sociais. A moral tradicional resiste à modernidade, como foi o caso do catolicismo: será uma questão de gerações?